sábado, 24 de setembro de 2011

Para enterrar o pinochetismo de vez


Movimento por educação pública no Chile acumula forças e almeja a uma constituinte para superar a estrutura construída na ditadura

Fábio Nassif
de Santiago (Chile)

Este foi um 11 de setembro diferente para o Chile. O roteiro se repetiu, mas agora em um clima político que colocou com mais força as ideias daquele governo interrompido em 1973. A marcha organizada por entidades de direitos humanos reuniu cerca de 5 mil pessoas, que caminharam até o cemitério onde se localiza o monumento de executados e desaparecidos políticos. O colorido das organizações políticas passou aos poucos diante do imenso mural de nomes a serem homenageados. No túmulo do ex-presidente Salvador Allende, as flores foram deixadas, músicas cantadas e sua presença lembrada. O mesmo para o cantor Victor Jara.



Em determinado momento do ato, a polícia iniciou a repressão diante da juventude que montava barricadas na avenida do cemitério. E, como forma de intimidação física e moral, invadiu o cemitério com caminhões de água, cavalos, camionetes e todas as suas armas. Mais de 20 carros desfilavam em meio às homenagens.


O movimento que permanece mobilizado, descartou o calendário de negociação proposto pelo governo. A Confederação de Estudantes do Chile insiste que o tema do fim do lucro na educação deve estar sobre a mesa. O Brasil de Fato entrevistou o professor do departamento de Ciências Históricas da Universidade do Chile, Gabriel Salazar. O reconhecido historiador apresentou um panorama dos elementos econômicos que sustentam o modelo chileno e justificam as mobilizações, além de contextualizar a ampliação do movimento para outros setores da sociedade. Acompanhe a seguir:



Brasil de Fato - Quais são as razões econômicas destes protestos estudantis?



Gabriel Salazar – Tem a ver com o fato de que basicamente, neste país tem que se pagar um preço muito alto pela educação, em todos os níveis: básica, média e superior. Nos patamares mais altos do mundo depois dos Estados Unidos. E isso acabou sendo uma carga muito pesada para o conjunto das famílias chilenas. Porque, por exemplo, a mensalidade de uma universidade é aproximadamente 200 mil pesos. E o salário mínimo, que é a média do que recebem das famílias mais pobres é ao redor de 200 mil. Ou seja, poderiam entregar a totalidade do seu ganho para pagar uma única mensalidade. E os colégios secundaristas pagos também se paga quantia parecida. Existe uma educação básica e média gratuita que é a educação municipal, mas o governo entrega muito pouco recurso e ela não tem a infraestrutura adequada, os professores não tem condições adequadas, não há instâncias de formação. Ou seja, o Estado diminui cada vez mais o apoio à educação pública. É quase irrisório. Então, ela deve se auto-financiar como se fosse uma universidade privada. Está incluído também o caso de um aluno que consegue crédito público – com aval do Estado mas se paga aos bancos – para financiar seu estudo superior. Ao terminar seu estudo está com uma dívida, que equivale mais ou menos – por conta das taxas de juros – a cinco ou seis vezes a quantia real que deveria ter pago. É absurdo que o estudante termine com uma dívida acumulada de 20, 30 e até 40 milhões de pesos. É impossível pagar isso com o salário daqui. As razões econômicas deste movimento são muito potentes. Isso significa que o objetivo da mobilização é desmercantilizar a educação e evitar o lucro.



Considerando que esta dívida passa pelos familiares e são de muito longo prazo, são elementos que podem significar uma ampliação dos setores envolvidos nas mobilizações? Qual a capacidade do governo em fazer remendos econômicos para segurar isso?



O problema é que o preço da educação afeta a todas as classes sociais, inclusive as com maiores condições que devem pagar todos os anos de 3 a 4 milhões de pesos para a educação de um filho, sendo que ele tem quatro ou cinco filhos.



Se este governo aplicar uma política de desmercantilização e eliminação do lucro da educação, ele teria também que aplicá-la na saúde – onde acontece a mesma coisa -, e nos espaços de trabalho – que também estão regidos por um critério de mercado. Se este governo tentasse seriamente resolver o problema da educação só sobre o aspecto econômico e financeiro seria um suicídio dele mesmo. Então ele teria que mudar todo o modelo, e não pode porque o é mercantil financeiro, está baseado na inflação da taxa de juros através dos créditos. Esse é o modelo chileno, não é a indústria. Por isso que a máxima oferta do governo foi abaixar um pouquinho a taxa de juros. É a típica mentalidade de um comerciante: abaixo um pouco a taxa, mas sigo lucrando. E por isso que tenta negociar, fala em diálogo, sentar para conversar. Estamos a mais de três meses conversando e zero solução.



Como vê o diálogo do movimento estudantil com outros setores da classe trabalhadora e qual o papel que este tem cumprido até agora?



Tem sido muito importante em toda a história do Chile que a pressão para mudar um sistema injusto tem vindo sempre da juventude. Em particular da juventude estudantil, tanto secundária como universitária. Isso se deve porque a sociabilidade juvenil não pode ser regulada por nenhuma lei ou código. Os jovens sempre encontram uma forma para organizar-se, dentro ou fora da universidade, que podem gerar movimentos como este. Não acontece o mesmo com os trabalhadores no Chile. Eles têm em cima o que se chama Plano de Trabalho, um código de trabalho estabelecido na época de Pinochet na ditadura que está absolutamente pensado primeiro para privilegiar sempre a empresa acima dos direitos dos trabalhadores. Se a empresa diz “bom, preciso despedir estes trabalhadores” nada os impede. Podem expulsar os trabalhadores que não lhes convêm.



