sábado, 24 de agosto de 2013

Violência contra a mulher: o perigo em casa

A socióloga Fátima Pacheco Jordão fala sobre estudo inédito que revela percepção de que mulheres sofrem mais violência no lar do que em espaços públicos



Patrícia Benvenuti
da Redação do Brasil de Fato

Para muitas mulheres, o lar não representa segurança nem conforto. Significa, em vez disso, medo e a possibilidade de violências. Uma das questões mais graves para as mulheres, a violência doméstica foi tema de uma pesquisa inédita realizada este ano. 

De acordo com o estudo “Percepção da Sociedade sobre Violência e Assassinatos de Mulheres”, feito pelo Data Popular e pelo Instituto Patrícia Galvão, sete em cada dez entrevistados consideram que as brasileiras sofrem mais violência dentro de casa do que em espaços públicos. 

A pesquisa, que ouviu 1,5 mil homens e mulheres em cem municípios, revelou que 54% dos entrevistados conhecem uma mulher que foi agredida pelo companheiro e 56% conhecem um homem que já agrediu a parceira. 

Já 57% acreditam que, apesar de atualmente haver mais punição para os agressores e assassinos, a forma como a Justiça pune não reduz a violência contra a mulher. 

Um dos aspectos mais preocupantes da pesquisa, de acordo com a socióloga Fátima Pacheco Jordão, conselheira do Instituto Patrícia Galvão, é o medo de represálias em caso de denúncia. Para 85% dos entrevistados, as mulheres que denunciam seus maridos correm mais risco de serem assassinadas. “Não é apenas uma ameaça do mais forte em relação ao mais fraco, é uma ameaça extrema”, afirma. 

A pesquisa foi lançada em agosto, mês em que se completaram sete anos da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), que prevê medidas de proteção à mulher vítima de violência. Sobre a lei, o estudo revelou que 98% conhecem a Lei Maria da Penha. Entretanto, 32% afirmam terem apenas ouvido falar da lei, sem conhecer detalhes da legislação. 

Para Fátima, o índice é preocupante e evidencia uma falha do Estado. “É responsabilidade do Estado, dos governos federal, estaduais e municipais darem transparência a essa lei. Não adianta ter lei se ela não é exercitada”, ressalta. Em entrevista ao Brasil de Fato, a socióloga repercute os resultados da pesquisa e os desafios para pôr fim à violência doméstica no país. 

Brasil de Fato – Quais as principais conclusões desse estudo, na sua opinião? 
Fátima Pacheco Jordão – Já foram feitas muitas pesquisas mostrando a preocupação da população com a violência. Esse estudo retoma esse panorama com uma diferença: mostra uma contundência do fenômeno de agressão contra as mulheres. Para se ter uma ideia, a questão do homicídio e da morte é vista como uma consequência quase provável dentre as mulheres que passam a denunciar. 
Essa pesquisa escancara um quadro muito preocupante: mais da metade das pessoas, homens e mulheres, conhecem mulheres agredidas e homens agressores, portanto a incidência do fenômeno é muito alta. Além disso, a pesquisa mostra que essa violência, percebida pelos entrevistados, atinge a todas as camadas da população, tanto as mais ricas como as mais pobres, famílias com chefes mais ou menos escolarizados. 
Em consequência disso, desse quadro de uma epidemia de violência contra as mulheres, há a percepção de que o Estado, sobretudo a Justiça, não tem estado à altura para coibir. As denúncias têm aumentado, é verdade que as mulheres estão mais autônomas e mais confiantes em denunciar, mas a resposta do Estado é mínima. Você vê que delegacias da mulher, que são consideradas a porta mais utilizada, lembrada e conhecida por 90% das pessoas, no Brasil inteiro existem 500. A grande maioria, dois terços delas, no estado de São Paulo, onde foram criadas na década de 1980. E nem sempre ou quase nunca as delegacias são bem equipadas. 
A Lei Maria da Penha prevê serviços de apoio, psicológico e jurídico, que acolham de uma maneira mais detalhada as necessidades das mulheres. Portanto, você percebe que as mulheres estão bastante desamparadas. Apesar de, nos últimos anos, [terem sido criados] equipamentos como telefones de assistência governamental e de as legislações terem melhorado muito, isso não chegou para sustar o fenômeno. 

O que mais chamou a atenção dos pesquisadores? 
O mais surpreendente é a questão dos homicídios, o medo da mulher de ser assassinada, ou seja, existe uma lógica de apreensão no sentido de que elas se sentem aterrorizadas. Não é apenas uma ameaça do mais forte em relação ao mais fraco, é uma ameaça extrema. Naturalizou-se essa ideia de que ela [mulher] pode ser assassinada. A pesquisa pode ser sintetizada em que as mulheres têm medo de morrer e vergonha de declarar, o que põe a violência contra a mulher em um patamar mais complexo, mais complicado, mais sério e que perdura mais. Não é mais percebido como incidente de passagem, uma coisa que ocorre no processo doméstico, do casamento ou da relação entre as pessoas. É uma coisa que se exercita sob o domínio do medo. 

