terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A constituinte, as igrejas e a questão LGBTI em Cuba

Por Cristina Silva
21 de dezembro de 2018



Antes de uma breve explicação do funcionamento da Constituinte, é necessário trazer à luz a participação da militância LGBTI durante o processo da constituinte e para além da constituinte. Infelizmente, de maneira oportunista, a presença dos movimentos LGBTI em Cuba ainda é falsamente compreendida como grupos isolados e anticomunistas, que fazem oposição “ao regime Castro”. O mesmo é feito em relação à impressão que temos sobre as discussões sobre sexualidade em Cuba, algo que remete a estagnação e a conservadorismo que é taxado como “moral revolucionária” por muitos estudiosos neoliberais. Porém, a prática cotidiana da presença da luta LGBTI em Cuba é completamente distinta do descrito.

As fake news aceitáveis de sempre.

Não é a primeira vez que os feitos do povo cubano viram motivos de discussões intermináveis sobre seu comprometimento com a defesa da revolução socialista. Nos últimos anos, principalmente após a morte do camarada Fidel Castro, os mais diversos setores anticomunistas, à direita e à esquerda, aproveitaram o momento de comoção nacional para fragilizar o sentido cotidiano da manutenção da revolução.

Os processos de renovação dos personagens políticos cubanos, sejam do Partido Comunista ou do Estado, também são instrumentalizados nesse sentido. Os meios de comunicação, principalmente aqueles ligados às empresas que lucram com o embargo contra Cuba, mantém a formula de atacar o socialismo cubano desmoralizando sua reputação e relativizando os princípios políticos que constroem suas ações cotidianas.

A bola da vez é o processo de constituinte que está acontecendo em Cuba e, em específico, o matrimonio igualitário. Será desenvolvido mais à frente como funciona o caminho de renovação da constituição cubana e, agora, nos ateremos a analisar como a polêmica surgiu em torno desse tema especifico. Afinal, o processo de atualizar uma carta magna exige que lidemos com uma infinidade de questões, mas existem motivos concretos para que nem todas sejam merecedoras de tamanha atenção por parte da indústria das fake news.

No Brasil, a fake news chegou por meio de uma matéria online postada no Portal G1, da Rede Globo, que já deixava nítido em seu título que houve desistência no avanço do reconhecimento do matrimonio igualitário, o que compreenderia o reconhecimento legal da união entre pessoas LGBTI’s (1). A matéria afirma que após discussões em “assembleias populares”, a decisão foi tomada pela constatação de que maioria da população seria contrária à proposta. Há também outros portais, principalmente espanhóis, que afirmam que a decisão foi tomada por conta da interferência das igrejas católicas e protestantes no processo.

Para compreender as defesas que alertam sobre a falsidade dessas matérias, é necessário compreender quais seus instrumentos de falsificações e imprecisões propositais. Por isso, o objetivo desse texto nada mais é que contextualizar como essa fake news em específico foi criada e fazer algumas considerações necessárias sobre a história e a atualidade do movimento LGBTI em Cuba.

A ORIGEM DA PROPAGANDA DE DESRESPEITOS AOS DIREITOS LGBTIs COMO CARACTERÍSTICA IMUTÁVEL DA REVOLUÇÃO CUBANA: OS ERROS DA REVOLUÇÃO E APAGAMENTO DO PROCESSO DE AUTOCRÍTICA.

Antes de uma breve explicação do funcionamento da Constituinte, é necessário trazer à luz a participação da militância LGBTI durante o processo da constituinte e para além dela. Infelizmente, de maneira oportunista, a presença dos movimentos LGBTI em Cuba ainda é falsamente compreendida como grupos isolados e anticomunistas, que fazem oposição “ao regime Castro”. O mesmo é feito em relação à impressão que temos sobre as discussões sobre sexualidade em Cuba, algo que remete a estagnação e a conservadorismo que é taxado como “moral revolucionária” por muitos estudiosos neoliberais. Porém, a prática cotidiana da presença da luta LGBTI em Cuba é completamente distinta do descrito.

