terça-feira, 18 de junho de 2013

DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO

Por Ellen Wood

A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas atuais condições econômicas e políticas é que um capitalismo humano, "social" e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal e utópico que o socialismo. (p. 250; ver fonte abaixo)


Resta saber se todos os "anticapitalistas" querem dizer a mesma coisa quando falam de democracia, e se concordamos quanto às condições necessárias para se chegar a ela. Creio poder afirmar que todos nós, pelo menos a maioria, consideramos indispensáveis as liberdades civis básicas - liberdade de expressão, de imprensa e outras. Mas se isso é tudo que esperamos não há diferença entre os anticapitalistas e os advogados "liberais" do capitalismo. [Parto] da premissa de que "democracia" significa o que diz o seu nome: o governo pelo povo ou pelo poder do povo.

É provável que essa definição tão ampla de democracia seja aceita pelos movimentos de oposição atuais, mas mesmo neste caso ainda haveria diferenças. Por exemplo, governo pelo povo pode significar apenas que o "povo", como um conjunto político de cidadãos individuais, tem o direito de voto. Mas também pode significar a reversão do governo de classe, em que o demos, o homem comum, desafia a dominação dos ricos. A definição usada [aqui] se aproxima desta última, em que "democracia" significa o desafio ao governo de classe.

Poderíamos efetivamente distinguir muitos tipos de "anticapitalismo" explorando a forma como vêem a compatibilidade entre capitalismo e democracia. Num extremo, ficariam aqueles para quem a democracia é compatível com um capitalismo reformado, em que empresas gigantescas são mais socialmente conscientes e responsáveis perante a vontade popular, e certos serviços sociais são ditados por instituições públicas e não pelo mercado, ou no mínimo regulados por alguma agência pública responsável. É possível que essa concepção seja menos anticapitalista que antineoliberal ou antiglobalização. No outro extremo, estariam aqueles que acreditam que, apesar da importância crítica da luta em favor de qualquer reforma democrática no âmbito da sociedade capitalista, o capitalismo é, na essência, incompatível com a democracia. E é incompatível não apenas no caráter óbvio de que o capitalismo representa o governo de classe pelo capital, mas também no sentido de que o capitalismo limita o poder do "povo" entendido no estrito significado político. Não existe um capitalismo governado pelo poder popular, não há capitalismo em que a vontade do povo tenha precedência sobre os imperativos do lucro e da acumulação, não há capitalismo em que as exigências de maximização dos lucros não definam as condições mais básicas da vida.

[...] O capitalismo é estruturalmente antitético à democracia não somente pela razão óbvia de que nunca houve uma sociedade capitalista em que a riqueza não tivesse acesso privilegiado ao poder, mas também, e principalmente, porque a condição insuperável de existência do capitalismo é o fato de a mais básica das condições de vida, as exigências mais básicas de reprodução social, ter de se submeter aos ditames da acumulação de capital e às "leis" do mercado. Isso quer dizer que o capitalismo coloca necessariamente mais e mais esferas da vida fora do alcance da responsabilidade democrática. Toda prática humana que é transformada em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático. Isso significa que a democratização deve seguir pari passu com a "destransformação em mercadoria". Mas tal destransformação significa o fim do capitalismo.

No mundo globalizado de hoje, parece que o processo de transformação em produto já avançou muito, já penetrou tão profundamente em todos os aspectos da vida e se espalhou para muito além do alcance de qualquer comunidade política, mesmo a nação-Estado, que o espaço para a democracia ficou muito estreito e muito pequena a probabilidade de desafiar o capital. Mas aqui, parece-me, chegamos a um paradoxo interessante. O capital foi capaz de estender seu alcance econômico para muito além  das fronteiras de qualquer nação-Estado, mas o capitalismo ainda está longe de prescindir da nação-Estado. O capital precisa do Estado para manter a ordem e garantir as condições de acumulação, e, independentemente do que tenham a dizer os comentadores a respeito do declínio da nação-Estado, não há evidência de que o capital global tenha encontrado um instrumento mais eficaz. Mas, exatamente porque o alcance econômico do capital se estende para além de todas as fronteiras políticas, o capital global necessita de muitas nações-Estados para criar condições necessárias de acumulação.

Acredito que hoje estejamos assistindo aos efeitos de uma contradição crescente entre o alcance global das forças econômicas e as instituições de administração e repressão locais e territoriais de que o capital ainda necessita. Acho mesmo que o padrão de intervenções militares em que os Estados Unidos estão engajados - guerras sem objetivos específicos, fronteiras geográficas nem prazos definidos (a "guerra ao terrorismo") - representa uma tentativa de enfrentar essa contradição crescente.

Mas isso já é outra história. A questão principal aqui é que essa contradição crescente oferece um pouco de esperança para as lutas de oposição. Enquanto o capital global depender dos Estados locais, como acredito que vai continuar a depender, esses Estados continuarão a ser um alvo potencialmente útil para as forças de oposição. As lutas democráticas visando alterar o equilíbrio das forças de classe, tanto dentro quanto fora do Estado, talvez representem o maior desafio ao capital.

FONTE: WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 7-9.


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