sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Lima Barreto: As mulheres da Revolução // Especial Revolução Russa

O Blog da Boitempo recupera, no contexto do dossiê especial sobre o centenário da Revolução Russa, uma série de artigos de Lima Barreto – todos escritos no calor da hora em 1918. A enérgica e afiada defesa pública da Revolução Russa que emerge nesses textos se mostra tanto mais audaciosa por parte de Lima Barreto se considerarmos que a tônica geral das referências da elite intelectual da época aos acontecimentos de Outubro e ao recém estabelecido governo soviético era bastante depreciativa, para dizer o mínimo.

Neste segundo artigo de Lima Barreto sobre a Revolução Russa que o Blog da Boitempo resgata, o escritor insiste na grandeza de mulheres como Vera Zasulitch, Alexandra Kollontai, e dispara: "Não posso negar a grande simpatia que me merece a Revolução Russa; não posso esconder o desejo que tenho de ver um movimento semelhante aqui, de modo a acabar com essa chusma de tiranos burgueses, acocorados covardemente por detrás da Lei, para nos matarem de fome".

Confira o primeiro artigo da série, o chamado “manifesto maximalista”, clicando aqui.

* * *

Vera Zasulitch

Por Lima Barreto.
14.07.1918, Brás Cubas

Afirmou Dostoiévski, não me lembro onde, que a realidade é mais fantástica do que tudo o que a nossa inteligência pode fantasiar. Passamse, na verdade, diante dos nossos olhos coisas que a mais poderosa imaginação criadora seria incapaz de combinar os seus dados para criálas.

Esse caso de Vera Zasulitch, cujo retumbante processo fez estremecer a Europa, em 1878, é um deles. Tudo nele é estranho e convém ser ele lembrado agora, quando a Revolução Russa abala, não unicamente os tronos, mas os fundamentos da nossa vilã e ávida sociedade burguesa.

Não posso negar a grande simpatia que me merece um tal movimento; não posso esconder o desejo que tenho de ver um semelhante aqui, de modo a acabar com essa chusma de tiranos burgueses, acocorados covardemente por detrás da Lei, para nos matarem de fome, elevando artificialmente o preço dos gêneros e artigos de primeira necessidade, como: o açúcar, a carne, o feijão, o arroz, o café, o sal, o pano, à custa de estancos, de trusts, de corners, de “alívios”, tráficos de homens e outras inacreditáveis espécies de assaltos à economia de toda uma população miserável, que já não tem por si nem os ministros do Evangelho, pois os padres, freiras e irmãs de caridade, todo o clero enfim, está amarrado à causa de semelhantes opressores e os apoia de todas as formas.

Disse Macaulay, num dos magníficos seus ensaios, que os filósofos franceses do século XVIII, quando combatiam a Igreja, estavam com os Evangelhos, pois a vetusta instituição religiosa de Roma cada vez mais se afastava deles; e os filósofos cada vez mais se impregnavam do espírito de Jesus. Hoje, parece que está acontecendo o mesmo com os revolucionários…

Nós, porém, – continuando – tal e qual a Rússia de 1878, dormimos. Como se lê no artigo de Victor Cherbuliez (G. Valbert), na Revue des Deux Mondes, de 10 de maio desse ano, os russos daqueles tempos, assim falavam do seu torpor:

“Tudo dorme; por toda a parte, na aldeia, na cidade, na téléga, no trenó, de dia, de noite, assentado, de pé, o negociante, o tchinoonik dorme; na sua ronda, dorme o vigilante, sob o frio da neve, sob o ardor do sol. E o réu dorme e o juiz dorme, os camponeses dormem com um sono de morte; se eles ceifam, lavram – dormem; se eles “surram” o trigo, dormem ainda. Aquele que fere e aquele que é ferido dormem igualmente. Só o botequim está acordado, com os olhos sempre abertos. E, agarrando com seus cinco dedos um garrafão de aguardente, a fronte para o Polo Norte e os pés no Cáucaso, dorme um sono eterno a nossa pátria, a nossa Santa Rússia.”