Primeiro, as críticas anticomunistas que são oportunistas devem ser denunciadas como tal, porém antes é necessário descobrir quais são suas bases históricas. No caso das denúncias cotidianas sobre o desrespeito aos direitos LGBTI’s, elas se assentam em erros reais e concretos que aconteceram em Cuba nas décadas de 1960-1970. É preciso conhece-los para que possamos atuar de maneira justa e precisa contra as fake news sem negar a verdade histórica. Entre as falsificações que lançaram verdadeiras guerras em nome do comando da narrativa histórica dos acontecimentos, os fatos explorados são a formação das Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAP) (1965-1968) e o Quinquênio Cinza (1971-1976).

Desenvolveremos agora como aconteceu o processo de autocrítica da revolução cubana pelo seu consentimento com a homofobia (e recentemente reconhecido e combatido, a transfobia), inclusive até dentro das fileiras do Partido Comunista, ao contrário do que era feito na luta contra o machismo e racismo – que já contavam com avanços concretos. Esse processo é constante a partir do momento que militantes comunistas e da comunidade LGBTI denunciaram e conseguiram o reconhecimento das consequências de suas denúncias sobre o que acontecia na ilha.

As UMAP’s foram respostas do povo cubano, principalmente do governo revolucionário que tinha alcançado triunfo em 1959, às continuas agressões terroristas promovidas pelos Estados Unidos por meio de ações da CIA. Em uma entrevista sobre a questão LGBTI em Cuba, a diretora do Centro Nacional de Educação Sexual e militante pelos direitos das pessoas LGBTI’s em Cuba, Mariela Castro, respondeu sobre a origem das UMAP’s:

“Nosso país se encontrava constantemente sob a agressão dos Estados Unidos: a Baía dos Porcos em abril de 1961, a Crise dos Mísseis em 1962, e os grupos da CIA compostos por exilados cubanos, que multiplicavam os atentados terroristas. As bombas explodiam todos os dias em Cuba, queimavam canaviais, sabotavam as ferrovias, atacavam teatros com bazuca. Não se pode esquecer essa realidade, vivíamos em estado de sítio. Grupos paramilitares agiam nas montanhas do Escambray e assassinavam trabalhadores rurais favoráveis à Revolução, torturavam e executavam jovens professores que tinham se integrado à campanha de alfabetização. No total, 3.478 cubanos perderam a vida por conta do terrorismo naquela época. Foi um período muito difícil, nós nos encontrávamos permanentemente agredidos e a luta de classes estava em seu auge. Os latifundiários tinham reagido com muita violência à reforma agrária e não estavam dispostos a perder sua posição de poder na sociedade. Então havia uma mobilização geral para a defesa da nação, e neste contexto nasceram as Umap.” (2)

Além do seu papel de interiorizar a firmeza da revolução contra os ataques terroristas dos Estados Unidos, as UMAP’s também possuíram o papel de integrar aos processos de produção grupos considerados contrários à revolução. Todos os homens com idade de entrar no serviço militar foram levados a servir nas UMAP’s, apenas abrindo exceção para aqueles que já possuíam trabalho fixo.

Foi grande a adesão da população às unidades e também à cobrança pela integração desses grupos considerados marginais. Mariela descreve que essa classificação de “grupos marginais”, além de incluir homens de famílias burguesas, também atingiu grupos hippies e pessoas homossexuais, que na época eram consideradas exemplos ruins para sociedade cubana.

O episódio das UMAP’s é responsável pela origem de falsas denúncias sobre a existência de campos de concentração para “gays” cubanos, pois seu funcionamento se dava nas mais diversas regiões interioranas de Cuba. Não há registros de UMAP’s criadas exclusivamente para pessoas “gays” como muitos estudos e denúncias afirmam, porém é fato que pessoas “gays” foram integradas e sofreram violências por conta de sua orientação sexual.

Com o fim das UMAP’s, nós tivemos de fato o pior momento para pessoas LGBTI’s – nesse tempo, ainda somente entendidas como “gays” – que foi o Quinquênio Cinza de 1971 a 1976. Mariela Castro segue desenvolvendo suas considerações também sobre esse período:

