Ao escrever, o escritor se preocupava com a situação de pobreza e buscava sempre valorizar a língua do povo brasileiro
Por Miguel Yoshida
Em 27 de outubro deste ano, Graciliano Ramos – um dos maiores escritores brasileiros – completaria 120 anos. Sua prosa é marcada na forma por um extremo rigor, e no conteúdo por uma crítica à ordem social estabelecida. A partir de sua realidade mais imediata – o estado de Alagoas –, ele criava literariamente personagens e situações que se abriam a questões do gênero humano; assim como o grandioso escritor russo Leon Tolstoi, para ser universal Graciliano cantava sua aldeia. Através de seus romances e memórias ele nos proporciona um conhecimento do mundo dos homens – das suas relações, de seus sentimentos – no Brasil, além de nos trazer – durante a leitura de suas obras – um grande prazer estético.
Graciliano, ao escrever, se preocupava com a situação de pobreza e buscava sempre valorizar a língua do povo brasileiro – era intransigente com relação à boa utilização do português. Esta sua indignação também se expressava em sua postura de vida, caracterizada por uma honestidade incorruptível, e em sua prática política, primeiro como prefeito da cidade de Palmeira dos Índios depois em sua militância comunista. Mais que um escritor erudito, objeto de vários estudos e análises literárias, Graciliano deve ser amplamente divulgado e conhecido pelo povo brasileiro, pois é um dos seus mais valorosos patrimônios.
A elitização da cultura letrada no Brasil ainda o deixa restrito a pequenos grupos de especialistas dentro das universidades. Há, contudo, diferentes iniciativas que buscam romper estas cercas do conhecimento; é neste sentido que brindamos a oportuna reedição – revista e ampliada – de O velho graça: uma biografia de Graciliano Ramos, de Dênis de Moraes, pela Boitempo Editorial.
Esta biografia – calcada em ampla pesquisa sobre o Brasil da primeira metade do século 20, sobre a vida e sobre a obra do autor – esquadrinha o percurso de vida Graciliano Ramos, numa escrita ao mesmo tempo ágil e profunda, desvelando a profunda coerência do “ser humano alinhado aos semelhantes em qualquer circunstância (...); o militante comunista (...); o magnífico escritor de um tempo de conflitos, que acreditou sempre que o homem tudo pode na Terra – até mesmo construir a felicidade.” Um dos aspectos mais louváveis deste trabalho é o de buscar compreender a trajetória de Graciliano em estreita relação com o desenrolar das transformações econômicas, políticas e sociais pelas quais o Brasil passou na primeira metade do século 20.
Como adverte Carlos Nelson Coutinho no prefácio à primeira edição da obra, esta é uma “biografia a que não é biografista. Ou seja, em nenhum momento Dênis de Moraes utiliza o vasto material biográfico de que dispõe para tentar explicar, através dele, o universo estético de Graciliano Ramos.” Apesar disto, podemos acompanhar as situações nas quais nasceram os diferentes escritos de Graciliano, desde sua formação intelectual autodidata em Alagoas, suas leituras dos clássicos da literatura francesa e russa, seu primeiro contato com as obras de Marx e Engels e a atenção com a qual ele acompanhava os desdobramentos da Revolução Russa e das ebulições sociais na recém-proclamada república brasileira; os seus primeiros artigos para jornais até seu mergulho no universo da produção literária naquilo que seria uma das suas principais marcas como escritor: uma refinada e longa “labuta estética”, um constante dilapidar de seus escritos.
Dênis de Moraes retrata o ambiente cultural progressista alagoano de onde surgem vários dos romancistas da “geração de 1930” – entre eles, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Amando Fontes e o próprio Graciliano – cuja principal característica era uma marcada crítica social a partir de temas regionais, no caso as duras condições de vida do povo no nordeste brasileiro. Nota- se, neste grupo, a influência do pensamento de esquerda, assumidamente declarado em Rachel de Queiroz – então vinculada ao trotskismo – e em Jorge Amado – ligado ao Partido Comunista do Brasil. A presença destas ideias nas preocupações de Graciliano pode ser notada a partir de seu segundo romance, São Bernardo – uma das mais profundas obras sobre a questão agrária no Brasil.
O velho graça tem como fio condutor a constante luta de Graciliano Ramos na tentativa de sobreviver como escritor – segundo o próprio, algo possível, no Brasil, somente aos tabeliães e jornalistas – passando por dificuldades financeiras a vida toda; sua constante luta por uma sociedade melhor – que lhe rendeu uma longa estada nos cárceres do Estado Novo de Getúlio Vargas – primeiramente como um homem progressista depois como convicto militante comunista.
Este livro de Dênis de Moraes contribui para que Graciliano Ramos extrapole os ambientes acadêmicos e especializados, pois o retrata não apenas como um dos maiores literatos brasileiros, mas, sobretudo, como pessoa inigualável, cuja perspectiva sempre foi guiada por um profundo sentimento de indignação à miséria imposta ao povo brasileiro e por estar sempre com o “coração aberto aos homens”.
Miguel Yoshida é mestrando do programa de Estudos Comparados em literaturas de língua portuguesa da Universidade de São Paulo
FONTE: Brasil de Fato
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