Por outro lado, o próprio funcionamento da economia aponta que as empresas tendem a se subdividir e fragmentar em pequenas empresas. Cada empresa pequena pode contratar muito poucos trabalhadores, e por lei, para que haja um sindicato, tem que ter um número determinado de trabalhadores. Ou seja, as empresas se desintegram para quebrar por baixo isto e impedir a possibilidade de sindicalização. E é por isso que a CUT não tem realmente peso específico nem em respeito à construção na base dos trabalhadores e menos ainda com projeto político. Vimos a paralisação de dois dias convocada pela CUT e praticamente o país seguiu funcionando. O que parou foram os estudantes, o serviço público que está mais avançado, mas os trabalhadores e operários foram muito pouco, quase nada. O problema é que a ditadura se encarregou de destruir a Central Unificada dos Trabalhadores. Por isso que a CUT tem sido muito debilitada, somado ao fato de que a direção dos trabalhadores se assimilou muito ao governo da Concertación, que é neoliberal.



Por isso que esta mobilização é iniciada pelos estudantes e tem tido um apoio sobretudo espontâneo, sindicatos independentes – não os da CUT -, população, professores, profissionais. Ou seja, um apoio transversal. Claro, a CUT, tendo em vista a massividade do movimento devido à expansão que o movimento estudantil fez à cidadania, a CUT chama uma paralisação nacional. Mas está claro que o peso foi dos estudantes. Então, há um aspecto débil da mobilização cidadã é que os trabalhadores estão manejados pelo Plano de Trabalho, pela gerência deixada por Pinochet nas organizações das empresas e a destruição dos sindicatos. Esta é uma tarefa pendente. Mas, se por aí está difícil de organizar, a cidadania está por si só se organizando em assembleias territoriais, de bairro, de regiões, deliberando autonomamente. Aí o movimento estudantil tem um sócio muito importante.



Acredita que esta é uma forma mais avançada de organização?



Está se desenvolvendo pouco a pouco. Acredito que neste momento o movimento está criando raízes nestas assembleias locais, de bairros ou regionais que estão se multiplicando por todas as partes. Isso é uma forma organizativa inédita na história contemporânea do Chile. Alguma vez existiu no passado, mas na história contemporânea é nova. São realmente cidadãs, e tendem a excluir os partidos políticos e aos próprios políticos. Então, isso significa uma espécie de descarte, desqualificação e deslegitimação da classe política civil.


Estão descartando as representações políticas tanto do governo como da Concertación. Isso é um fenômeno novo, muito importante porque se sustenta em uma cultura cidadã que vem se criando e fortalecendo desde Pinochet para cá. São quarenta anos de aprendizagem e auto-organização. Mas, ao mesmo tempo, como é um movimento novo, tem muito o que aprender. Tem muito o que fortalecer para poder abrir um caminho novo que leve ao que eles querem, que é uma nova constituição política. Querem eliminar a Constituição de Pinochet que é a que nos rege.



Acredita que este movimento tem potencialidade para avançar e construir um projeto político de esquerda distinto dos projetos dos partidos políticos institucionais que estão sendo rechaçados?



Este movimento traz uma cultura social própria que vem se desenvolvendo desde a época de Pinochet, precisamente porque os cidadãos, sobretudo os setores populares e a juventude popular, tiveram que organizar-se por si mesmos para resistir à ditadura, para resolver os problemas gerados pelo mercado ou a ausência de um Estado social protetor. Então vem se desenvolvendo uma cultura de sobrevivência que se expressa musicalmente, nos teatros populares, auto-educação, escolas próprias. Inclusive está aparecendo também propostas de criar entidades produtivas, empresas populares. Por exemplo tem aparecido já umas empresas que são construtoras de moradia administradas pela própria população. Então tem uma aprendizagem de autonomia, de desenvolvimento de um poder próprio, que não é só de resistência mas também cultural, de mercadorias e também agora produtivo. Traz assim muitos sinais de soberania. É nesse sentido que está crescendo.



Isto está se desenvolvendo e pouco a pouco vai se construindo um projeto político, um projeto de Estado diferente, que obviamente não está finalizado pois estamos em uma etapa muito inicial.



Acredita que tem um aspecto anticapitalista ou antineoliberal explícito?



É mais do que tudo antineoliberal. E anticapitalista no aspecto do capital comercial, financeiro que tem mercantilizado toda a educação, saúde, etc, e trabalha em taxas de juros altíssimas – no Chile é na ordem dos 35% a 55% anual. A maior crítica chega ao capitalismo deste tipo. No Chile, sempre houve uma certa simpatia popular pelo capitalismo produtivo, desenvolvimento industrial e tudo que seja trabalho produtivo porque isso dá emprego.



Acredita que, depois de Allende, ditadura e 20 anos de Concertación, podemos dizer que este é um novo período histórico?



Eu acredito que sim. Porque o neoliberalismo se instalou no Chile com a ditadura de fato por volta dos anos de 1975 com os chamados Chicago Boys – os economistas que estudaram na Universidade de Chicago e foram totalmente influenciados pelo pensamento neoliberal. O modelo de neoliberalismo chileno é mais extremo do que o norte-americano. Então temos 35 anos de trajeto deste modelo que a esta altura já estão muito expostas suas insuficiências e contradições sobretudo no plano social.



O modelo neoliberal no Chile este vivendo um período de agonia, pelo lado humano, porque pelo lado econômico vai se estender mais. Mas o que antecede é a cidadania. E isso a cidadania está colocando limites, está querendo trocá-lo, e por isso que todo falam em eliminar esta constituição política. Em Ponta Negra por exemplo, todas as marchas terminaram na praça central para queimar a Constituição política. É um sinal de que querem mudanças. Então se termina um período histórico e se inicia outro. Qual? Esse é o problema.



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