“O ostracismo do qual foram vítimas os homossexuais neste período foi muito pior que o sofrido nas Umap e teve um impacto terrível na vida pessoal e profissional dos homossexuais. No Congresso Nacional de “Educação e Cultura”, em 1971, foram estabelecidos parâmetros exclusivos contra pessoas com orientação sexual distinta do que se considerava a regra. Os homossexuais não podiam trabalhar com educação ou cultura porque consideravam, de forma arbitrária, que seriam maus exemplos para crianças e alunos e que era necessário afastá-los da juventude. Apesar de poderem encontrar emprego em outros setores, não podiam integrar esses dois campos e, por conseguinte, eram discriminados. Foi uma experiência muito dura para eles. Imagine o caso de uma pessoa que desejava ser professor, por vocação, mas seu acesso a esse mundo era proibido por conta do sectarismo, da intolerância de alguns dirigentes e burocratas. Proibir um estudante de ser médico ou outra coisa em razão de sua orientação sexual é inaceitável para quem acredita nos valores de liberdade e justiça. Isso durou muitos anos. Eles eram lembrados sistematicamente de sua condição de minoria sexual. Alguns vivenciaram essa situação melhor que outros, mas muitos sofreram ostracismo e discriminação. ” (3)

É somente com a luta de militantes da comunidade “gay” e comunistas, de dentro e fora do Partido, que o processo de autocrítica de cuba se inicia em 1976 também com uma constituinte. Após extensos debates, encabeçados principalmente pela Federação de Mulheres Cubanas, as discriminações por orientação sexual foram derrubadas e consideradas inconstitucionais. Mariela, porém, defende que isso não foi suficiente para minimizar a homofobia da sociedade cubana e do próprio governo revolucionário, por isso foi necessário seguir incansavelmente o caminho da autocrítica da revolução em relação aos debates sobre sexualidade, ainda considerados de menor importância.

Mariela descreve que era comum “zombar das pessoas homossexuais” e considera-las inferiores por causa da homofobia arraigada tanto na sociedade cubana quanto ao redor do mundo. Castro explica:

“Era difícil abordar a homossexualidade naquela época. Tratava-se da problemática em alguns cursos, pois a Associação Americana de Psiquiatria, muito adiantada em relação ao seu tempo, deixou de considerar a homossexualidade uma doença em 1974. Convém lembrar que a OMC (Organização Mundial da Saúde) só deixou de considerar a homossexualidade um transtorno mental em 1990! ” (4)

Somente graças a militância da FMC, principalmente a partir da coordenação de Vilma Espín – mãe de Mariela Castro -, é que o socialismo cubano passa a entender como fundamental que a luta socialista seja também uma luta contra a homofobia, assim como já existia em relação ao racismo e ao machismo, sobre os quais Cuba já era referência internacional na equidade de direitos. Os grupos de trabalho iniciados para “avaliar as dificuldades e a mensurar as discriminações das quais homossexuais e lésbicas eram vítimas” foram desenvolvendo ações até formarem, em 1988, o Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX).

Muitas vezes em oposição ao próprio PC, que relutou em reconhecer a própria população, a FMC deu espaço a vozes muitas vezes silenciadas e minimizadas por “outras prioridades revolucionárias”. Por isso, é necessário conhecer e saudar camaradas como Vilma Espín, Célia Sanchez, Haydée Santamaría, Melba Hernández e tantas outras que contribuíram, dentro de suas limitações enquanto mulheres do seu tempo, para o avanço das questões sexuais em Cuba.

Por isso, é verdade que há grupos LGBTI’s cubanos anticomunistas e que fazem oposição ao socialismo, como o Projeto Sociocultural Babel e a La Fundación Cubana por los Derechos – ambos com sede em Miami -, porém não estão nem perto de resumirem os movimentos LGBTI’s atuais. A partir daqui é preciso destacar o trabalho do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX) como aglutinador de inúmeros movimentos LGBTI’s à esquerda e revolucionários, além de vários outros grupos e debates dentro da sexualidade. Sobre a origem do CENESEX, vejamos suas raízes:

“En 1962 la Federación de Mujeres Cubanas convoca a algunos especialistas de salud pública e inicia los programas de educación sexual, planificación familiar y salud reproductiva, que incluyó además acciones en la comunidad a fin de eliminar estereotipos y tabúes así como incrementar la información y orientación sobre salud con un enfoque científico integral. Desde los inicios se previó un programa cubano de educación sexual que debía ser aplicado no sólo por la Federación de Mujeres Cubanas y el Ministerio de Salud Pública, sino también por el Ministerio de Educación y otras organizaciones juveniles.” (5)

Após a convocação descrita acima, em 1972, nasce o Grupo de Trabalho Nacional de Educação Sexual (GNTES), com a missão de criar um Programa Nacional de Educação Sexual. Construído por profissionais da saúde e educação, além de militantes das FMC e de pessoas LGBTI’s que foram atingidas pelas políticas do Quinquênio Cinza, o grupo foi responsável pela criação do CENESEX em 1988 como produto de suas ações.

