quinta-feira, 9 de junho de 2011

Os “guardiões da língua”

Por Luiz Ricardo Leitão

O mês de maio foi pródigo para os cronistas de Bruzundanga. São tantos desatinos a cargo dos próceres da República, que muitos não saberiam nem por onde começar. Poderíamos, por exemplo, tratar da cruzada em prol da moral, da família e dos “bons costumes”, que o fanfarrão Bolsonaro e a tal bancada “evangélica” do Congresso deflagraram contra a cartilha anti-homofobia do MEC. Ou, ainda nas lides parlamentares, analisar a aprovação pela Câmara do novo Código Florestal, fruto de um insólito acordo entre um deputado comunista (?) e seus pares do latifúndio, que ganharão carta branca para o desmatamento da Amazônia. Quem sabe relembrar as estrepolias do abastado (e abestado) ministro Palocci, prato cheio para a mídia, o tucanato & Cia. Isso sem falar em Blatter, Havelange & Teixeira, os reis do “jogo sujo” na FIFA, cujas maracutaias os ingleses prometeram investigar com rigor...

Este dublê de cronista e professor de Letras não se furtará, porém, a abordar o recente “protesto” que alguns órgãos da grande mídia incentivaram contra a posição do MEC de avalizar uma obra didática que reconhecia o uso da expressão “os livro”. Sem nenhuma formação mais profunda na área, jornalistas e oportunistas de plantão chegaram a classificar de “crime linguístico” a atitude do órgão, um exagero só explicável, talvez, pela forma belicosa e artificialmente ideologizada mediante a qual são tratados temas do mais relevante interesse público em nosso país.

Em tempo: a obra não propõe, em nenhum instante, que tal construção seja utilizada no registro formal da língua escrita (na redação de um ofício ou na resolução de uma prova discursiva de concurso público, por exemplo). Somente reconhece que seu uso é comum e válido para comunicações de outro grau (como uma conversa entre jovens, em uma mesa de bar). Os autores não prescrevem, apenas descrevem um fato comum em países de precário investimento na Educação e profunda desigualdade social, como é o caso do Brasil, onde se estabeleceu um verdadeiro abismo entre a língua oral e a escrita, com reflexos profundos na história e na cultura nacionais.

Quatro séculos de casa-grande e senzala e 500 anos de mentalidade colonial fomentaram nas elites a perversa tendência a estigmatizar a linguagem das classes populares, assim como a deliberada recusa em admitir que os usos linguísticos compreendem distintos graus de realização, desde as formas mais populares e informais até aquelas mais cultas e formais. Aliás, a elite sabe que a língua é plural, mas só aceita as formas que ela elege: do Vossa Mercê colonial, saiu o você coloquial e o suncê dos pretos velhos – qual o valor de cada expressão no “mercado” das formas simbólicas?

Esse moralismo dos “guardiões da língua”, contudo, tem pernas bem curtas. Que o diga o cínico Alexandre Garcia (ex-porta-voz da ditadura e serviçal feroz da corporação Globo): ao expressar sua ácida crítica ao MEC na TV, ele usou “tava” (bem coloquial e oral) em lugar de “estava”, sem perder a pose de falante culto e letrado. Como se vê, no meio “jornalístico”, pimenta neves no texto dos outros é refresco... Aliás, o que dizer dos moderninhos da mídia, que não conseguem enunciar uma frase sem usar algum termo em inglês? Haja paciência para tanto bullying, burnout, commodities e outros menos cotados.

Mas não pense que tudo está perdido, caro leitor. No país dos bilhões superfaturados da Copa e Olimpíadas, já há claros sinais de revolta e indignação contra o descaso com a Educação. Em Audiência Pública na Assembleia Legislativa potiguar, a Profª Amanda Gurgel lascou sua réplica lapidar aos nobres e cultos deputados, mestres na arte de citar cifras, indagando-lhes se os “três algarismos” do seu contracheque (R$ 930,00) seriam suficientes para sustentar o padrão de vida dos membros daquela ilustre casa de Noca ou, ao menos, a “indumentária” que eles exibem no plenário. Alguém respondeu???


(publicado originalmente na edição 431 do jornal Brasil de Fato)


Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e da Gramática Crítica: Teoria & Prática.


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