sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Uma oportunidade única em meio a uma conjuntura muito difícil

Por Marcelo Badaró Mattos


O segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro está exemplificando com uma riqueza incrível a complexidade das contradições postas pela relação entre disputa político eleitoral nos marcos da democracia representativa e a dinâmica da luta de classes no plano nacional.

O quadro geral das eleições municipais no país não deixa muita margem para dúvida: derrota profunda do PT; crescimento do espaço político da direita conservadora; ampliação (embora ainda limitada) do peso eleitoral dos fascistas e aspirantes a tal; pequeníssimo espaço para a esquerda socialista (aqui entendida como a oposição de esquerda aos governos do PT e aliados). Em suma, avanço conservador e pontos para a coalização golpista que assumiu o governo federal.

No que diz respeito ao pequeníssimo espaço aberto pela esquerda socialista, a disputa mais decisiva – pelo peso no quadro nacional da antiga capital e pelo que está ali em disputa – é a do Rio de Janeiro, em que Marcelo Freixo/Luciana Boiteux, do PSOL, enfrentam o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e senador pelo PRB Marcelo Crivella, tendo por vice um indicado do ex-governador Garotinho, Fernando Mac Dowell (PR).

Embora as pesquisas eleitorais ainda apontem vantagem para Crivella, a tendência de sua candidatura é de queda, enquanto Freixo experimenta crescimento nas intenções de voto. O mais significativo é que, embora Crivella represente nitidamente a alternativa conservadora, que predominou no cenário eleitoral nacional e Freixo seja o representante da exceção – uma candidatura de esquerda na disputa – os principais porta-vozes das classes dominantes partiram para o ataque contra Crivella e ameaçam seriamente sua vitória eleitoral.

Diante da crise vivida pela maior parte dos conglomerados de mídia no Brasil, as empresas da família Roberto Marinho tendem a reinar absolutas e a ampliar sua fatia monopolista no mercado das comunicações nacionais. Há apenas uma concorrente séria em expansão nesse setor. Trata-se justamente da rede de empresas de comunicação ligadas a Edir Macedo, tio de Crivella e “sócio majoritário” da Universal. Por isso mesmo, ter à frente da cidade sede do conglomerado Globo um representante direto da concorrente mais ameaçadora é intolerável para o grupo dos Marinho. Seu ataque à candidatura Crivella tem um sentido claro de disputa de mercado entre grandes conglomerados capitalistas, sendo o Estado – nas suas várias dimensões institucionais – um instrumento fundamental para a garantia de lucros num setor fortemente atrelado às verbas publicitárias oficiais e às regras legais que disciplinam a concessão pública no setor. No caso da prefeitura do Rio de Janeiro, a questão é ainda mais séria, pois o acordo entre os Marinho e a máfia pemedebista que comandou estado e município no último período é bem mais amplo, envolvendo por exemplo o controle de aparelhos culturais (os novos museus da cidade) e o fornecimento de pacotes educacionais para a rede pública de educação.[1] Negócios bilionários estão em jogo.

O veto a Crivella pela Globo não representa exatamente um apoio a Freixo, embora possa ser entendido como uma recomendação de “voto útil”. Afinal, não pode restar qualquer dúvida de que, caso seja eleito, Freixo será alvo – desde o primeiro minuto após o anúncio do resultado das urnas – da mais dura campanha de oposição pública pelos veículos dos Marinho. Isso independe dele, de seus discursos ou de suas propostas, mas será decorrência direta do que representa uma vitória de esquerda socialista no Rio de Janeiro na atual conjuntura nacional. Nesse caso, estaríamos diante de uma ameaça aos negócios – menor, pois pela via de uma possível revisão de contratos, mas sem a gestão direta de um concorrente à frente da prefeitura -, assim como de um possível enclave de esquerda que tenderá a fortalecer as resistências ao projeto nacional maior das classes dominantes, com o qual as organizações Globo estão afinadas.