Hoje, o CENESEX é um espaço de acolhimento, militância e estudo sobre as questões sexuais em Cuba e no mundo. Para além disso, o centro também vem avançando em introduzir políticas públicas de planejamento familiar revolucionário que combatam o sexismo e a divisão do trabalho por gênero, que resulta no seio família burguês nas triplas jornadas de trabalho para mulheres da classe trabalhadora.

Somente em 2018, para termos uma noção da atuação cotidiana do CENESEX, nós tivemos a Jornada Pelo Não à Violência contra a Mulher (6), o lançamento do livro “La integración social de las personas transexuales en Cuba” da camarada Mariela Castro – que é diretora do CENESEX –(7), a realização do Primeiro Encontro Sobre Comunicação Gênero e Equidade: é necessário falar sobre a violência contra mulheres e crianças (8) e, sendo evento anual principal, a 11° Jornada em Cuba Contra Homofobia e Transfobia, que iremos desenvolver mais à frente. Também tivemos a Jornada em Cuba de Maternidade e Paternidade – que produziu o primeiro Manual de Paternidade Responsável! – (9), o Congresso Cubano de Educação, Orientação e Terapia Sexual (10) e a contribuição de Cuba para o debate sobre Educação Sexual na Finlândia (11). Todos esses eventos foram sediados em províncias diferentes e foram integradas as agendas dos sindicatos, escolas, assembleias e produziram espaços públicos para livre circulação e participação.

Sobre a Jornada em Cuba Contra Homofobia e Transfobia, sendo realizada há onze anos, nós estamos falando de um mês de eventos que mobilizam toda ilha e também é integrada aos calendários dos mais diversos espaços, além das assembleias. Seu objetivo é promover espaços de combate à homofobia e, há dois anos, devido ao avanço dos debates sexuais, à transfobia. Os temas são anuais e podem se repetir caso os organizadores reconheçam que ainda há mais o que se fazer. É o que acontece há dois anos com o tema “Eu me incluo”. Em 2017, nós tivemos a temática “Eu me incluo: por espaços de trabalho sem homofobia e transfobia! ” (12).

Esse ano, de 2018, a temática principal foi o combate da homofobia e transfobia nas escolas (13) (14) (15) (16) (17) (18) (19) (20) (21). Todo final de Jornada é finalizado com a Conga, um desfile público que lembra a proposta das Paradas de Orgulho LGBT brasileiras – porém, que mantém a tradição da festa da diversidade em conjunto com os debates políticos prioritários! – (23), e a Gala, apresentações artísticas da comunidade LGBTI (24).

Em ambos os eventos, nós temos reunidos uma tremenda participação cidadã, as mais diversas autoridades, militâncias, convidados de outros países e o respeito pelo protagonismo e inclusão da população LGBTI por suas próprias mãos. Esse ano, durante a Conga, a camarada Marielle Franco foi homenageada e o povo cubano foi informado sobre o crime feito contra sua vida e a luta do povo negro e favelado no Brasil (25).

Todos os espaços citados acima formaram a população cubana para debater os temas ligados à sexualidade que estariam presentes tanto na atual reforma constitucional quanto na futura reforma do código familiar. É verdade que todos os anos de atuação do governo cubano e da militância LGBTI contra a homofobia, transfobia e machismo ainda não foram suficientes para exterminar essas opressões da revolução, porém passos fundamentais estão sendo construídos há décadas e que buscam superar até mesmo a necessidade de autocritica do povo cubano para consolidar avanços que nenhum outro país no mundo teve coragem de enfrentar.

O que é a constituinte e como funcionam essas “assembleias populares”?

