sábado, 13 de outubro de 2018

BRASIL: EXISTE AMEAÇA FASCISTA?


Por  Anita Leocadia Prestes, historiadora



            Diante do fenômeno “Bolsonaro” que se explicitou com as eleições deste ano, parte das “esquerdas” se depara com a seguinte questão: podemos afirmar que existe uma ameaça fascista em nosso país? Seria correto identificar esse fenômeno com o fascismo?  
            Enquanto alguns empregam o termo fascismo como sinônimo de autoritarismo, identificando qualquer forma de regime autoritário com essa designação, outros a associam exclusivamente a regimes que se estabeleceram na Europa, durante os anos de 1920/1930, em especial os que contaram com as lideranças de Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália.
            Entre os últimos é comum recorrer à definição, proposta, em 1935, por Jorge Dimitrov, conhecido dirigente da Internacional Comunista, para afirmar que o avanço atual da direita no Brasil não deve ser associado ao fascismo. Segundo Dimitrov, o fascismo no poder se caracteriza por ser “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chovinistas e mais imperialistas do capital financeiro”[1]. Os críticos da adoção dessa definição para a situação que vem se configurando atualmente em nosso país não só questionam sua aplicação à nossa realidade, como, para justificar sua rejeição, recorrem a outros traços do fascismo europeu dos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial - a existência de partidos de massa, o expansionismo militar, o racismo declarado, etc. -, os quais não estariam presentes no Brasil.
            Cabe lembrar que Jorge Dimitrov escrevera também que é tarefa do fascismo “assegurar no sentido político o êxito da ofensiva do capital, da exploração e do saque das massas populares pela minoria capitalista e garantir a unidade da dominação dessa minoria sobre a maioria popular” [2]. Para o dirigente comunista, o recurso ao fascismo se explica pela necessidade do capitalismo assegurar sua sobrevivência e sua continuidade em momentos de crise – algo que, tudo indica, está acontecendo no Brasil de hoje.
            Ao buscar explicação para os regimes autoritários que se estabeleceram na América Latina durante os anos 1960/1970, o dirigente comunista de El Salvador, Schafik Handal, deu valiosa contribuição ao lembrar que “o fascismo acima de tudo é uma contrarrevolução”, afirmação que tanto pode ser entendida no sentido de salvar o capitalismo dos efeitos da Revolução Cubana, como afirma esse dirigente referindo-se ao período citado[3], quanto no sentido de salvar o capitalismo da grave crise que atravessamos agora no Brasil e em nosso continente e, em particular, do perigo potencial constituído pela possibilidade de revolta das massas frente às sérias consequências dessa crise, e das políticas adotadas pelos governos burgueses, para suas vidas e seu futuro.
            Shafik Handal destacava o papel modernizador do fascismo na América Latina, em comparação com a função dos “regimes tradicionais”, “conservadora, visando favorecer as oligarquias latifundiárias e burguesas”, acrescentando:
a função do fascismo é salvar o capitalismo dependente frente à revolução e modernizá-lo, favorecendo os consórcios transnacionais e os burgueses locais seus associados, salvar e consolidar a hegemonia política e militar do imperialismo ianque, ameaçada de colapso em nossa região.[4]
            Pode-se argumentar que hoje não existe no Brasil a ameaça de uma revolução. Entretanto, a experiência histórica mundial revela que as classes dominantes têm sempre preocupação com a possibilidade de uma insurgência popular e tratam de adotar medidas preventivas para salvar o regime capitalista. O fascismo é uma arma à qual os setores mais reacionários do capital financeiro recorrem para assegurar seus interesses. O panorama europeu atual é revelador nesse sentido.
            Não seria atitude coerente com uma análise marxista encaixar dogmaticamente a situação de hoje em esquemas elaborados para a Europa de oitenta anos atrás. Trata-se de captar a essência do fenômeno fascista para alcançar sucesso em possíveis analogias, que contribuam para o esclarecimento do momento atual.
Uma eventual vitória eleitoral de Jair Bolsonaro significaria a opção pelo fascismo de setores da extrema direita do capital financeiro internacionalizado na busca de uma saída anti-povo para a grave crise que afeta o Brasil nos últimos anos. Certamente, não é por acaso que o economista Paulo Guedes, seu principal assessor e provável ministro da Fazenda do seu governo, é um dos fundadores do Instituto Millenium (Imil), entidade que sabidamente defende e difunde os valores e os interesses do grande capital.[5]
 Se o grande capital optou na Alemanha, em 1933, pela entrega do poder a Hitler, o grande capital internacionalizado pode hoje, no Brasil, sem outra opção, entregar o poder a Bolsonaro, da mesma forma que o fez com Hitler, através de processos eleitorais, reveladores da grande insatisfação de numerosos setores sociais. Num país como o Brasil, onde inexiste tradição partidária, isso pode acontecer sem partido fascista, sem uniformes fascistas e sem a mística fascista dos anos 1930, sem expansionismo militar declarado e sem racismo explicito.  As formas são outras, mais elaboradas, com a utilização em larga escala dos meios fornecidos pela informática, mantendo sempre o discurso anticomunista e propagando a violência contra todos que se opõem aos seus objetivos, inclusive por meio da ação de hordas fascistas. Vale lembrar como exemplo desse emprego “moderno” da informática a colaboração com a campanha de Bolsonaro de Steve Bannon, estrategista de Donald Trump e especialista em desinformação.[6]
