Por Michael Löwy
Com efeito, Sobre o suicídio de Marx é uma das mais poderosas peças de acusação à opressão contra as mulheres já publicadas. Três dos quatro casos de suicídio mencionados nos extratos se referem a mulheres vítimas do patriarcado ou, nas palavras de Marx, da tirania familiar, uma forma de poder arbitrário que não foi derrubada pela Revolução Francesa (Somente uma das quatro histórias de suicídio selecionadas por Marx concerne a um homem – um desempregado, ex-membro da Guarda Real). Entre elas, duas são mulheres “burguesas” e a outra, de origem popular, filha de um alfaiate. Mas o destino delas fora selado mais pelo seu gênero do que por sua classe social.
No primeiro caso uma jovem é levada ao suicídio por seus pais, ilustrando a brutal autoridade do pater – e da mater – familias; Marx denuncia com veemência a covarde vingança dos indivíduos habitualmente forçados à submissão na sociedade burguesa, contra os ainda mais fracos que eles.
O segundo exemplo – o de uma jovem mulher da Martinica, trancada entre as quatro paredes da casa por seu marido ciumento, até que o desespero a leva ao suicídio – é de longe o mais importante, tanto por sua extensão como pelos ácidos comentários do jovem Marx a respeito. Aos seus olhos, o caso parece paradigmático do poder patriarcal absoluto dos homens contra suas esposas e de sua atitude de possuidores zelosos de uma propriedade privada.
Nas observações indignadas de Marx, o marido tirânico é comparado a um senhor de escravos. Graças às condições sociais que ignoram o amor verdadeiro e livre, e à natureza patriarcal tanto do Código Civil como das leis de propriedade, o macho opressor pode tratar sua mulher como um avarento trata o cofre de ouro, a sete chaves: como uma coisa, “uma parte de seu inventário”. A reificação capitalista e a dominação patriarcal são associadas por Marx nessa acusação radical contra as modernas relações da família burguesa, fundadas sobre o poder masculino.
O terceiro caso refere-se a um problema que se tornou uma das principais bandeiras do movimento feminista depois de 1968: o direito ao aborto. Trata-se de uma jovem que entra em conflito com as sacrossantas regras da família patriarcal e que é levada ao suicídio pela hipocrisia social, pela ética reacionária e pelas leis burguesas que proíbem a interrupção voluntária da gravidez.
O tratamento dado a esses três casos em Sobre o suicídio constitui um protesto apaixonado contra o patriarcado, a sujeição das mulheres – incluídas as “burguesas” – e a natureza opressiva da família burguesa. Com raras exceções, não há nada comparável nos escritos posteriores de Marx.
Não obstante seus limites evidentes, esta pequena e quase esquecida obra é uma preciosa contribuição a uma compreensão mais rica das injustiças sociais da moderna sociedade burguesa, do sofrimento que suas estruturas familiares patriarcais inflingem às mulheres e do amplo e universal objetivo emancipador do socialismo.
* Texto extraído do prefácio “Um Marx insólito” que integra a edição brasileira de Sobre o suicídio, de Marx, publicada em 2006 pela coleção Marx-Engels da Boitempo.
FONTE: Fundação Dinarco Reis
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