terça-feira, 19 de março de 2013

Os “guardiões” da democracia




Diz a etimologia grega que democracia é o “poder do povo”, mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o povo, para as elites, é literalmente o “demo”

Por Luiz Ricardo Leitão

A morte de Hugo Chávez provocou múltiplas e impetuosas reações na Venezuela e no mundo. Cada uma dessas manifestações, por certo, diz muito da posição de classe e da perspectiva histórica de quem as expressa. As massas populares venezuelanas, por exemplo, que viviam há décadas excluídas da vida pública no país e agora voltam a assumir um papel decisivo na política nacional, já inscreveram o Comandante na galeria de heróis da pátria e se comprometem a levar adiante a Revolução Bolivariana. Os empresários e a chamada “imprensa livre”, porém, saúdam sem nenhum pudor sua passagem para o infinito – e cacarejam, aos quatro ventos, que é hora de ‘restaurar’ a democracia (?) na terra de Bolívar.
Em meio ao seu funeral, esse desconforto da mídia e dos monopólios é a melhor homenagem que se poderia prestar ao presidente que mandou a Alca àquele lugar – e enterrou de vez a espúria “Aliança de Livre Comércio” (?) ianque na Cúpula de 2005. Basta ver as manchetes estampadas pelos veículos mais raivosos de Bruzundanga... Em tom de filme de vampiros, ao estilo adolescente playboy, a Veja, porta-voz da banca transnacional, amaldiçoa “a herança sombria” de Chávez; a Época, subnitrato de O Globo, da mui católica família Marinho, não fica atrás e, reeditando “O Exorcista”, conclama a legião dos democratas (?) a livrar a América Latina da influência maldita do chavismo e do bolivarianismo.
Na TV, vi coisas ainda mais bizarras. Em um programa da Globo News, um suposto acadêmico alertava sobre o risco de um ataque da Venezuela aos EUA (!) e insistia em (des)qualificar Chávez de “ditador”, ainda que o dileto confrade Maringoni, também presente, lembrasse-o civicamente de que o Comandante fora eleito e reeleito pelo voto popular. O argumento de nada serviu: com o aval da entrevistadora, o papagaio da intelligentsia alegou que mais de uma década no poder era um sinal inequívoco de tirania. Uai, sô! E a poderosa Sinhá Margareth Tahtcher, a Dama de Ferro britânica que reinou entre 1979 e 1990, o ioiô professor ousaria tachar de “ditadora”?
Pois é, meu caro e fiel leitor, esses são os “guardiões” da democracia, sempre mui zelosos das regras do livre mercado, ou melhor, do mundo livre ocidental. Ouvindo-os discorrer com enorme pompa e circunstância sobre as mazelas alheias, eu até poderia crer que vivo no melhor regime do planeta... De fato, priva-se cá em Bruzundanga do festival da democracia! Ao contrário do que ocorre na Venezuela, onde o povo insiste em inundar as ruas para afirmar sua soberania, nossa Paideia midiática logrou feito bem maior, tornando-nos o país que mais tempo navega na internet. Para tal proeza, em muito têm contribuído as aulas intensivas de educação política que seres iluminados como Faustão, Silvio Santos, Pedro Bial, Gugu e Ratinho nos brindam diuturnamente nas telas da TV. E o que dizer dos Poderes da República, a começar pelo excelso Congresso Nacional? Sinto-me mui orgulhoso, sem dúvida, ao ver o egrégio Renan Calheiros (PMDB), figura ilibada da política nacional, ser eleito o novo (?) presidente do Senado. E o que dizer do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC), célebre por sua homofobia e racismo, indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos (!) da Câmara? Será que a bancada bolivariana do parlamento venezuelano igualaria tamanhos feitos?
Não carece de gastar prosa com os próceres do Executivo, carece? Gente do quilate de Alckmin, Cabral, Wagner e outros governadores, sem falar nos maravilhosos alcaides que promovem a festa das empreiteiras e a limpeza étnica para a Copa de 2014, são a dádiva maior da democracia representativa tupiniquim. Basta ver o quanto se aprende nas escolas públicas ou como são bem atendidos os cidadãos nos hospitais para aquilatar o profundo compromisso social dos nossos síndicos.
Diz a etimologia grega que democracia é o “poder do povo”, mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o povo, para as elites, é literalmente o “demo”... E, não por acaso, Chávez, um mestiço igual ao seu povo, por muito tempo ainda será pintado como um demônio que veio ameaçar a ordem e a paz nas Américas. Gracias, Comandante, por desafinar o coro dos contentes. Seguimos em combate!

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.


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