Antes de compreendermos por si só o processo de constituinte, é necessário que atentarmos para o organização do sistema do Poder Popular, que organiza o povo cubano. Em artigo publicado pelo Brasil de Fato, Anita Prestes explica:

“O sistema do Poder Popular se apresenta atualmente em Cuba da seguinte maneira: no nível nacional, a Assembléia Nacional do Poder Popular; em cada uma das 14 províncias, as Assembleias Provinciais do Poder Popular e nos 169 municípios, as Assembleias Municipais; no nível de comunidade, os Conselhos Populares (1540); cada Conselho agrupa várias circunscrições eleitorais e é integrado pelos seus delegados, dirigentes de organizações de massas e representantes de entidades administrativas. No nível de base, ainda que sem formar parte de maneira orgânica da estrutura do sistema do Poder Popular, nem do Estado, tem-se a circunscrição eleitoral. ”(26)

Conhecer essa estrutura básica é fundamental para que possamos entender como o projeto de constituição que está sendo discutido conseguiu mobilizar tanto a população cubana, afinal ele não somente foi até às ruas para ser visto como foi analisado e debatido nelas. Porém, antes do anteprojeto ser levado às ruas para discussões nas províncias e bairros, uma comissão formada pela Assembleia Nacional do Poder Popular foi montada com 33 deputados que ficaram responsáveis de elaborar o anteprojeto, após passarem quase cinco anos num grupo de trabalho que se dedicou a estudar os projetos constitucionais por todo mundo e, principalmente, experiências de poder popular na América Latina (27).

Após o anteprojeto ser aprovado pela Assembleia Nacional, ele foi enviado para todas as províncias, seus respectivos bairros e os delegados ficaram responsáveis de mobilizar espaços públicos, em todas as circunscrições eleitorais, que buscassem debater os pontos levantados no anteprojeto com todos os cidadãos de sua área. O texto se compõe do preâmbulo, 224 artigos (87 a mais do que a atual Constituição), divididos em 11 títulos, 24 capítulos e 16 seções. Da atual Constituição da República se mantêm 11 artigos, modificam-se 113 e 13 são eliminados (28).

Quando lemos a matéria do G1, nós somos levados a entender que houve um sonoro “não” em relação a nova proposta para definição do matrimonio presente no anteprojeto. Porém, as discussões do documento não foram feitas a partir do “não” ou do “sim”, mas por debates intensos nos mais diversos espaços citados acima que deliberavam, de acordo com os presentes, a manutenção ou alterações como acréscimos, supressões totais ou parciais, etc. Em pouco mais de três meses de discussões, nós temos registrado a realização de cerca de 90 mil assembleias e 192 mil opiniões produzidas somente sobre esse ponto em especifico. O que foi produzido nesses espaços foi levado de volta à comissão parlamentar e sistematizado para produção do projeto de constituição, que novamente será discutido pelos delegados na Assembleia Nacional, para somente depois ser aprovado por meio de referendo popular mediante ao voto secreto e direto de cada cidadão.

Ou seja, é um complexo sistema de espaços deliberativos que se organizam de maneira conectada ao ponto que a Assembleia Nacional não pode funcionar sem que haja discussões realizadas nas assembleias de bairros, que por sua vez são mobilizadas em conjunto com as circunscrições eleitorais. Antes de seguirmos para o próximo ponto, a leitura completa do artigo “O sistema político em Cuba: uma democracia autêntica”, de Anita Leocádia Prestes, é uma leitura obrigatória para todos aqueles que buscam entender o sistema político cubano para além da breve e frágil explicação descrita acima.

A polêmica das igrejas.

Em conexão à repercussão do título da matéria mencionada acima, nós também vemos circulando acusações que o “governo cubano” estaria cedendo às pressões de lideranças fundamentalistas religiosas ligadas ao cristianismo. Ao buscar a origem dessas informações, é possível notar que ela vem de sites anticomunistas e que fazem oposição ao socialismo cubano a partir de instrumentalizações de pautas dos direitos humanos. O Diario de Cuba (29) e o IPS Cuba (30) são os principais cubanos a reportarem essas interpretações que logo são reproduzidas pelos mais diversos portais, de diferentes cantos do mundo, que também são oposições autonomeadas liberais e/ou conservadoras ao “regime cubano”. Vejamos a seguir o que vem, de fato, acontecendo em relação as mobilizações das igrejas católicas e neopentecostais.