Como você avalia o grau de consciência da sociedade hoje em relação à violência de gênero? 
Houve um avanço nos últimos anos, obviamente, e a questão dessa violência mais doméstica tem a ver justamente com esses avanços. A mulher saiu de casa, entrou no mercado de trabalho, está mais aberta, se relacionando com a sociedade, e a sociedade de uma maneira geral evoluiu para uma posição de demanda por mais equidade, igualdade em todos os aspectos, social, salarial, escolar etc. É sempre importante lembrar que os aspectos da escolaridade e da educação são dos mais equânimes da cultura brasileira. Há tantos analfabetos homens e mulheres. 
No conjunto de anos estudados, as mulheres estudam mais do que os homens, a diferença salarial, que ainda existe entre homens e mulheres, vem diminuindo. São aspectos sociais e culturais que mostram uma forte evolução das mulheres. 

De acordo com a pesquisa apenas 2% dos entrevistados nunca ouviram falar da Lei Maria da Penha. Entretanto, para 32% a lei é conhecida, mas sem qualquer tipo de detalhamento. Esse desconhecimento, na sua avaliação, prejudica a aplicação da lei? 
Ela é muito conhecida como nome de lei, porém as especificações dela são pouco conhecidas porque a própria lei tem sido aperfeiçoada e nós achamos que essa também é uma falha do Estado. É responsabilidade do Estado, dos governos federal, estaduais e municipais darem transparência a essa lei. Não adianta ter lei se ela não é exercitada. A conquista da denúncia não basta. A denúncia tem que ser qualificada. 
A mulher tem que saber que envolve um processo e que nem sempre ela pode recuar. Tem vários aspectos que é necessário que ela conheça, e o conhecimento maior da Lei Maria da Penha é um dos fatores que, para nós, pode inibir essa barbárie. 

Quais motivos levam a mulher a não denunciar? 
Elas têm basicamente medo de serem assassinadas e de serem ainda mais brutalizadas. Elas têm vergonha de, socialmente, perceberem que estão sendo agredidas e humilhadas. Além de outras questões ligadas ao cuidado com os filhos, dependência econômica em relação ao marido. Esse é um fator forte que inibe as mulheres, os filhos. Sabemos, por meio de outras pesquisas, que quando há atritos ou problemas nas famílias e elas se rompem, são as mulheres que ficam com as crianças. Essa relação mais forte e essa responsabilidade têm a ver com as mulheres. 
Além, disso há o fator psicológico da reincidência, em que depois da agressão a maioria dos homens pede desculpas, atribui a um fator externo, sobretudo bebida. As mulheres vão reiterando isso e se forma um círculo vicioso do qual elas não conseguem sair. 

A que se pode atribuir a continuidade da violência contra a mulher no Brasil? 
Basicamente é uma questão cultural. Há dois lados, de um está uma cultura patriarcal, machista, que está em xeque, e obviamente de outro, o avanço das mulheres em termos sociais e culturais, maior escolaridade, maior autonomia econômica, maior denúncia, ou seja, são todos aspectos ligados à cultura. A cultura machista fazia com que, anos atrás esse assunto fosse colocado debaixo do tapete. Uma violência que era vista no passado como uma violência doméstica, uma coisa entre marido e mulher. Mais ainda, se dizia ‘nesse cenário não se pode meter a colher porque é uma coisa privada’. 
Agora a sociedade tem noção de que essa é uma questão grave, ou seja, no conjunto da percepção de todas as violências da sociedade, a violência contra a mulher é um aspecto predominante para homens e mulheres. 

Como vocês avaliam a cobertura da imprensa em casos de crime contra as mulheres? Há alguns anos os noticiários abordaram fortemente o caso de Eliza Samúdio, ex-companheira do goleiro bruno Fernandes, e com frequência episódios do tipo são divulgados. 
Sim, e dos mais macabros possíveis. Na semana passada, teve um marido que assassinou e emparedou a mulher no muro da casa [caso ocorrido em São Paulo no início de agosto]. Essa questão é muito importante porque a mídia tem dado cada vez mais informações sobre isso, as mortes das mulheres são apontadas nessa direção – marido, namorado –, há casos famosos como esse do Bruno. 
No entanto, a mídia tende a definir esses casos como desvios de rota de homens ou malucos ou ciumentos ou paranoicos, e na verdade é um fenômeno social, que tem a ver com o machismo, com uma sociedade patriarcal e desigual em relação a gênero. A mídia divulga os casos, particulariza e não dá o passo a frente que é explicar o porquê. E muitas vezes, se fossem aprofundadas as razões, poderia ficar mais claro para a sociedade que essa mulher foi desamparada, não teve apoio de família, de vizinhos, da segurança pública. 

A partir do resultado da pesquisa o que o Instituto recomenda como ações prioritárias não só para os governos mas para a sociedade em geral? 
Estamos lutando por melhores e mais equipamentos de apoio às mulheres. Se esses equipamentos se multiplicarem, se as 500 delegacias passarem a ser 5 mil, e assim por diante, mais casas de assistência específica à mulher, coisa que está acontecendo em um ritmo aquém do necessário, isso em si vai apoiar as mulheres. E vai ajudar a sociedade a ver outro referencial para esse problema, que é cultural, além dos problemas pontuais de cada família, de cada mulher e de cada homem.

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