Por
Atilio Boron
O que
significa ser de esquerda na América Latina atual? Essa pergunta na verdade
está aberta a múltiplas e contraditórias respostas. Para mim, o assunto é
claro: ser de esquerda significa, mais que nada, adotar uma postura teórica e
prática intransigentemente crítica do capitalismo e a favor de uma sociedade
pós-capitalista, denominada socialista ou de transição, que esteja direcionada
para a construção de uma sociedade não capitalista. E aqui notamos um problema
grave: são poucos os partidos, mesmo aqueles ditos de esquerda – para não falar
daqueles inscritos na camaleônica “centro-esquerda” –, que assumem claramente
essa postura. E, por outra parte, entre aqueles que reivindicam tal postura,
pouquíssimos detêm certa ressonância nas massas, uma base social que os
transforme numa alternativa real de poder. Este é o grande problema. Muitas
vezes, aquilo que na América Latina se apresenta por “esquerda” não passa de
uma variante desbotada, descafeinada da “centro-esquerda”, que sob nenhuma
hipótese pode ser confundida com uma esquerda genuína. Exemplos: Lula, Lagos,
Bachelet, Tabaré Vázquez, Kirchner e tantos outros que nem remotamente reúnem
as condições para serem considerados como políticos ou governantes de esquerda.
Podem ter uma trajetória (como Lula) desvirtuada pelo presente ou uma retórica
desvirtuada pelos fatos, como Kirchner, mas nada além disso. Enfim, como
considerar de esquerda os governos da Concertación
chilena, impassíveis diante do escandaloso aumento da desigualdade social
naquele país?
Isso nos
coloca diante de um conjunto de problemas, entre eles o seguinte: os partidos
da esquerda “dura”, em geral bastante dogmáticos e sectários, fazem parte de um
setor minoritário das nossas sociedades. O avanço da esquerda, portanto, requer
necessariamente uma política de alianças, o que gera entre as forças políticas
uma série de intermináveis debates muitas vezes paralisantes.
Por que
uma política de alianças? Em primeiro lugar, porque uma minoria irrelevante
simplesmente não consegue mudar o mundo. É preciso conquistar uma maioria
social para então poder se lançar, responsavelmente, à tomada do poder.
Entretanto, o que mais se escuta dentro dos partidos de esquerda é algo como:
“Não, nós não nos aliamos com ninguém, mantemos a autonomia total do nosso
partido.” Temos assim uma força de esquerda muito coerente, muito consistente,
o que é de fato respeitável e válido, mas deveríamos nos perguntar sobre a
possibilidade concreta, e não apenas imaginária, de uma força como esta fazer
com que o processo histórico avance a partir da exaltação da própria pureza
doutrinária, quando na verdade tal coisa se faz à custa de uma prática eficaz.
Penso que é extremamente importante articular uma adequada política de alianças
que não dilua o horizonte de esquerda, mas que também permita reunir alguma
capacidade para incidir na conjuntura mediante uma renovada e ampliada
habilidade de mobilizar o apoio de crescentes setores das classes subalternas.
Do contrário, existe o risco de se ter uma esquerda “talmúdica”, muito rigorosa
e ortodoxa em sua interpretação do dogma, mas que termina se convertendo numa
espécie de seita meramente testemunhal e privada de toda potencialidade
transformadora. Rosa Luxemburgo percebeu muito bem a gravidade dessa atuação de
uma esquerda que não quer, ou melhor, que renuncia a mudar o mundo e que se
ilude ao pensar que o salvará através do seu virginal testemunho.
É
evidente que uma esquerda somente testemunhal não contribui para a causa da
emancipação social dos nossos povos. Por outro lado, também não é de nenhuma
ajuda uma esquerda oportunista, que se alia com qualquer grupo político e que
aberta ou veladamente desiste de suas bandeiras de luta e desfigura sua própria
identidade. O tema das alianças, portanto, não é simples. Mas a história
demonstra que as forças de esquerda que conseguiram engendrar grandes
transformações em suas sociedades – penso aqui nas experiências da Revolução
Russa, da Revolução Chinesa, da Revolução Vietnamita e da Revolução Cubana –
sempre o fizeram a partir da construção de uma sucessão de alianças que foram
ampliando progressivamente sua gravitação social, política e ideológica. Eram
forças que tinham claríssima consciência sobre quais eram seus objetivos finais
e seus princípios irrenunciáveis, que nunca deveriam ser sacrificados com
vistas a ocasionais vantagens proporcionadas por alguma possível aliança. O
caso do Movimiento 26 de Julio, tal
como Fidel Castro expôs em diversas ocasiões, é ilustrativo em relação a essa
capacidade de unificar diferentes forças sociais a partir de uma direção
estratégica, que paulatinamente impôs sua hegemonia e levou o conjunto das
forças aliadas para a esquerda e para a luta pelo socialismo. Os ensinamentos
da Revolução Russa, ou da Chinesa ou mesmo da Vietnamita, confirmam nosso
argumento. O partido bolchevique não chega ao poder graças a algum tipo de
ilustre solidão derivada de uma pureza doutrinária, mas sim pelo ajustamento e
flexibilidade da política de alianças promovida por Lenin, em muitos casos
contra a direção do partido. E o mesmo poderia ser dito sobre outras
experiências revolucionárias.
O
problema é que, na América Latina, muitas vezes as alianças acabaram diluindo
os partidos de esquerda. Como construir atualmente uma alternativa de esquerda
que não fique limitada ao plano doutrinário ou retórico e demonstre eficácia na
esfera das políticas concretas? O que um partido de esquerda deve propor hoje
em nossos países? Obviamente, não existe uma resposta única para essas
questões. A Colômbia tem suas prioridades, entre elas uma é fundamental: a
pacificação. Disso emana um certo tipo de alianças. Em outros países, a crise
econômica é o problema mais urgente, o que dá lugar a outras possíveis
coalizões, aglutinando forças opostas às políticas neoliberais. Conforme
apontamos anteriormente, o que deve caracterizar um partido de esquerda é seu
propósito de abolir o capitalismo. Nesse sentido, é preciso analisar e
distinguir os passos concretos e imediatos, as alianças táticas e as alianças
estratégicas para alcançar esse objetivo. Tais coalizões ou alianças constituem
o centro da política, ainda que comumente seja este o ponto onde naufragam as
melhores intenções. A revolução não é um ato único, pelo contrário, é a consumação
final de uma série de iniciativas, que devem começar no aqui e agora da
conjuntura. Um partido de esquerda deve saber que o combate ao capitalismo
começa muito antes da revolução, e essa convicção deve ser o guia para a
elaboração de uma política de alianças com forças afins, junto às quais poderá
marchar até certo ponto, quando então deverá forjar novas alianças com outros
sujeitos sociais dispostos a tomar as mesmas bandeiras e seguir a marcha.
Apenas excepcionalmente é possível encontrar alianças políticas que perduraram
ao longo de todo o caminho que vai da ascensão da luta de massas à consumação
da revolução.
FONTE: BORON, Atilio. Aristóteles
em Macondo: reflexões sobre poder, democracia e revolução na América
Latina. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2011, p. 101-105.
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