sexta-feira, 28 de junho de 2013

A nova tradução de “O capital”

Por Ricardo Musse
Momento alto do projeto de publicar as principais obras de Karl Marx e Friedrich Engels, a Boitempo apresenta, finalmente, o primeiro volume de O capital. A versão coube a Rubens Enderle, também responsável por outros volumes da série, entre eles, A ideologia alemã.
Trata-se da terceira tradução brasileira de O capital. O leitor dispõe, com isso, da possibilidade de confrontar diferentes soluções para conceitos clássicos (“mais-valia” nesta edição tornou-se “mais-valor”) e para passagens de difícil tradução.
Marx interessou-se pela economia política desde o início da década de 1840, data de suas primeiras anotações sobre o tema. O livro projetado de crítica daquela que constituía então a principal vertente do pensamento burguês foi postergado várias vezes. O avanço de suas pesquisas pode ser acompanhado em outros trabalhos: a crítica a Proudhon, em Miséria da filosofia (1847), e no Manifesto Comunista(1848).
Após a derrota da Revolução de 1848, na Alemanha e na França, Marx exila-se em Londres, cidade na qual passou o resto de sua vida. Dedica-se desde então integralmente ao projeto de “crítica da economia política”, premissa da compreensão da sociedade capitalista. A primeira versão desse trabalho, o manuscrito conhecido como Grundisse e publicado apenas em 1939, foi concluída em 1857-1858.
A primeira edição de O capital (reformulada significativamente quatro anos depois, por ocasião da segunda edição) saiu apenas em 1863. Nesses cinco anos, além de escrever os cadernos publicados postumamente como Teorias da mais-valia, Marx concentrou-se sobretudo na questão da exposição de sua pesquisa. A precisão formal do livro 1 de O capital (talvez o volume mais bem concebido da história) soluciona problemas de difícil encaminhamento.
Marx almejava uma redação de fácil apreensão, clara, límpida, que não afugentasse os principais destinatários do livro, os trabalhadores europeus. A principal dificuldade, no entanto, dizia respeito à necessidade de, sem prescindir do relato da gênese, não se limitar a uma exposição da história do capitalismo. A atualidade do livro assenta-se precisamente nessa combinação que faz com que O capital seja essencial a quem quer estudar o desenrolar histórico do capitalismo, mas não pode ser confundido com uma mero relato do processo de produção do capital.
O que torna o livro mais que uma história do capitalismo (cuja validade não teria como ir além da segunda metade do século XIX) é seu arcabouço conceitual: uma série de categorias e tendências cujos desenvolvimentos podem ser acompanhados e atualizados para o presente histórico. Na descrição do processo de acumulação do capital, Marx, por exemplo, aponta para a tendência à concentração e à centralização do capital que explica o recente predomínio globalizado das grandes corporações.
Para ele, a troca mercantil determina não apenas as relações econômicas e jurídicas, mas a própria sociabilidade no capitalismo. A compreensão dos desdobramentos políticos e culturais dessa sociedade não pode ignorar o fenômeno do “fetichismo da mercadoria”, que estrutura tanto a objetividade das relações econômicas e sociais como a própria configuração da ciência e da consciência em geral.
O acompanhamento teórico do fenômeno do fetichismo não descuida da elucidação das condições que o desvelam. Em suas diferentes manifestações, no dinheiro, no capital, na esfera da circulção, no âmbito da produção etc o fetichismo tem por avesso a situação de crise, de tal modo que não é inadequado considerar que o roteiro da crise (econômica, social, política, cultural) é moldado por uma intensificação do fetichismo que, por sua vez, escancara as contradições do capitalismo.
As classes, o conjunto dos trabalhadores e dos capitalistas, e com elas a figura do Estado entram em cena apenas no capítulo VIII, no qual quando Marx aborda a duração da jornada de trabalho. Essa, no entanto, é apenas a ponta do iceberg de um conflito social insolúvel que gira em torno do destino da mais-valia, pauta ainda hoje prioritária da luta de classes e das demandas por novos direitos sociais.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.

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