sexta-feira, 21 de abril de 2017

"Há torturas que só as mulheres entendem", diz autora de livro sobre nazismo

Jornalista britânica conta a história do campo de concentração para mulheres

"Olga[Benario Prestes], por sua vez, foi uma das prisioneiras mais corajosas de Ravensbrück. Mesmo sofrendo a dor de estar separada de sua filha, assumiu um papel de liderança e protegeu as prisioneiras mais fracas. Defendeu rigorosamente o comunismo, e por isso não era popular em alguns grupos. Mas foi uma mulher determinada até o final, quando foi enviada para a câmara de gás." (Sarah Helm)


   
POR RENATO GRANDELLE


O campo visto do telhado da administração, em fotografia de 1941 - Reprodução


RIO — Mesmo localizado a apenas 80 quilômetros do Norte de Berlim, o coração do Terceiro Reich, o campo de concentração de Ravensbrück tem uma história muito menos conhecida e estudada do que as edificações de Auschwitz e Dachau.

Para a jornalista britânica Sarah Helm, autora do livro "Ravensbrück" (editora Record), a instalação criada exclusivamente para mulheres dá uma contribuição inestimável para a narrativa do império de Hitler. Foi construída antes da guerra, e foi a última a receber sua câmara de gás, o que só ocorreu no início de 1945. Entre os dois fatos, foi cenário da transformação da sociedade alemã e da escalada de horrores da Segunda Guerra Mundial.

Ravensbrück mostra também que o campo de concentração não era um fardo destinado apenas a judeus. De fato, apenas 10% de sua população era constituída por seguidoras da religião. A maioria das 130 mil mulheres que passaram por lá eram "associais" — nome que abrangia um amplo leque de indesejáveis pelo regime nazista, de prostitutas a deficientes —, prisioneiras políticas e integrantes de grupos de resistência de territórios invadidos.

Também não havia um espírito de união e cumplicidade entre as prisioneiras. Compartilhavam o ódio pelas guardas, mas, de resto, o clima era de disputa: as escolhidas para gerenciar blocos do campo de concentração aproveitavam esta posição para dar privilégios a suas escolhidas.

Uma das mais célebres vítimas de Ravënsbruck foi a comunista Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes, e uma das principais figuras políticas do campo de concentração. Outras figuras menos conhecidas também deixaram marcas no espaço, como a guarda Joanna Langefeld, que pediu demissão por não concordar com a tortura às prisioneiras.

Em entrevista ao GLOBO, Sarah Helm detalhou a estrutura, a rotina e as atrocidades do campo de concentração.

Por que os nazistas construíram um campo de concentração exclusivamente para as mulheres?

No início do Terceiro Reich, Hitler destinou estes campos somente para homens contrários ao seu regime. Isso começou a mudar por volta de 1937, quando Heinrich Himmler, chefe da SS (a polícia nazista), assumiu a administração dos acampamentos. Ele queria aumentar sua lotação e construir um império pessoal. Os primeiros detidos foram os “associais”, pessoas que eram consideradas sem valor: mendigos, desempregados e outras “bocas inúteis”. Claro que havia mulheres nesta categoria, como por exemplo prostitutas. Com a aproximação da guerra, Himmler percebeu que o número de prisões cresceria nos países ocupados, e por isso resolveu criar um campo de concentração feminino. Além disso — e pode parecer contraditório —, Himmler era uma espécie de puritano, e provavelmente pensou que seria “correto” separar as pessoas por sexo. E estabeleceu algumas diferenças nas regras: as guardas usavam cães em vez de armas, porque Himmler achava que mulheres sentem mais medo de cachorros do que os homens. Depois de alguns anos, todos os presos foram enviados para os mesmos locais de extermínio, como Auschwitz.

Apenas 10% das prisioneiras eram judias. Como os nazistas decidiam quem iria para o local?

Pela nacionalidade. No início da guerra, as presas eram alemãs ou austríacas, já que a ocupação de outros países ainda não havia começado. Depois das opositoras do regime e das “associais”, e com o avanço do Exército de Hitler, todos os tipos de mulheres eram enviadas ao campo. Os nazistas precisavam de mão de obra para fabricar munição.

Houve muitas revoltas entre as prisioneiras?