Primeiro, é fato que ambas as igrejas sejam contrárias ao reconhecimento legal do matrimonio de pessoas LGBTI’s, porém não é verdade que haja uma aliança geral das igrejas católicas e evangélicas por uma militância contra a aprovação dos avanços em relação à sexualidade. Ou seja, não são todas as igrejas neopentecostais e católicas que estão engajadas nessa temática, nem há, de acordo com a apuração dos fatos, uma união entre a igreja católica e as neopentecostais para intervir na constituinte como se está dando a entender. É claro que ambas as igrejas possuem seus interesses concretos na constituinte, porém a organização afirmada não foi constatada.

Sobre a Igreja Católica, a conferência dos bispos católicos de Cuba lançou uma Mensagem Pastoral sobre seus posicionamentos sobre a constituinte (31). Não há muitas novidades em relação aos posicionamentos pelo mundo do atual Vaticano: o respeito aos direitos humanos, o presar pela manutenção tradicional da família na educação e criação das crianças, e a soberania da dignidade dos homens e mulheres. A mensagem também reconhece e reafirma a imersão e mobilização do povo cubano no processo de constituinte.

Certa agressividade, de fato, contra a aprovação do reconhecimento do matrimônio igualitário vem de algumas igrejas neopentecostais. É preciso destacar que, em Cuba, estão inscritas 52 denominações protestantes; 25 são pentecostais e 27 neopentecostais. 57,4% dessas denominações estão concentradas em Havana, capital de Cuba (32). As denominações à frente das mobilizações contrárias ao matrimônio são a Assembleia de Deus e a Igreja Metodista, que afirmam serem as maiores representantes em números de fieis protestantes na ilha e mobilizam cerca de 100.000 a 300.000 pessoas (33).

Movimentos LGBTI’s que fazem oposição ao socialismo denunciam que o governo estaria dando espaço de autoridade para esses setores (34), que chegaram a realizar um protesto nas ruas e produzir uma campanha audiovisual contra a aprovação do matrimônio – o que não é ilegal. Apesar de não citarem o falso conceito de “ideologia de gênero”, ambas as denominações evangelicas trabalham na mesma linha.

O que não é citado nessas denúncias nem nos portais é a atuação do próprio CENESEX, da FMC, da Juventud Rebeld, militantes do PC e estadistas cubanos, incluindo o presidente Miguel Díaz-Canel, que já se declararam a favor do reconhecimento do matrimonio igualitário e defenderam o avanço constitucional. Porém, os próprios meios de comunicação e movimentos cubanos que denunciam que Cuba é uma ditadura autoritária estão agora criticando o respeito ao devido processo legal revolucionário pelo espaço dado, também, aos cidadãos contrários à aprovação do matrimonio nos espaços de discussões.

É verdade que existe um risco dessa oposição ao reconhecimento do matrimonio dificulte sua aprovação constitucional e mudanças no Código Familiar, que virão nos próximos anos, porém isso não quer dizer somente que existe um setor conservador na ilha. Essa mobilização contrária a aprovação do matrimonio, apesar de outras conquistas terem sido concretizadas – o que vamos falar em outro momento-, vem sendo assumida pelos militantes cubanos LGBTI’s e pelos espaços institucionais como uma prova que é necessário avançar nas mobilizações construídas até hoje.

O camarada Francisco Rodríguez Cruz, grande militante LGBTI do Partido Comunista e um dos responsáveis pelos avanços que Cuba conquistou, escreveu um texto de leitura fundamental intitulado “¿Qué pasó con el matrimonio en el proyecto de Constitución?”, que faz uma análise breve e direta sobre a questão do matrimonio (35).

O que temos até agora?

Bom, para finalmente concluir, é necessário que elenquemos o que foi feito em relação ao tema até agora. Após a viralização de notícias falsas sobre o retrocesso da questão do matrimonio, vários militantes cubanos a favor do avanço estão se manifestando para esclarecer o que houve de fato. Primeiro, todos apontam a necessidade de esclarecer o que há na atual constituição, que está passando pelo processo de constituinte. De acordo com a atual constituição cubana, no capítulo três, o casamento é definido da seguinte forma (36):

“Artículo 36. El matrimonio es la unión voluntariamente concertada de un hombre y una mujer con aptitud legal para ello, a fin de hacer vida en común. Descansa en la igualdad absoluta de derechos y deberes de los cónyuges, los que deben atender al mantenimiento del hogar y a la formación integral de los hijos mediante el esfuerzo común, de modo que éste resulte compatible con el desarrollo de las actividades sociales de ambos.”

