segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Racismo ordinário



Por Marcos César de O. Pinheiro

Domingo, 18 de outubro de 2009. Cheguei ao Rio de Janeiro vindo de Rio das Ostras. Já passava das 22h30min quando peguei uma kombi (da linha 311 – Rodoviária/Cavalcante) com destino ao bairro do Engenho da Rainha. O veículo saiu cheio. Ao lado do motorista havia um casal. Logo atrás, estavam eu e outro cara, uma jovem beirando no máximo 25 anos e uma senhora aparentando uns quarenta anos, com um menino de três no colo. No fundo da kombi, havia quatro homens.
Quando estávamos passando sobre o viaduto que desemboca na Feira de São Cristóvão – Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas –, vulgarmente chamada de “Feira dos Paraíbas”, uma blitz da Polícia Militar sinalizou ao motorista da kombi que encostasse. Todos os passageiros pensaram a mesma coisa: “Vamos levar uma ‘dura’ dos homens”. Alguns expressaram seus pensamentos.
O policial se aproximou do veículo, abriu a porta de trás e fitou os passageiros. Nenhum cumprimento da parte dele, apenas nos observava. Olhou um a um, certamente, para localizar possíveis “mulas” do tráfico de drogas. Seu olhar era de intimidação e superioridade. Afinal, não deixava de ser um executor legal da violência monopolizada pelo poder estatal.
Vivendo seu instante de “Rei Sol” (L’État c’est moi – O Estado sou eu), o representante da ordem pública iniciou um “interrogatório” com dois rapazes que se encontravam no banco de trás da kombi. Começou o diálogo com aquele que aparentava ter menos idade:

–– Tá vindo de onde?
–– De Niterói.
–– Vai pra onde?
–– Manguinhos
–– Fazer o quê?

Antes que o rapaz respondesse, a senhora com a criança no colo falou:

–– Ele está comigo. É meu filho. Tamos indo pra casa.

O policial indagou:

–– Está com a senhora?

Ela balançou a cabeça afirmativamente. Ele falou somente um “ok”. Dirigindo-se ao outro jovem interrogou:

–– Mora onde?
–– Niterói.
–– Tá indo pra onde?
–– Manguinhos.
–– Fazer o quê lá?
–– Trabalhar.
–– Trabalha em que?
–– De cozinheiro nas obras do PAC.
–– Cadê o crachá?
–– Não tenho.
––Trabalha no PAC e não tem crachá?
–– O vigia da obra já me conhece. Sou contratado, presto serviço, ainda não me deram nenhum documento. Mas tô com o uniforme aqui. Quer vê?

Antes que o policial falasse algo, abriu a mochila e mostrou sua roupa de serviço.
A autoridade, então, fechou a porta da kombi e ordenou:

–– Se adianta, piloto!

Pensei que todos nós seríamos interrogados, com exceção da criança, é óbvio. Afinal a lei não é igual para todos? Não é esse o ideário burguês que sustenta a nossa sociedade? Mas, na prática, os “travestidos de Luiz XIV” decidem quem será ou não submetido à lei (ou o que eles chamam de ordem legal).
Não sei os critérios utilizados pela polícia, mas, por acaso, os dois rapazes abordados eram negros. Para não ser injusto, devo dizer que havia um outro negro sentado entre esses jovens. Ele vestia roupa social, aparentando ser evangélico. Bom, a cor da pele não deve ser um indicativo exclusivo, pode ser que se articule a outros aspectos para definir os suspeitos de alguma contravenção. Porém, é inquestionável a utilização do quesito da coloração da cútis.
Como afirmou o historiador Boris Fausto, em entrevista à Revista Cult (edição 136), o racismo existia na sociedade brasileira e ainda existe. Trata-se do chamado “racismo ordinário” – expressão que os franceses usam como algo que se relaciona ao cotidiano, que está na cara. Ele está bem aqui, no nosso cotidiano, inscrito com todas as letras nas ações e nas omissões do poder público e da sociedade civil, lido e percebido facilmente por quem não anda distraidamente pelas ruas.


"Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. (Nelson Mandela)

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