Neste fim de semana, o Grupo Abril/Civita se somou à Globo para tentar desmontar Crivella, através da revista Veja, veículo de (des)informação mais paradigmático do pensamento conservador no Brasil. Comportando-se os Civita, quase sempre, como porta-vozes do tucanato paulista, temos a certeza de que uma capa da Veja contra Crivella representa um posicionamento político de dimensões nacionais. Na semana em que Cunha foi encarcerado por Moro (por sinal, dividindo com Crivella a(s) capa(s) da revista), Veja indica que o PSDB se prepara para ampliar seu papel no governo federal e não tem interesse em ver fortalecido qualquer projeto de poder (o da Universal, assim como o do PMDB) daqueles a quem quer destinar o papel de coadjuvantes.

Enquanto isso, a arquidiocese do Rio de Janeiro orienta os párocos a instruírem seus “fiéis”, nas missas e demais cerimônias religiosas, a não votarem nos que se apresentam como rivais da Igreja católica. Se os bispos da Universal e os prelados de Roma podem ser aliados eventuais – como na defesa do ensino religioso confessional nas escolas públicas e em pautas conservadoras no congresso nacional – também nesse caso a disputa entre instituições religiosas que concorrem pelos mesmos fiéis havia de prevalecer na orientação da cúpula católica.[2]

Tendo em vista uma perspectiva de classe mais geral para orientar a análise, o segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro entre Crivella e Freixo – PRB e PSOL – é um resultado claramente desfavorável em meio a um quadro geral de vitória eleitoral da classe dominante. Não é preciso gastar muita tinta, ou caracteres, para explicar porque não interessa à minoria dominante a vitória de um candidato à esquerda no quadro atual. Já Crivella, que nos sermões/discursos agora amplamente divulgados nas redes sociais assume explicitamente o projeto de poder da Universal, é um incômodo, por representar o aliado subalterno que ameaça elevar-se a um primeiro plano. Se o discurso pró-empreendedorismo, a valorização da nova “meritocracia” (refratária até mesmo à lógica liberal tradicional da equidade nas oportunidades)  e o apelo à paz social, inerentes à pregação neopentecostal entre a classe trabalhadora, são instrumentais à lógica da dominação de classes, o protagonismo político dos representantes diretos da igreja parece ser algo além do tolerável. Afinal, vivemos um período em que os mediadores da paz social com representatividade de base efetiva nos grupos sociais subalternos – como o PT – estão sendo descartados em nome do exercício direto do poder de classe pelos “legítimos representantes” burgueses.

Em resumo, o quadro do Rio de Janeiro neste segundo turno das eleições municipais é nacionalmente indigesto para o projeto político dominante e, por isso mesmo, eivado de contradições que, positivamente do ponto de vista dos que se alinham ao projeto socialista, abrem possibilidades de avanço, em meio a uma conjuntura geral de muitas dificuldades.

Assim, na medida mesmo em que crescem as chances concretas de vitória eleitoral da chapa Freixo/Luciana, cresce também a responsabilidade do PSOL e seus aliados em posicionar-se frente aos desafios que se apresentam.

Em 02 de outubro, a passagem de Freixo ao segundo turno foi conquistada por uma campanha alimentada pelas formas organizativas, movimentos e forças sociais que efetivamente se posicionaram à esquerda das representações políticas dominantes no Rio de Janeiro (a velha direita representada pelo PMDB) e daqueles que durante mais de uma década estiveram ao seu lado nos governos estadual e municipal (o PT e seus aliados do PCdoB, em seu esforço para representarem os interesses dominantes).

Uma vitória no segundo turno dependerá de votos que estão distantes da convicção política de esquerda que caracterizava os cerca de 20% de eleitores que respaldaram Freixo/Luciana na primeira rodada. Parte desses votos pode vir de um trabalho militante de convencimento e esclarecimento do eleitorado, agora que os dois candidatos têm o mesmo espaço no horário eleitoral gratuito e tendo em vista que a militância de esquerda pode chegar (e tem chegado) a espaços mais amplos, avançando sobre uma parcela dos muitos votos nulos e brancos do primeiro turno. Mesmo assim, a maioria de votos válidos só será conquistada se a rejeição a Crivella empurrar uma parcela dos votos conservadores para o voto nulo e convencer um outro setor de que Freixo é a alternativa de “voto útil” contra o projeto de poder da Universal.