E nós poderíamos dizer do nosso resignado Brasil que ele, grande, imenso, rico e generoso, tendo os pés no Prata e a cabeça nas Guianas, com a gravata luxuosíssima do Amazonas ao pescoço, dorme completamente encachaçado, deixando que toda uma quadrilha, com lábias de patoás vários, o saqueie e o ponha a nu, como os judeus fizeram a Nosso Senhor Jesus Cristo.

É assim o Brasil. Todos dormem e só se lembram, quando interrompem um pouco o sono, de apelar para o Estado, pedindo tais ou quais providências: e ninguém vê que o Estado atual é o “dinheiro” e o “dinheiro” é a burguesia que açambarca, que fomenta guerras, que eleva vencimentos, para aumentar os impostos e empréstimos, de modo a drenar para as suas caixas-fortes todo o suor e todo o sangue do país, em forma de taxa alta de preços e juros de apólices.

Precisamos deixar de panaceias; a época é de medidas radicais.

Não há quem, tendo meditado sobre esse estupendo movimento bolcheviquista, não lobrigue nele uma profunda e original feição social e um alcance de universal interesse humano e de incalculável amplitude sociológica.

Pondo de parte os parnugianos e aqueles de mentalidade fóssil a serviço dos magnatas da Bolsa, da Indústria e do Comércio, todos os homens de inteligência e de coração, independentes, tanto aqui quanto acolá, ficaram pensativos diante de uma revolução que tão fundamente atingiu os alicerces, não só os de um grande e poderoso império, como também os de todas as concepções matrizes das atuais aglomerações humanas, chamadas civilizadas.

Não se podia compreender com a nossa mentalidade jurídicoburguesa, feita de detritos de tantas ideias coletivas diferentes e, por vezes, antagônicas, que meia dúzia de doidos vagabundos e ideólogos licenciassem, do pé para a mão, um exército de milhões de homens e pusessem um imperador, a sua mulher e seus filhos, na Sibéria.

Não foram os doidos, como Lênin e outros são chamados pelos burgueses; não foram eles. Foram os oficiais e os soldados que se desarmaram a eles mesmos. É que a reforma de ideias e sentimentos já estava feita no íntimo deles todos; e, como observou Oliveira Lima, não lhes satisfaziam muito aos ideais patrióticos e políticos; o essencial eram as medidas sociais. Puseram fora as carabinas…

De resto, tomo a liberdade de repetir aqui o que disse em A Lanterna, de 21 de janeiro último, com o pseudônimo de doutor Bogóloff, tratando do terremoto maximalista:

“Loucas ou não, é preciso contar com as suas utopias, pois se assim nos parecem hoje, talvez amanhã sejam disposições da legislação comum. A História nos ensina esse poder de que o nosso glorioso e ajuizado Afrânio Peixoto, desdenhosamente, com toda a superioridade de sua integridade mental, dá o nome de loucura ou outros mais rebarbativos. É uma força que não leva a Petrópolis; mas faz descer em um instante os que lá estão em namoro.”

É de toda utilidade notar que eu tinha antes citado o doutor Gustavo Le Bon, que é anarquista em física e ultramontano em sociologia, mas que não trepida em afirmar, no seu livro Civilisation des Arabes, que

“a ação da loucura há sido imensa. Os loucos fundam religiões, destroem impérios e levantam as massas. Sua mão poderosa tem conduzido a humanidade até aqui e a história seria toda outra, se a razão, e não a loucura, houvesse reinado sobre o mundo.”

São de meditar tais palavras quando vemos o baixo interesse ou a nossa proverbial preguiça mental tentar amesquinhar os revolucionários russos com o epíteto: loucos. Entre eles, há mulheres. Há até uma Mme. Kollontai, que é ou foi Ministro do Bem Público; não é de hoje, porém, que as mulheres russas, moças, em geral, se envolvem nesses movimentos, altruisticamente subversivos, do império dos Romanoffs. Esta Vera Zasulitch, que teve uma celebridade universal, é como o símbolo delas todas.

