quarta-feira, 28 de setembro de 2011

“O rei está nu!”


Por Rodrigo Dantas*

“Nas últimas semanas, ruas e praças foram tomadas por milhares de pessoas que protestam contra o governo”. Uma notícia como esta poderia se referir hoje a dezenas de países: Azerbaijão, Chile, China, Espanha, EUA, Filipinas, Grécia, Indonésia, Israel, Itália, Portugal, Reino Unido, Rússia, Tailândia, Bahrein, Egito, Jordânia, Marrocos, Líbia, Síria, Palestina, Tunísia, Iêmen etc. O ano de 2011 ainda não chegou ao fim, mas será lembrado pela derrubada dos governos da Tunísia e do Egito e o início da Revolução Árabe. Este ano de 2011 será lembrado ainda por marcar o início das ocupações de praças e dos grandes protestos na Europa, na esteira da maior crise do capitalismo mundial no pós-guerra, em que o “Pacto do Euro” pretende rebaixar salários e aposentadorias, cortar gastos e serviços públicos, privatizar o que resta para ser privatizado e liquidar o que sobrou do Estado Social para alimentar o sistema rentista e parasitário da divída estatal.



A se julgar pelo que nos educou nas últimas décadas, algo está “fora da ordem” que nos ensinaram a imaginar como a única possível. Durante décadas, ouvimos da mídia e da maioria dos ideólogos e intelectuais que estaríamos destinados a uma longa era de prosperidade econômica e estabilidade política global. Durante décadas, aprendemos que a sociedade de mercado seria a forma natural da sociabilidade humana; sua globalização, na esteira da restauração do capitalismo na URSS, no Leste Europeu e na China, estaria destinada a desenvolver as forças produtivas, incorporar bilhões de pessoas ao consumo de massas e inaugurar uma era em que os progressos que haviam sido feitos na Europa, nos EUA e no Japão seriam estendidos a todo o mundo na “sociedade do conhecimento”. Durante décadas, foi este o discurso dos intelectuais, dos políticos, dos governos, da universidade e dos meios de comunicação. Durante décadas, ouvimos o eco deste discurso na voz de figuras como Michel Foucault, Jürgen Habermas e todos que alardearam a necessidade da criação de uma nova esquerda. Durante décadas, ouvimos o eco deste discurso na voz de muitos daqueles que foram os partidos, intelectuais e dirigentes da revolução. Se suas previsões tivessem se confirmado, as pessoas não teriam motivo para ir às ruas, e não estaríamos em meio àquela que está caminhando para se tornar a maior crise da história do capitalismo mundial.



O mito do fim da história não passou de uma racionalização ideológica que acobertou a instauração da ditadura global dos “mercados”. O que estamos vivendo decididamente não é um processo pelo qual o mundo se torna cada vez mais próspero e estável. Em meio a uma crise ambiental que coloca em xeque a existência da humanidade, a maior crise da história do capitalismo no pós-guerra começou nos EUA e na Europa, enredou a economia global numa montanha de créditos e divídas impagáveis, e ameaça levar de roldão as conquistas duramente arrancadas pelos trabalhadores nesse período. Europa, EUA e Japão passam por uma queda cada vez mais acentuada dos padrões de vida de suas populações, sem que isso signifique um enriquecimento geral dos países onde habitam mais de 80% da população mundial. Ali onde o desenvolvimento das forças produtivas permitiria que vivêssemos todos em paz, com conforto e liberdade, as leis do mercado se encarregam de empobrecer as pessoas, empilhar armamentos de destruição em massa e devastar o planeta para sustentar um processo de concentração de riqueza e poder, como jamais existiu na história.



Neste quadro, o que importa considerar não é que as pessoas saem às ruas por diversos motivos. Não é o fato de que no mundo árabe se trata da luta pelas liberdades democráticas, no Chile, da luta contra a privatização da educação, na Europa, da luta pela preservação dos salários, direitos, empregos e serviços públicos. O que nos importa considerar é que, para além destes diferentes motivos, há sempre a mesma luta para salvaguardar as condições de existência das pessoas diante da destrutividade (econômica, social, ecológica, etc.) inerente ao capitalismo. O que nos importa considerar é que, para além das diversas circunstâncias que produzem estes processos de luta, encontramos o mesmo abismo entre governantes e governados, a mesma falência dos governos, regimes e suas instituições, a mesma falência das antigas organizações da juventude e dos trabalhadores, em sua grande maioria perfeitamente integradas à sociedade e ao Estado burguês. Para nós, o que importa considerar é que, por detrás das diferentes situações vividas por cada um destes países, encontramos a mesma realidade de um Estado que se tornou refém dos “mercados”, de uma economia e uma sociedade que se tornaram reféns da lógica cada vez mais auto-destrutiva da reprodução ampliada do capital. Para nós, o que importa considerar é que, por trás das diversas razões, anseios e reivindicações que possam ser invocados por estes processos de luta, o que une todos eles é a precisão de encontrar uma saída, a necessidade comum de lutar pela própria vida, a necessidade histórica de lutar por direitos e necessidades que os “mercados” não poderão jamais atender.



Temos assim um novo ponto de partida para o pensamento e a ação num mundo que desmente categoricamente tudo o que nos ensinaram sobre uma longa era de prosperidade global. Vivemos num mundo que se torna cada vez mais consciente de que produzimos, cotidiana e compulsoriamente, em escala planetária, as condições concretas de nossa própria auto-destruição. Vivemos num mundo em que a vida da maioria das pessoas, a consciência da maioria das pessoas, os direitos e necessidades da maioria das pessoas estão em contradição cada vez mais explosiva com os governos, com os regimes políticos e com o próprio sistema global do capital. Vivemos num mundo em que se torna cada vez mais evidente que “o rei está nu”. Neste mundo, uma antiga pergunta volta a nos interpelar nas ruas e nas praças: como reinventar o mundo para que nele possamos caber todos?



*Professor de ética e filosofia política da UnB


FONTEJornal da Adufrj - 721 - 20/09/2011

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