quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Egito: banho de sangue faz milhares de vítimas

 
Forças de segurança usam métodos letais para atacar civis nos acampamentos pró-Mursi. Vice-presidente El Baradei renuncia após o massacre. Governo declarou estado de emergência e toque de recolher por 30 dias a partir desta quinta-feira (15)
 
Baby Siqueira Abrão,
de São Paulo (SP)
 
A polícia egípcia reprimiu violentamente, na quarta-feira (14), os acampamentos montados em duas praças do Cairo, a capital do Egito, por apoiadores do presidente Mohammed Mursi, deposto por um golpe de Estado em 3 de julho último. De acordo com Murat Ali, porta-voz do Partido da Liberdade e da Justiça, ao qual Mursi pertencia, cerca de mil manifestantes foram mortos e dez mil feridos. No entanto, o Ministério da Saúde confirma que 525 pessoas morreram e outras 3.717 ficaram feridas.
Há notícias de confrontos em outras partes do Egito. Em Suez, os apoiadores do presidente deposto reuniram-se diante do hospital Hamza e queimaram pneus na avenida Nasser, bloqueando o acesso a ela. Os choques com a polícia deixaram um morto e trinta feridos. O serviço de trens foi interrompido no país.
O vice-presidente temporário, Mohamed El Baradei, renunciou após o massacre. O governo declarou estado de emergência e toque de recolher entre 19h e 6h por trinta dias a partir desta quinta-feira, 15 de agosto. A ONU e vários líderes internacionais condenaram o ataque. A Anistia Internacional denunciou que a promessa de utilização de métodos letais só em último caso foi quebrada pelo governo egípcio.
A polícia acabou com um dos acampamentos pró-Mursi, na praça Nahda, e apertou o cerco em outro, na praça Rabaa al-Adawiya, onde atacou um hospital de campanha, impedindo o tratamento de feridos e tentando “atrapalhar a contagem do número de mortos”, segundo o porta-voz Ali. Mohamed al-Beltagi, líder da Irmandade Muçulmana, acusou o general Abdel Fattah al-Sisi, chefe das Forças Armadas, de “levar o Egito à guerra civil”.
 
Sem acordo, o assalto foi violento
O ataque aconteceu nas primeiras horas da manhã de quarta-feira. O governo avisara várias vezes, aos milhares de adeptos de Mursi acampados nas ruas, que os retiraria dos espaços públicos quando o Ramadan, o mês sagrado dos muçulmanos, terminasse – o que aconteceu no último fim de semana. Várias tentativas foram feitas no sentido de negociar um fim pacífico para os acampamentos pró-Mursi. Até mesmo dois senadores estadunidenses, John McCain e Lindsey Graham, viajaram ao Cairo na semana passada, com o objetivo oficial de conseguir um acordo entre as partes. Em vão.
Todos sabiam que haveria repressão, mas ninguém esperava um massacre. Testemunhas dizem que os manifestantes foram alvo de tiros vindos de todos os lados. Buldôzeres do Exército retiraram as barricadas erguidas pelos acampados e arrastaram as barracas para as laterais da praça al-Adawiya. Bombas foram atiradas em diversas direções.
Há notícias de dois jornalistas mortos (um deles, Mick Deane, cinegrafista da Sky News) e muitos feridos. Vários repórteres foram detidos.
 
Protestos fomentados pelos EUA?
As manifestações no Egito, iniciadas em 2011, nunca cessaram, mas ganharam força em 30 de junho último, primeiro aniversário do governo Mursi. Dezenas de milhares de manifestantes foram às ruas exigir a renúncia do então presidente, acusado de “islamizar” a administração do Estado e de ter sido eleito por uma minoria (na verdade, manobras fizeram com que ele ganhasse as eleições com o voto de apenas 26% do eleitorado), além de promulgar uma Constituição ilegítima, aprovada por somente 32% dos eleitores e com forte viés religioso, violando os direitos dos não islâmicos e impedindo o estabelecimento do Estado laico. A crise financeira e a manutenção dos acordos com Israel foram outros motivos do descontentamento popular.
Três dias depois as Forças Armadas, lideradas por Al-Sissi, entraram em cena, depondo Mursi, afastando do poder os membros da Irmandade Muçulmana e nomeando um governo de transição, até que sejam convocadas novas eleições. Os defensores do ex-presidente, embora minoritários, decidiram também ir às ruas, em protesto contra a deposição. Choques e repressão a esses manifestantes, com mortos e feridos, têm sido comuns desde o início de julho, mas nenhum foi tão violento como o desta quarta-feira, um verdadeiro banho de sangue num país estratégico para as forças em confronto não apenas local, mas mundial – exatamente como acontece na Síria.
 
