sábado, 20 de agosto de 2011

Inside Job (Trabalho interno): resenha de um documentário

Trabalho interno



Vencedor do Oscar de melhor documentário de longa-metragem deste ano, o filme não explicita que a formação de bolhas é processo recorrente e normal no capitalismo atual


Por Leda Maria Paulani

No prefácio da segunda edição de O Capital, que escreve em 1873, Marx decreta a sentença de morte da economia científica burguesa. Para ele, àquelas alturas, com a burguesia tendo conquistado o poder político na Inglaterra e na França e tendo já sido revelada a natureza da luta de classes que moveria aquele quadrante da história humana, não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo. Na sua forma ferina de falar, ele diz que no lugar da pesquisa desinteressada entrara a soldadesca mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrara a má consciência e a má intenção da apologética. Marx desconhecia então a chamada “revolução marginalista”, que já estava batendo à porta, e que desbancaria completamente a velha economia política de Smith e Ricardo, mas não poderia ter sido mais certeiro.

Inside Job, o documentário de Charles Ferguson que pretende mostrar como foi possível o mergulho da economia mundial na abissal crise do final de 2008, indica de modo contundente o caráter superlativo desse prognóstico, em tempos de capitalismo financeirizado. A dança das cadeiras dos protagonistas dessa história entre os mais altos cargos do governo, o comando de grandes grupos financeiros e as cátedras dos cursos de economia e negócios de renomadas universidades dá a tônica da narrativa e é um dos pontos altos do filme. A desfaçatez dos economistas professores ao afirmarem sem pejo que não há conflito entre seu papel de pesquisadores e elaboradores de “trabalhos científicos” e os interesses concretos que devem defender como consultores, assessores ou CEOs (executivos-chefes) de grandes corporações só encontra paralelo na impudência com que as agências de rating classificam com o famoso triplo A instituições a um passo da falência total, bancos e seguradoras já em processo de resgate pelo governo e investimentos tachados de lixo, nas conversas reservadas dos próprios financistas.

“No contexto do mercado”

A soldadesca mercenária a que se refere Marx é capturada pelo filme em plena ação, demonstrando “cientificamente” o caráter estabilizador dos mercados de derivativos, execrando, com base em fundamentos teóricos seguros, qualquer tipo de regulação e explicando, a estupefatos senadores de uma comissão de investigação do início de 2010, que, “no contexto do mercado”, não há nada demais em recomendar a clientes a compra de um ativo financeiro que, pelas costas, a própria instituição se encarrega de destruir, pois ele foi desenhado para dar tanto mais lucro a seus idealizadores quanto maiores sejam as perdas dos incautos que os adquirem. Talvez não exista exemplo mais bem acabado da má consciência e da má intenção da apologética que Marx vaticinara em substituição à falsa consciência da economia política dos bons tempos. Encarado por este ângulo, o filme é, sem dúvida, extremamente bem sucedido. Mas é também aí que se podem perceber seus limites.

Ao temperar com justa indignação moral a sequência de eventos e de personagens que apresenta, combinando, sempre que possível, esse tipo de pecado com delitos de outra natureza, como as desmedidas quantidades de cocaína sabidamente consumidas pelos tipos de Wall Street e a recorrente utilização, pelas mesmas figuras, dos serviços de agenciamento de prostitutas de alto luxo, Inside Job tende a mostrar como anormalidade e aleijão aquilo que singelamente o executivo da Goldman & Sachs mostra ao parlamentar da alta corte americana como sendo normal “no contexto do mercado”. O próprio filme, por sinal, indica que muitas vezes é muito tênue, para não dizer inexistente, a linha que separa a especulação oficialmente permitida das transações financeiras e a criminalidade pura e simples, como a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas ou o auxílio qualificado a clientes que desejam burlar o fisco.

Milagre da multiplicação

A clivagem normal/anormal, mal resolvida no filme, é, contudo, atravessada por uma outra, igualmente interessante, e pouco explorada por ele: assumindo-se plenamente como documentário, Inside Job passa batido pela questão, formalmente instigante do ponto de vista da obra cinematográfica em si, sobre como um instrumento desenhado para produzir ficção, pode fabricar um filme “verdadeiro” a respeito de uma realidade materialmente comandada pela própria ficção.

