terça-feira, 25 de abril de 2017

Uma volta a Gramsci para pensar na política de nosso tempo

Por João Vitor Santos | Tradução: Juan Luis Hermida

Guido Liguori recupera conceitos do pensador italiano em sua gênese e propõe reflexões que atualizam suas perspectivas como forma de tentar compreender o contexto do mundo hoje

Antonio Gramsci foi uma figura importante do Partido Comunista da Itália, mas, além de seu legado para a construção dessa perspectiva política, é interessante observar seus movimentos de revisão do pensamento sobre o Partido e dos próprios conceitos. É mais ou menos o que faz quando produz suas anotações na prisão, vítima do regime de Benito Mussolini. “Gramsci desde dentro de uma prisão fascista tinha visto melhor e mais longe, e o movimento comunista internacional e também o seu partido tiveram, no final, que lhe dar a razão, pelo menos parcialmente”, destaca o professor de História do Pensamento Político, o italiano Guido Liguori. “A Internacional Comunista teve que abandonar a política sectária e extremista do final dos anos ‘20 e do início dos anos 30’, reavaliar a questão do consentimento, das alianças, da democracia, reaproximando-se assim do pensamento gramsciano”, explica.

Tal movimento pode ser interessante, por exemplo, para pensar o papel e o lugar da esquerda no mundo de hoje. “A esquerda perdeu, em muitos países, a capacidade de uma proposta independente, cultural, bem como econômica, distintamente diferente daquela das classes dominantes”, aponta Liguori, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, o maior equívoco é apostar num mesmo remédio que a direita usa para enfrentar as crises. É “curar um sistema doente (o capitalismo), embora com diferentes medicamentos”. Assim, o professor destaca que o partido o qual Gramsci “pensa está de mãos dadas com os movimentos”, pois “sabe que não deve apenas ‘ensinar’ para as massas, mas também aprender com elas”. E aponta: “hoje a política e os partidos me parecem pouco dispostos a fazê-lo”.

Guido Liguori é professor de História do Pensamento Político na Universidade da Calábria, Itália e, atualmente, presidente da International Gramsci Society Italia (IGS Italia). Juntamente com Pasquale Voza, organizou Dicionário Gramsciano (São Paulo: Boitempo, 2017), recentemente lançado no Brasil. Liguori também é autor de Gramsci conteso. Storia di um dibattito 1922-1996 (Editori Riuniti, 1996) e Sentieri gramsciani (Carocci, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o pensamento de Antonio Gramsci pode inspirar-nos a pensar sobre as crises do nosso tempo?

Guido Liguori – Há certas categorias de Cadernos do Cárcere que são muito úteis para ler a realidade contemporânea. As categorias de “Estado Expandido”, de “revolução passiva”, bem como a de “hegemonia”, a mais conhecida entre as categorias de Gramsci, e outras, parecem-me as mais úteis atualmente.

A categoria gramsciana que hoje tem mais necessidade de “tradução” (outra palavra que faz parte do vocabulário de Gramsci) é aquela de “príncipe moderno”, ou seja, a sua ideia de um partido político, que me parece em crise. Mas talvez até mesmo por este aspecto, penso que Gramsci não estaria errado: o partido o qual ele pensa está de mãos dadas com os movimentos, com as classes mais baixas: ele sabe que não deve apenas “ensinar” para as massas, mas também aprender com elas. E hoje a política e os partidos me parecem pouco dispostos a fazê-lo. Obviamente sobre o significado desses conceitos, dos quais não posso estender-me aqui, referencio o Dicionário Gramsciano (São Paulo: Boitempo, 2017), que fiz com Pasquale Voza, e que acaba de ser traduzido no Brasil.

IHU On-Line – Que associações – e dissociações – podemos fazer entre o que hoje chamamos de crise da esquerda no mundo com o enfraquecimento do movimento comunista e o fracasso da revolução Ocidental analisados – e vividos – por Gramsci?

Guido Liguori – Eles são, sem dúvida, diferentes períodos históricos: Gramsci, apesar de escrever em uma prisão fascista, tinha imaginado a superação do fascismo, mas não o fim da União Soviética. Nós, especialmente na Europa, temos em comum com Gramsci o ponto de partida: viemos de uma derrota histórica. Devemos ter, como ele, a capacidade de repensar toda a situação e, como consequência, as nossas categorias.

IHU On-Line – A ideia de classe de Gramsci nos ajuda a entender a ascensão e a queda de governos progressistas na América Latina (como na Argentina e até mesmo no Brasil)? Por que e como?

Guido Liguori – A meu ver, a categoria gramsciana que nos ajuda a este respeito é a de classes baixas e classes hegemônicas: não meras aglomerações socioeconômicas de tipo sociológico, mas um conjunto de interesses e ideias, valores, aspirações, mesmo mitos.