Acoimada de loucura, foi verificado que nada tinha disso.

De resto, essa história de loucura, como muitas outras, é simplesmente questão de sentido da contagem; para a esquerda do zero, é negativo; para a direita, é positivo. Mais nada.

No dizer de Cherbuliez, a deplorável vida que lhe haviam feito padecer os homens teria perturbado uma razão menos sólida que a sua. Com dezessete anos, apenas acaba de terminar a sua educação em um pensionato de Moscou, encontra-se com o revolucionário Netchaieff, e, por ter se encontrado com Netchaieff, passa dois anos nas casamatas de uma fortaleza, sem que pudesse saber do que era acusada.

Não via pessoa alguma; não recebia visitas dos pais ou parentes; os únicos rostos humanos que viu, durante esse largo prazo de tempo, mais largo ainda por não lhe darem tarefa alguma, foram o do guarda encarregado de lhe dar comida e o de sentinela que lhe perguntava, todo o dia, através das grades: Como vai a senhora?

Os seus vinte anos, ela os viu passar assim sepultados na escuridão de uma masmorra, quando eles lhe pediam sol, luz, alegria, brinquedos, namoros, Amor!

Solta, foi só em aparência, pois por toda a parte a perseguia a polícia, a terrível polícia russa. Sois livre, diziam, mas todos os sábados tendes de ir à presença do comissário.

Foi assim a sua mocidade; não enlouqueceu; mas a sua alma, como quer Cherbuliez, foi invadida por essa tristeza russa que tem a imensidade e o silêncio das estepes; e, de todas as tristezas humanas, é a mais triste.

Um certo dia, o general Trepoff, ministro ou prefeito ou chefe de polícia de São Petersburgo, vai visitar na prisão os presos políticos.

Entre estes, havia um certo Bogoluboff que se anima a falar ao inquisidor do Estado de gorro de prisioneiro à cabeça.

Por causa disto, Trepoff manda dar-lhe uma surra de varas e o detento é vergastado sem piedade.

Vera, uma espécie de Mariana das Terres Vierges, de Turgueneff, revolta-se ao ter notícia do fato.

Ela, no parecer do autor do artigo que estou resumindo; ela não era desgraçada por sua própria desgraça. Sofria por todos os oprimidos, por todos os deserdados; ou, antes, ela não sofria, ela se indignava, se revoltava. Vera ficava irritada ao mesmo tempo contra a sua impotência e contra a felicidade dessa gente por aí, calma, gorda e saciada, apesar de saber que milhões de pessoas gemiam e eram perseguidas de todos os modos.

Movida por esses sentimentos, ela, que nunca vira Bogoluboff, tão ferozmente injuriado e rebaixado de sua condição de Homem, jura vingar a ofensa e o suplício que lhe infligiram. Arma-se, procura Trepoff e mata-o, descarregando sobre ele todo o revólver que levava.

Foi a júri, confessou que obrara com todo o discernimento, com premeditação, de emboscada etc., etc.; e é absolvida.

O resto não nos interessa; o que nos interessa, é o caráter dessa mulher, é a sua abnegação, é o seu sacrifício em prol do sofrimento de outrem que ela absolutamente não conhecia.

Não trepidou ela em cobrir-se com o opróbrio de um assassinato, de arriscar-se ao cárcere de cujas dores tinha experiência pessoal, de jogar até a cabeça, para mostrar que era “solidária” com a desgraça, com a angústia, com a dor de um semelhante…

Há um epitáfio de um navegante grego, antigo, encomendado por ele mesmo, caso morresse de naufrágio, que assim diz: “O marinheiro que aqui jaz, diz-te: faze-te de vela! O golpe de vento que aqui nos perdeu fazia vogar ao largo toda uma flotilha de barcos alegres.”.

Vera não naufragou de todo; mas, se a Rússia morrer nesse transe, ela verá que o golpe de vento que a matou fará singrar ao largo toda uma flotilha de povos felizes.



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