O tipo de reprodução capitalista que escancara de vez o espaço para a ação da soldadesca mercenária é aquele no qual o andamento da acumulação é presidido pelo que Marx chama de capital portador de juros (capital financeiro), o qual possui a propriedade de parecer milagrosamente produzir valor por si mesmo, “assim como a pereira dá peras”. “Fazendo amor consigo mesmo” (essa é outra das formas brincalhonas de Marx ao tratar do objeto), o dinheiro que é lançado na circulação como capital, ou seja, como coisa que se compra e se vende por sua suposta propriedade de se automultiplicar, enseja todo tipo de “formas aloucadas” e fictícias, da dívida pública ao título de crédito, da ação convencional aos derivativos de todo tipo, dos CDOs (collatered debt oligations) aos CDSs (credit default swaps), ativos, estes últimos, sobre os quais George Soros — a velha raposa do mercado financeiro mundial, forte o suficiente para, sozinho, ter quebrado a libra inglesa em 1992 — afirma, no filme, não ter conhecimento, por pertencer “à velha guarda”.

O filme aborda indiretamente a questão do caráter fictício desses capitais que se autorreproduzem, mas a mantém nos estreitos limites da discussão sobre a formação de bolhas de ativos, que surge naturalmente, sempre que se trata da temática dos mercados de capitais. Assim como no caso das transações financeiras moralmente condenáveis, as bolhas de ativos aparecem como anormalidades, figuras que escapam da régua e do compasso da boa sociedade de mercado, deficiência que pode evidentemente ser sanada, desde que o Estado disponha dos apetrechos necessários, não seja dominado pelos lobbies financistas e ponha na cadeia aqueles que maculam o direito à liberdade econômica. O filme dá assim pouco espaço para que se perceba que, no capitalismo de hoje, longe de exceção, a formação de bolhas é processo recorrente e absolutamente normal. Com exceção dos precipícios nos quais esse arranjo naturalmente instável de quando em quando despenca, momentos em que todos perdem até que o Estado venha em socorro, é a formação de bolhas e seu esvaziamento (que pode ou não ser barulhento) que permite “realizar”, para os espertos do momento, a valorização fictícia desses capitais fictícios.

“Maracutaia” e limitações

Os limites do filme, portanto, como já deve ter presumido o leitor, encontram-se no plano ideológico: o diretor esgrima seus princípios liberais e sua fé na capacidade de a sociedade de mercado levar a humanidade ao estágio de “fim da história” (que teria sido alcançado pela paradigmática Islândia pré-reformas desreguladoras que abre o filme), contra a loucura neoliberal da falta de regras, da especulação desenfreada e da ganância dos financistas. Um pouco mais de Estado, correntes de ferro para domar a ferocidade da finança (vista quase como inimiga do capital) e bons princípios morais devem resolver o problema e fazer a América voltar a se orgulhar da Estátua da Liberdade que ganha a tela na cena final. Quem sabe até não coloca os professores de economia em seu devido lugar e, mais ainda, dota-os de consciência crítica quanto ao “saber” que professam.

Ironias à parte, por mais que Inside Job (Trabalho Interno), para cuja tradução cultural, pelas insinuações da expressão, já se sugeriu nossa famosa Maracutaia, por mais que desperte, enfim, nossas simpatias e por mais que seja eficiente em fazer aflorar no cidadão comum a necessária indignação, é limitado no conteúdo e na forma. No conteúdo porque dá pouca margem para que se perceba que o capital portador de juros não é uma excrescência da sociedade de mercado, mas seu resultado natural, e para que se perceba igualmente quão promíscua é a relação não só entre professores de economia e seus postos no setor público e privado, mas principalmente entre o paradigma de ciência econômica que hoje se impõe com violência nas instituições acadêmicas e o apoio intelectual que ele confere ao domínio exercido pela finança. Na forma, porque o corte reto e clássico do documentário no estilo “é tudo verdade”, praticamente dividindo o filme entre bons e maus, entre os que avisaram da catástrofe e os que continuaram a produzir lixo tóxico, entre os que perderam empregos e bônus milionários, mas se retiraram da esbórnia, e os que continuaram a fraudar e trapacear, não só não credita ao sistema enquanto tal qualquer problema ou defeito, como gira em falso frente a uma realidade que está hoje, mais do que nunca, longe de ser simples, linear e binária. Uma narrativa jocosa, que completasse as voltas dos parafusos, invertendo verdades e mentiras, talvez fosse mais efetiva.

Leda Maria Paulani é professora titular do Departamento de Economia da FEA/USP

FONTE: Brasil de Fato

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