A esquerda perdeu em muitos países a capacidade de uma proposta independente, cultural, bem como econômica, distintamente diferente daquela das classes dominantes. Não é que não há diferenças entre as receitas anticrise de direita e de esquerda, mas elas permanecem no mesmo recinto: curar um sistema doente (o capitalismo), embora com diferentes medicamentos. Nas classes populares, só temos desprezo, protestos e, em seguida, a derrota.

IHU On-line – Como os conceitos de hegemonia, sociedade civil, classes mais baixas, revolução passiva e consenso são atualizados hoje? E que outros conceitos gramscianos ganham força no tempo em que vivemos?

Guido Liguori – Entre essas categorias, a de sociedade civil não é exatamente gramsciana. Gramsci pensa no Estado e na sociedade civil como um todo não indiferenciado, e sim intimamente relacionado. Ele diz explicitamente que o Estado-sociedade civil é uma dicotomia liberal, que ele critica.

Resta sempre atual a categoria de revolução passiva, mas lembrando que ela descreve os processos a partir de cima, que neutralizam a iniciativa das massas, mas têm conteúdo progressivo. Hoje, no entanto, as classes dominantes neoliberais agem brutalmente, pelos seus próprios interesses, sem fazer avançar a sociedade como um todo. A hegemonia da categoria continua a ser o mais comum, porque os processos culturais, ideológicos, de produção de sentido comum, portanto de consenso, estão se tornando mais penetrantes. Muita sorte teve, nos últimos anos, a categoria das classes mais baixas, uma vez que é mais rica do que a do proletariado clássico: a subordinação não é só econômica, ou em termos de força, mas é também cultural, e às vezes psicológica.

IHU On-Line – A leitura não determinista do marxismo, de Gramsci em diante, é importante para entender e atualizar o pensamento de Karl Marx ? E quais são os desafios para pensar o marxismo na pós-modernidade?

Guido Liguori – Com Marx, Gramsci é hoje o pensador marxista mais conhecido no mundo, porque o seu marxismo não é economicista, não vê a economia como seu único fator determinante. Por isso, eu diria que o único marxismo à altura do nosso tempo é o marxismo de Gramsci. Não esquecendo, claro, que ele parte especificamente de Marx, de alguns dos seus escritos, de uma leitura dos seus escritos, de fato uma leitura antieconomicista.

IHU On-Line – Que conceitos de Gramsci são adotados de forma errada? A que o senhor atribui estes desvios interpretativos?

Guido Liguori – Como eu disse, o conceito de “príncipe moderno” que Gramsci teve é, hoje, o menos próximo de nós entre os seus grandes conceitos. Porque a forma partido está em crise em toda parte. Devemos perguntar-nos se a confiança excessiva no sistema parlamentar (que Gramsci não desprezava, mas não absolutizava) não é uma das causas que levaram a esta crise.

IHU On-Line – Como foi o trabalho da reconstrução do sentido das palavras e dos conceitos presentes nos Cadernos do Cárcere? Quais são os maiores desafios para entender o léxico gramsciano?

Guido Liguori – Os Cadernos do Cárcere não são um livro bonito e acabado, entregue pelo autor para impressão. Eles são um laboratório, um work in progress (trabalho em andamento), um conjunto de notas tomadas no decurso de seis a sete anos. É importante datar, tanto quanto possível, as reflexões individuais de Gramsci, conectando-as com o desenvolvimento histórico; isto é, com o que estava acontecendo fora da prisão, com o que refletiu Gramsci, reconstruir o desenvolvimento e evolução dos termos e conceitos. Para as condições em que foram escritos (da prisão, a supervisão fascista, a incapacidade de dispor de livros e cadernos para escrever sem limitação), os Cadernos do Cárcere são textos aparentemente simples, mas, na verdade, muito difíceis de entender corretamente.

IHU On-Line – O senhor pode afirmar que, em seus últimos escritos, Gramsci faz crítica do seu próprio pensamento? Por quê? E como fazer esses movimentos?

Guido Liguori – Eu acredito que em Gramsci há um desenvolvimento, um progresso, não uma autocrítica. Porque os fatos lhe davam a razão: a Internacional Comunista teve que abandonar a política sectária e extremista do final dos anos ‘20 e do início dos anos 30’ (que Gramsci desde a prisão rejeitou), reavaliar a questão do consentimento, das alianças, da democracia, reaproximando-se assim do pensamento gramsciano. Gramsci desde dentro de uma prisão fascista tinha visto melhor e mais longe, e o movimento comunista internacional e também o seu partido tiveram, no final, que lhe dar a razão, pelo menos parcialmente.■



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