Eric Hobsbawm veio ao Brasil em 2003 para participar da primeira edição da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, no RJ.
Na semana do evento, o historiador inglês concedeu uma entrevista ao jornalista Cassiano Elek Machado, publicada na Folha em 31 de julho de 2003.
Leia a íntegra abaixo:
'Não olho com esperança os próximos anos'
O historiador Eric Hobsbawm fala sobre literatura e o futuro da humanidade
CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Eric Hobsbawm sempre diz, citando seu colega francês Fernand Braudel (1902-85), que um historiador nunca está de folga. Esse é claramente seu caso também.
Aos 86 anos, um dos intelectuais mais prestigiados do planeta faz história todos os minutos. Até à beira da piscina do Copacabana Palace, no Rio, onde descansava, ontem, antes de viajar para Parati, para uma palestra amanhã na Flip, onde veio convidado pela Companhia das Letras.
Basta um minuto de desatenção do repórter, e o corpo esquálido do historiador britânico sai em disparada atrás de um "International Herald Tribune", para acompanhar a história de agora.
É um pouco sobre ela, e também sobre a história do futuro, que o autor da historiografia mais influente sobre os últimos 400 anos (em quatro volumes, finalizados com "A Era dos Extremos", em 1995) falou com a Folha, em uma mesa onde descansavam algumas anotações suas.
Leia a seguir trechos de conversa com o "everready", termo que poderia ser traduzido por "semprepronto", Eric Hobsbawm.
Folha - O sr. é filho de uma escritora, mas não costuma falar muito sobre literatura. Como atração de um festival literário, o que sr. falaria sobre a importância desse gênero em sua formação?
Eric Hobsbawm - Literatura é muito importante na minha vida. Pertenço a uma geração que tinha a literatura como centro de sua educação. Aos historiadores marxistas, como eu, a literatura foi particularmente importante. Foi por ela que muitos chegamos à história. Não significa que eu seja uma pessoa literária. Historiadores não inventam coisas.
O sr. já fez ficção?
Todos os jovens tentam fazer poesia, mas logo percebi que não era talentoso para isso. Tentei também a ficção, mas logo desisti. Mas vale dizer que a história é uma forma de literatura se você quer se comunicar com os leitores. Os historiadores que viveram depois que sua historiografia tenha ficado obsoleta são os que escreviam bem. Espero que isso aconteça comigo quando ficar obsoleto.
O sr. escreveu que as previsões do futuro devem ser baseadas em conhecimentos do passado. O sr. sempre afirma que o século 20 foi o mais terrível na história da humanidade. O nosso século engatinha, mas, pela prévia que estamos tendo, o sr. acha possível imaginar que será ainda pior?
É difícil classificar o que é "pior". O século 20 matou mais pessoas, massacrou mais gente e fez mais gente sofrer do que nunca. Mas foi ao mesmo tempo um período de extraordinária mudança e desenvolvimento. No final do século 20, apesar disso, as pessoas viviam mais. Finalmente há um perigo no século 21 que é maior do que no 20. O da tecnologia escapar ao controle dos homens. Não falo em tecnologia nuclear, mas em tecnologia biológica. Conheço pelo menos um grande cientista que é pessimista quanto a isso. Ele defende que a chance de o ser humano se destruir é considerável.
O sr. é um pessimista também, não?
Sou pessimista no sentido que não olho com grande esperança para os próximos 20 ou 30 anos. Mas não sou um pessimista no sentido de acreditar no fim da humanidade.
A guerra no século 21 provavelmente não vai matar tanto, o sr. já sustentou, mas a violência vai estar por toda parte. Viveremos a globalização da violência?
Sim, algo assim. É um julgamento difícil. Se você é um brasileiro de 80 anos, você deve achar que o Rio está intoleravelmente violento, em comparação com o passado que você viu. Se você for um brasileiro de dez anos, você não fica muito chocado. Apesar disso, os Estados modernos estão definitivamente perdendo nas últimas três décadas o controle da violência em seus territórios. Esse é um processo que está apenas começando.
O sr. já batizou a Era das Revoluções, do Capital, dos Extremos. Como o sr. imagina que se chamará a próxima era?
Elas só podem ser batizadas em retrospecto.
Então falemos do presente. Tony Blair está passando por uma de suas piores crises atualmente. O que o sr. acha que acontecerá no Reino Unido?
A crise que vemos hoje é diretamente ligada à Guerra do Iraque, que foi muito impopular na Inglaterra e foi imposta sobre mentiras. Essa é uma crise do Partido Trabalhista, mas é também muito mais ampla. Eles tentaram reformar o sistema britânico em direção ao livre mercado norte-americano, algo pouco coerente com os princípios tradicionais do partido.
Nós dois sabemos que Bush nunca esteve preocupado com as armas do Iraque. Foi só a sequência natural do 11 de Setembro, que deu a eles a possibilidade de anunciar a supremacia mundial americana. Um jeito de demonstrar isso era derrotar algum inimigo. Pelas mesmas razões me arrisco a fazer a previsão de que o Irã será o próximo.
Por que o sr. acha que os Estados Unidos estão mais poderosos do que nunca, mas que esse império não vai durar muito?
Porque nenhum império dura muito. Já vi alguns deles sendo derrubados. Os americanos sonham que seu império dure para sempre.
Precisamente 70 anos atrás o senhor estava em Berlim quando Hitler assumiu o poder na Alemanha, um poder que sonhava ser eterno. O sr. acha que esse quadro pode se repetir?
Outro Hitler não seria o problema. Os maiores perigos depois de Hitler e Stálin foram maus Estados, não liderados por ditadores personalistas. Foram ancorados em coletivos, como militares no Brasil.
Falando em Brasil, o sr. recebeu com alegria a eleição de Lula, mas fez críticas às alianças que ele fez para conseguir a Presidência. Meio ano depois da posse, que balanço o sr. faria da atuação dele?
Não tenho como dar uma resposta muito realista. Estou aqui no Brasil há dois dias. Não estou surpreso que exista algum descontentamento com o governo de Lula, por não conseguir as coisas que prometia. Mas seis meses não são nada. A questão será se Lula conseguirá manter o enorme ímpeto com que ele chegou ao poder, que o levou a uma votação maciça.
FONTE: Folha de São Paulo
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