No projeto de constituição que foi enviado ao debate nas ruas, a proposta de substituição foi a seguinte (37):

“Artigo 68. O matrimônio é uma união voluntariamente aceita entre pessoas com aptidão legal para isso, a fim de construir uma vida em comum. Descansa em igualdade absoluta de direitos e deveres dos conjugues, que estão obrigados a manutenção da casa e da formação integral dos filhos mediante a esforço comum, de modo que isso resulte compartilhado com o desenvolvimento de suas atividades sociais.”

Além disso, a décima primeira disposição transitória vem trazendo em conjunto a necessidade de retorno e aprofundamento do artigo nas discussões sobre o Código Familiar e suas disposições sobre matrimonio. Essa é a proposta discutida e que estão lutando para aprovar agora. A polêmica mora exatamente na alteração feita entre aquilo que foi enviado às ruas e o que é discutido na assembleia. O que foi fruto dos debates nas ruas está sendo creditado à pressão das igrejas por parte dos sujeitos já mencionados. Contra esse processo de difamação e fake News, nós temos as seguintes declarações de militantes LBGTI’s em Cuba(38):

“Ativistas e amigxs!! Nos últimos minutos circularam informações acerca da nova formulação sobre o matrimonio contida no projeto de constituição que acaba de se apresentar na Assembléia Nacional do Poder Popular. Desafortunadamente, a mensagem tuitada por nosso órgão legislativo mutilou a nova proposta e com um enfoque não apropriado divulgou o que muitas pessoas estão interpretando como um retrocesso. Com toda responsabilidade devo esclarecer: a nova proposta mantem a essencia do artigo anterior proposto, pois apaga o binarismo de gênero e a heteronamatividade com ao qual estava definido o matrimonio na Constituição de 1976. A variação da nova proposta reside na substituição de “pessoas” por “cônjuges”, questão que mantém a possibilidade de que todas as pessoas possam acessar a instituição do casamento. Além disso, coloca como elemento novo as uniões de fato, sem vinculá-los a nenhum gênero; esta configuração, a longo prazo e segundo as estatísticas, é a mais utilizada na nossa sociedade. Não há retrocesso, a essência do artigo 68 se mantém. A luta continua. Agora vamos dar o SIM à Constituição e depois fechar fileiras para alcançar um Código de Família tão avançado quanto o novo texto constitucional. Cuba é nossa, Cuba pertence a todos. Não cedemos à chantagem fundamentalista e retrógrada que se opõe politicamente ao projeto emancipatório da Revolução Cubana.” Mariela Castro, diretora do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX).
“La próxima Constitución definitivamente no dirá de modo taxativo y discriminatorio que el matrimonio es la unión entre un hombre y una mujer como la vigente carta magna, y esto ya de por sí es un enorme paso de avance. Un triunfo que nadie nos puede escamotear ni disminuir, con una gran significación simbólica y práctica. Una puerta abierta hacia ese futuro matrimonio igualitario que queremos conseguir. Pero tampoco nuestra Ley de leyes definirá al matrimonio como la unión entre dos personas, como recogía la versión que discutimos en la consulta popular y que resultaba um concepto muy revolucionario. En relación con esa primera intención, retrocedimos. No logramos el consenso para mantener ese planteo. En palabras del secretario del Consejo de Estado ante diputadas y diputados, la decisión fue diferir el concepto de matrimonio de la Constitución. O sea, la Constitución no va a definir qué sujetos integran el matrimonio, y la ley definirá posteriormente cómo se constituirá el matrimonio. Tratemos de evaluar con imparcialidad los hechos. El artículo 68 del proyecto constitucional que discutimos fue el que más polémica generó de todo el texto, con 192 mil 408 planteamientos, el 24.57% del total, y el único que alcanzo una cantidad de seis dígitos. El matrimonio fue objeto de debate en 88 mil 066 asambleas, el 66% de las que acontecieron.” Francisco Rodríguez Cruz, jornalista e militante LGBTI.
“Me parece valida la aclaración que hace la compañera Mariela Castro y de ser así es una fórmula positiva. Reconozco que para muchos lo que ha sucedido es doloroso porque ya las fuerzas retrógradas dan vivas y hacen fiestas por lo alcanzado y eso a mi juicio es preocupante porque de ser así sería una derrota social y legal“. Gabriel Coderch, diretor do Centro Oscar Arnulfo Romero.
“Apoyo la nueva propuesta constitucional en relación al matrimonio. En primer lugar se expande la protección legal a las uniones consensuales y abre la posibilidad de reconocer otras formas de unión sin especificar género ni número de integrantes. Desde mi defensa del poliamor y la necesidad de despojar al matrimonio de carácter sacro, clasista y patriarcal, me parece una buena movida. La letra y espíritu de la versión actual no contradice al antiguo artículo 68 sino que lo trasciende positivamente en alcance.” Alberto Roque Guerra, militante LGBTI.