Se a eleição de Bolsonaro representa uma ameaça fascista, o que pode ser feito para impedi-la?
É necessário ter presente que a atual campanha eleitoral adquiriu características especiais: não estamos diante de uma campanha “normal”; ela acontece no bojo de grave crise econômica, social e política, marcada pela presença de um altíssimo índice de desemprego, de crescente deterioração das condições de vida de milhões de brasileiros, de acentuada insatisfação popular com a chamada “classe política” tanto pela sua inoperância quanto pelas denúncias de corrupção – expediente utilizado pela direita contra o PT, mas que contribuiu para o desgaste da maior parte dos partidos e dos políticos.
Frente a tal situação, existe o risco de as forças de esquerda voltarem a incorrer nos erros “ultraesquerdistas” condenados por Lenin em seu tempo, apesar de suas intenções, devido ao dogmatismo livresco que, em vez de acelerar o processo revolucionário, contribui para seu retrocesso. Como escreve Atílio Boron, cientista político marxista e comunista,
(...) a derrota de Bolsonaro é um imperativo categórico para as forças genuína e realisticamente empenhadas na construção de uma alternativa anticapistalista. Uma vez consumada, as forças de esquerda deverão aprofundar seus esforços para, afinal, construir uma maioria política e social - coisa que atualmente está muito atrasada – que impulsione a necessária radicalização de um eventual governo do PT e seus aliados. Sei que toda esta argumentação pode soar como inaceitável, ou o “menos pior”, para alguns setores do trotskismo, do anarquismo pós-moderno e do autonomismo da antipolítica. Mas, como dizia Gramsci, só a verdade é revolucionária, e na hora da eleição essa verdade se imporá com a inexorabilidade da lei da gravidade para impulsionar as forças populares do Brasil a impedir o triunfo de um fascista. Salvo, está claro, se os companheiros do gigante sul-americano me convencerem de que estão em condições de conquistar o poder de Estado e impor o socialismo pela via insurrecional, deixando de lado as manobras e maquinações da democracia burguesa. Seria uma grande notícia, mas falando com a franqueza que deve caracterizar o diálogo entre revolucionários, creio que essa alternativa é, no momento, absolutamente ilusória e fantasiosa. E, além disso, paralisante e suicida.[7]
            No momento atual, caracterizado pela inexistência no país de um movimento popular organizado – consequência em grande medida das políticas adotadas pelos governos do PT -, diante da ameaça fascista, a única alternativa possível para as esquerdas é o voto em Fernando Haddad, no esforço conjunto com outras forças sociais e políticas para derrotar a candidatura fascista de Jair Bolsonaro. Neste momento, trata-se do embate entre fascismo e democracia burguesa, cuja defesa era assumida por V. I. Lenin com a argumentação de que tal democracia, apesar das grandes limitações que impõe aos trabalhadores, apesar de ser uma garantia para os interesses burgueses, sempre é melhor para o avanço da organização popular que os regimes autoritários e, certamente, que o fascismo – último recurso do capital, quando a democracia burguesa deixa de ser uma garantia para seus lucros. V. I. Lenin escrevia em 1919:
(...) A democracia burguesa representa historicamente um avanço enorme em relação ao czarismo, à autocracia, à monarquia e a todas as sobrevivências do feudalismo. Certamente, devemos utilizá-la e então vamos levantar a questão de maneira que, enquanto não se colocar na ordem do dia a luta da classe operária por todo o poder, a utilização de formas de democracia burguesa é obrigatória para nós.[8]
Seria um erro fatal, para as esquerdas e as forças populares, embarcar na concepção do “quanto pior, melhor”, tendo como consequência um gravíssimo retrocesso de todo o movimento popular no Brasil e na América Latina.
                                                                             Rio de Janeiro, outubro de 2018.
             



[1] Jorge Dimitrov, “La ofensiva del fascismo y las tareas de la Internacional Comunista en la lucha por la unidad de la classe obrera, contra el fascismo”, em Jorge Dimitrov, El frente único y popular (Sofia [Bulgária], Sofia-Press, 1969), p. 117. (Tradução do espanhol desta autora)
[2] Jorge Dimitrov, “El frente único y la reaccion burguesa”, em  El frente único y popular, cit., p. 11. (Tradução do espanhol desta autora).
[3] Shafik Handal, “El fascismo en América Latina”, em América Latina (Moscou, Progreso, 1976), n. 4, p. 121-46; tradução desta autora.
[4] Idem; grifos do autor.
[6] Ver, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=B8u64kzj4FQ, consulta realizada em 9 out. 2018.

[7] Atílio A. Boron, “¿TIENE CURA EL "IZQUIERDISMO”?”, em   http://www.atilioboron.com.ar/2018/09/tiene-cura-el-izquierdismo.html , consultado em 12 out. 2018..;  tradução da autora.


[8] V. I. Lenin, “Informe no II Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia” (1919), em Obras Completas (em russo), t. 37 (Moscou, Ed. de Literatura Politica, 1974), p. 438; tradução da autora.

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