Sim. Uma das manifestações mais impressionantes foi realizada pelas “coelhas”, como eram chamadas as vítimas de experiências médicas. Elas realizaram uma marcha até o escritório do comandante do campo e exigiram o fim dos testes a que eram submetidas. Outra forma de protesto era a sabotagem do uniforme que elas eram obrigadas a costurar para os soldados alemães que lutavam no front oriental: elas afrouxavam a costura para que a roupa não pudesse ser usada.

Por que Himmler tinha um interesse especial por Ravensbrück?

São vários motivos e um deles era ver mulheres sofrendo. Mas a visita também era conveniente porque ele mantinha uma amante em uma fazenda nas proximidades. Assim, quando ia vê-la, podia dizer que tinha ido a Ravensbrück. No fim da guerra, alegando que inspecionaria o acampamento, ele organizava reuniões secretas na região para negociar tratados de paz com os Aliados.

Como era o relacionamento entre as guardas e as prisioneiras?

As mulheres detidas odiavam suas vigias, que eram vistas como tiranas que gostavam de promover o terror. Mas algumas eram consideradas humanas até certo ponto, porque protestaram contra maus tratos no campo. E também havia presas que, por terem maior nível de escolaridade, debochavam das guardas.


Havia divisões entre grupos de prisioneiras?

Sim. A SS não tinha condições de manter os campos sem a colaboração das detidas. Muitas concordavam em trabalhar como gerentes de blocos e aproveitavam esta posição para beneficiar suas amigas. Nos primeiros anos, a SS deu os cargos às “associais”, para evitar que as prisioneiras políticas assumissem o poder. A tática deu certo no começo, mas depois presas como Olga Benário conquistaram espaço.


Duas personalidades, de lados opostos, marcaram a história do campo: Olga Benário e Joanna Langefeld. Qual foi o papel desempenhado por elas?

Langefeld era uma guarda que tinha reservas sobre o modo como o campo era administrado. Pediu demissão porque não concordava com algumas ordens. Ainda assim, respeitou Hitler e Himmler até o fim. Olga, por sua vez, foi uma das prisioneiras mais corajosas de Ravensbrück. Mesmo sofrendo a dor de estar separada de sua filha, assumiu um papel de liderança e protegeu as prisioneiras mais fracas. Defendeu rigorosamente o comunismo, e por isso não era popular em alguns grupos. Mas foi uma mulher determinada até o final, quando foi enviada para a câmara de gás.

Para saber mais sobre a vida de Olga Benario Prestes frente à gigantesca e cruel máquina do Terceiro Reich, que a considerava uma “comunista perigosa”, leia o novo lançamento da Boitempo Editorial, recheado de documentos inéditos: Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo, de autoria da historiadora Anita Leocadia Prestes. MAIS INFORMAÇÕES CLIQUE AQUI.


Que tipo de experimentos médicos ocorreram no campo?

As mulheres eram usadas para testar os efeitos de uma droga chamada sulfonamida, adotada para curar feridos no campo de batalha. Os médicos de Ravensbrück eram instruídos a recriar condições que ocorriam no front, infectando as pernas das detidas com gangrena, tétano, quebrando ossos e até atirando nelas. Também houve exames para monitorar como elas reagiam a doenças como sífilis e gonorreia. E algumas mulheres foram enviadas para experiências no campo masculino de Dachau. Um dos testes tinha como objetivo ver se pilotos de avião, abatidos perto de mares congelados, conseguiam se recuperar ao ver mulheres nuas e ter relações sexuais.

Como Ravensbrück pode aumentar nosso conhecimento sobre a Segunda Guerra Mundial?

O campo mostra muitas histórias que não aconteceram em Dachau e Auschwitz, e por ter sido aberto às vésperas da guerra nos dá uma visão única do desenvolvimento da ideologia e dos métodos nazistas. Além disso, é um lugar único para estudar até onde pode chegar a depravação. Há torturas que só as mulheres entendem. As detidas tinham que entregar seus filhos, que eram levados para outros campos, e depois enviados de volta, só para que as mães os vissem morrendo. E, na libertação do campo, quando os nazistas já haviam deixado a região, os soldados do Exército Vermelho perseguiram as prisioneiras para estuprá-las. Ravensbrück foi a capital do crime contra a mulher.


FONTE: O Globo


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