O relato de um repórter
Eu estava no acampamento em torno da mesquita de Rabaa al-Adaweyah. Às 7h, aproximadamente, vi as forças de segurança vindo pela avenida. Os carros pretos da polícia iam à frente, seguidos pelo pessoal do Exército. Os manifestantes entraram em pânico. Haviam construído barricadas com sacos de areia e colocado pedras em volta das barracas que abrigavam talvez mais de 5 mil apoiadores de Mursi. Mas eles não foram páreo para os buldôzeres trazidos pelas forças de segurança.
Posicionei-me atrás da polícia, e no começo eles toleraram minha presença. Eu tirava fotos com meu celular e dividia minha água com um dos comandantes. Mas eles não me deixariam voltar para Rabaa. Tentei ir por outra rua, mas policiais num veículo blindado me fizeram retornar.
Atrás da linha de policiais havia um grande grupo de oficiais graduados, muitos em roupas civis. Vi-os prender alguém e me aproximei, perguntando se alguém falava inglês. No mesmo instante fui cercado por seguranças, que pegaram meu celular e minha carteira de identidade. Tiraram meu notebook de dentro da bolsa, abriram-no e a tela da senha apareceu. Um oficial pediu que eu a revelasse, mas me recusei. Durante uns cinco minutos os oficiais me interrogaram acerca de meu trabalho e minha identidade. Aquele que parecia o chefe mais uma vez exigiu minha senha. Mais uma vez me desculpei e me neguei a revelá-la. Então ele me deu um tapa forte. Exigiu a senha de novo, de novo eu disse que não a daria e de novo ele me bateu. Logo me vi rodeado por policiais que batiam e socavam minha cabeça; então decidi digitar a senha. Eles levaram meu notebook.
Logo depois, um policial raivoso se aproximou e me deu um soco no queixo. Outro me agarrou pela camisa e me arrastou a um camburão azul. Anunciou, com orgulho, que eu era estadunidense, enquanto me dava socos no rosto. Puseram algemas plásticas, que apertaram ao máximo, e me empurraram para o veículo, onde havia um punhado de manifestantes. Vi os policiais batendo em alguns deles; um rapaz recebeu golpes cruéis e caiu, gemendo. Partiram quando o número de detidos atingiu 35.

Muitos de nós se ajoelharam no chão para não cair; todos os bancos encostados à lataria estavam cheios. Suávamos. A certa altura, alguém com a mão livre foi gentil o bastante para limpar com um trapo o suor do meu rosto. Vinte minutos depois o camburão parou. Alguns detidos começaram a rezar baixinho. Fomos levados a um estádio e colocados lá dentro pela entrada VIP. Vimos um grupo ajoelhado, cercado por policiais. Também fomos obrigados a nos ajoelhar, formando fileiras.
Então alguém me tirou dali e me colocou de lado, com outros jornalistas. Detido às 8 da manhã, fui liberado ao meio-dia. No caminho de volta, um policial me perguntou o que acontecera. Contei e ele me disse: ‘Por favor, não fique com raiva’. Muitos outros, inclusive jornalistas, não tiveram a mesma sorte. Quando se identificavam, os jornalistas apanhavam.
Não vimos armas entre os apoiadores de Mursi, só pedras e pedaços de pau. Das ruas laterais, fogos de artifício eram atirados nos policiais. Em Rabaa, nas ruas do Cairo e no norte do Egito a violência se espalhava. Mulheres e crianças eram retiradas do acampamento. Granadas continuavam a explodir, e os policiais jogavam coquetéis Molotov nas barracas. Veículos blindados trafegavam muito perto da multidão. Membros da Irmandade Muçulmana começaram a formar uma barreira diante deles. O gás se tornara insuportável. Meu amigo Atef viu dois homens armados atirando nos carros blindados e saiu correndo. Ouviu tiros e gritos. Até ali não vira nenhum morto. A polícia ainda não havia entrado no acampamento.
Atef consegui sair. Ao voltar, viu os policiais em ação daquilo que definiu como “verdadeira guerra, com armas”. Um grupo de manifestantes entrou numa sala ao lado da mesquita. Oficiais de alta patente mandaram-nos sair. Então a polícia abriu fogo.
Sophia Jones, do The Daily Beast, viu uma van da polícia em chamas e uma bota no chão coberta de sangue. Não viu armas entre os manifestantes, mas a bota e o carro em fogo sugeriam o que aconteceu depois. Três vans da polícia vinham pela avenida, atirando. Sophia e dois fotógrafos estrangeiros ouviram sirenes e correram. O tiroteio começou assim que eles viraram a esquina. Reuniram-se a um grupo que corria desesperadamente, em busca de uma loja aberta onde pudessem se abrigar. Mulheres gritavam. Um senhor caiu, e alguns jovens pararam para ajudá-lo. Tiros ecoavam pela rua, seguidos por ondas de gás.
Grossas nuvens de fumaça subiam para o céu do Cairo. Dizia-se que postos policiais estavam sob ataque. Apoiadores da Irmandade Muçulmana ateavam fogo neles. Relatos e fotos vindos de muitas cidades mostravam igrejas coptas em chamas. Defensores de Mursi foram responsabilizados pelos ataques enquanto a violência sectária contra minorias religiosas aumentava.
O general Abdel Fattah al-Sisi prometeu trazer ordem ao Egito. Hoje foi o início de algo, mas certamente não o início dos problemas do país.
(Mike Giglio, com Sophia Jones, em Mohandeseen, e Maged Atef, em Nasr City, Cairo. Texto traduzido e adaptado por Baby Siqueira Abrão. Fonte:www.informationclearinghouse.info/article35848.htm.)
Fotos: Globovision/CC
 
FONTE: Brasil de Fato
 

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