Podemos ver que, de fato, o debate não se encerrou nem tem o tom dado pelos meios de comunicação e movimentos contrários ao socialismo na ilha. Ao contrário, os nervos se mantém altos e muita água rolará pelos caminhos dessa discussão. Por fim, é necessário observar quanto é importante o cuidado na checagem das informações que carregamos e o quanto não estamos blindados contra as fake news entre os próprios setores da esquerda. O movimento LGBTI em Cuba é hoje fruto de um processo histórico complexo, cheio de contradições e que hoje caminha para além da autocritica de seus erros do passado. O que estamos presenciando diante de nossos próprios olhos, apesar das mentiras que nos cegam, é exatamente o povo cubano – todo ele, e não somente intelectuais ou militantes – encarando sua própria ferida da LGBTIfobia.

Cristina Silva, estudante da licenciatura em História pela UFPE e comunista.

FONTES E REFERÊNCIAS:

1 – Cuba desiste de mudança na Constituição que abriria caminho para casamento gay

2 e 3 – Sobre homofobia: Fidel Sempre assumiu a responsabilidade, diz Mariela Castro https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/26925/sobre-homofobia-fidel-sempre-assumiu-responsabilidades-diz-mariela-castro

4 e 5 – “PC era reflexo da sociedade cubana: machista e homofóbico”, diz filha de Raúl https://operamundi.uol.com.br/entrevista/26926/pc-era-reflexo-da-sociedade-cubana-machista-e-homofobico-diz-filha-de-raul

6 – Jornada Pelo Não à Violência contra a Mulher


7 – Lançamento do livro “La integración social de las personas transexuales en Cuba”

8 – Primeiro Encontro Sobre Comunicação Gênero e Equidade: é necessário falar sobre a violência contra mulheres e crianças: http://www.cubadebate.cu/noticias/2018/04/27/primer-taller-de-comunicacion-genero-y-equidad-hay-que-hablar-de-violencia-contra-mujeres-y-ninas/#.XBuxKVVKiM8


10 – Congresso Cubano de Educação, Orientação e Terapia Sexual

11 – contribuição de Cuba para o debate sobre Educação Sexual na Finlândia

12 – #MeIncluyo: Apuesta sin prejuicios a la diversidad sexual (+ Video)



15 – Escuelas si homofobia ni transfobia



18 – Vídeo: programacion de la XI Jornada em Cuba contra la homofobia e transfobia – https://www.facebook.com/cenesex/videos/1794112113986191/



21 – Programa televisivo sobre a necessidade das escolas combaterem a homofobia e transfobia: https://www.facebook.com/mesaredondacuba/videos/vb.97697217521/10155336061242522/?type=2&theater&hc_location=ufi




25 – FOTOS: Conga XI Jornada http://www.cubadebate.cu/noticias/2018/05/13/celebran-conga-cubana-contra-la-homofobia-y-la-transfobia-en-la-habana-fotos/


27 – Reforma Constitucional en Cuba: Diez preguntas claves (+ Fotos e Infografía)

Igrejas

29 – DIARIO DE CUBA | Denominaciones cristianas en Cuba se pronuncian contra el matrimonio homosexual



32- Iglesias protestantes y evangélicas en Cuba
https://www.ecured.cu/Iglesias_protestantes_y_evang%C3%A9licas_en_Cuba –

33 – Denominaciones cristianas: ‘Hay aspectos de la Constitución que contradicen el desarrollo de la Iglesia: http://www.diariodecuba.com/cuba/1537478587_41967.html

34 – Libertad de opinión sobre el matrimonio gay: para las iglesias sí, para la sociedad civil no: http://www.diariodecuba.com/cuba/1539967357_42496.html




FONTELavraPalavra

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