Na última semana da campanha eleitoral, o que se coloca é a possibilidade concreta de uma vitória da esquerda, a partir de uma base sólida (porém minoritária em termos de votos) construída nas lutas de resistência da classe trabalhadora, combinada a fissuras localizadas do projeto nacional da classe dominante brasileira. A questão central é: diante dessa possibilidade, como atuar? Maneirar no discurso de esquerda e assumir compromissos com o “ajuste fiscal” para tentar ganhar confiança de setores da classe dominante que possam influenciar o eleitorado conservador, ou manter o tom de autonomia e o posicionamento de classe (que marcou a campanha até aqui)?

A resposta depende da convicção de princípios, mas também demanda uma análise mais ampla da política nacional. Não há espaço hoje para a tentativa de substituir o PT por uma outra alternativa – mesmo mais séria, ou honesta – de conciliação de classes. E não há espaço porque as classes dominantes já se decidiram a dispensar o PT e a política de conciliação de classes, ao menos na conjuntura atual, optando por aplicar a receita da “austeridade” de forma direta contra a classe trabalhadora. Por outro lado, para disputar a base eleitoral do PT pela esquerda, é preciso se diferenciar justamente do discurso de Crivella, de que vai “cuidar do povo”.

Na prática de uma gestão municipal, por outro lado, os limites para uma política de esquerda que se proponha a atuar nos marcos legais definidos (como é o caso) são muito rígidos, em decorrência da conjuntura de crise econômica, cujo impacto local se agrava com a lei de responsabilidade fiscal (Lei Complementar No 101/2000), em processo de radicalização pelo projeto de lei apresentado por Dilma (inicialmente numerado como PL 257), aprovado pela Câmara e aguardando votação no Senado. A aprovação da PEC 241 agravará ainda mais o quadro.

Garantir a execução de um programa como o de Freixo/Luciana, que propõe ampliar os investimentos em educação e saúde públicas (incluindo concursos e planos de carreira para os servidores) e estabelecer controles mais rígidos sobre os lucros abusivos do transporte coletivo e da especulação imobiliária, significará enfrentar-se com interesses de classe poderosos e incrustados no governo municipal (como os dos Marinho na Educação e Cultura, os dos empreiteiros da “cidade olímpica” e os da turma do Barata nas empresas de transporte). Diante do quadro federal de ajuste fiscal como resposta (e agravante) da crise, isso só será viável com uma política tributária que institua a progressividade no imposto sobre a propriedade urbana e através de uma revisão dos contratos e isenções fiscais que resguarde de fato o interesse público.

Também desse ponto de vista, a conjuntura não dá margem para acordos pontuais com frações da classe dominante. Um mandato municipal só viabilizará um programa de esquerda, mesmo que moderado, enfrentando-se contra interesses dominantes que estão fortemente alicerçados no aparato do Estado – em agências do governo, na Câmara dos vereadores, etc. – e serão defendidos com vigor pelas grandes empresas de comunicação. Para tanto precisará do apoio contínuo daqueles movimentos, organizações e militantes que, nos dois turnos, foram às ruas conquistar votos para Freixo.

Diante da ameaça de retrocesso representada por Crivella, a eleição de Freixo/Luciana será, sob qualquer condições, uma vitória indiscutível. A oportunidade, porém, é mais ampla: é possível uma vitória política, em que a candidatura socialista ganhe o mandato municipal mantendo a coerência programática, sem qualquer concessão aos representantes dos dominantes, que afinal de contas lhe farão oposição de todo modo.

Há uma frase de Freixo que diz muito sobre o drama atual: “Quem diz que governa para todo mundo mente para alguém”. Precisamos e podemos realmente vencer. Está nas nossas mãos definir de que jeito vai ser.

[1]
                [1] Ver a esse respeito o elucidativo relatório sobre os contratos entre a prefeitura e a Fundação Roberto Marinho no último período, “Quem são os donos da educação e da cultura no Rio de Janeiro”, 2016. Disponível em http://www.coronelismoeletronico.com.br/wp-content/uploads/2016/02/relatórioFRMFINAL-8.pdf, último acesso em 21/10/2016.

[2]
                [2] Por óbvio que tanto setores progressistas do clero católico e das denominações protestantes quanto parte significativa dos adeptos das igrejas cristãs se posicionam politicamente e votam a partir de outros critérios que não as recomendações dos eclesiásticos.

FONTE: NOS (Nova Organização Socialista)

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