POR ARLENE E. CLEMESHA
Algumas horas antes de realizar os ataques que massacraram pelo menos 93 pessoas na Noruega, Anders Behring Breivik, 32, publicou um horripilante manifesto anti-islâmico de 1.500 páginas.
Intitulado "2083 - Uma Declaração de Independência da Europa", o documento transborda de ódio e denuncia a "islamização da Europa Ocidental". Mas os alvos do ataque cuidadosamente selecionados foram edifícios do governo trabalhista e um grupo de jovens noruegueses da mesma filiação partidária.
No dia 11 de junho, o terrorista Anders registrou em seu diário: "Rezei pela primeira vez em muito tempo. Expliquei a Deus que, a não ser que ele quisesse que a aliança marxista-islâmica e a tomada islâmica da Europa aniquilassem completamente a Cristandade Europeia nos próximos cem anos, Ele deveria assegurar a vitória dos guerreiros pela preservação da Cristandade Europeia".
O que seria a "aliança marxista-islâmica" senão a fantasia criada para tentar incitar medo na população em um contexto de crise, recessão e perda de empregos, principalmente entre a classe média?
Uma comparação histórica é tão reveladora quanto alarmante. Se substituirmos a expressão fantasiosa da "aliança marxista-islâmica" pela velha expressão igualmente imaginativa de "aliança marxista-judaica", teríamos a impressão de estar revivendo os anos 1930, quando o nazismo culpava os judeus de se aliarem ao marxismo para tentar dominar a Europa e o mundo.
Ao mesmo tempo, acusavam os judeus de manipularem o grande capital especulador e não produtivo, não obstante a clara contradição de discurso e o fato de os judeus simplesmente não controlarem nem o capital bancário mundial nem o marxismo internacional.
Outro paralelo importante de se notar é que tanto o ódio anti-islâmico contemporâneo como o antijudaísmo nazista prescindem de um grande número de judeus ou de islâmicos para se manifestar.
De fato, na Alemanha, Hitler construiu todo seu discurso sobre o "perigo que os judeus representavam à raça ariana" na quase ausência de judeus, que somavam 0,75% da população daquele país. Os milhões de judeus que o nazismo encarcerou e aniquilou, junto com vários outros grupos minoritários, eram cidadãos dos países invadidos da Europa Oriental.
Da mesma forma, o Partido Progressista populista e de extrema-direita ao qual Breivik pertence critica enfaticamente a política de aceitação e de integração de imigrantes da Noruega. Mas as estatísticas do governo indicam que os oriundos de países islâmicos representam grupo mínimo, isto é, aproximadamente 0,87% da população do pequeno país nórdico. Cerca de 65% dos imigrantes na Noruega são europeus, a maioria poloneses.
Para se ter uma ideia, em janeiro de 2010 a população da Noruega somava 4,86 milhões de habitantes, dos quais 334 mil eram estrangeiros. Desses, 42.410 vinham de países islâmicos na Ásia e na África, além da Turquia. O relatório do governo afirma que "a porção de residentes oriundos de países asiáticos [incluindo a maioria dos países islâmicos] está decrescendo gradualmente há vários anos".
Quer dizer, o discurso racial, seja ele antissemita ou islamofóbico, possui uma relação mais estreita com o grupo que o professa do que com a sua vítima.
Chega, em alguns casos, a prescindir da vítima, sendo capaz de criá-la à sua conveniência como a imagem oposta de tudo aquilo que ele mesmo deseja ser, o espelho invertido da fantasia de si mesmo. É claramente no racista que devemos buscar a explicação do racismo.
A imagem que ele faz do suposto "perigo islâmico" cumpre função central ao transformar os imigrantes islâmicos em bodes expiatórios dos males europeus, com o desemprego encabeçando a longa lista.
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ARLENE E. CLEMESHA é professora de história e cultura árabe na USP e diretora do Centro de Estudos Árabes da mesma universidade.
FONTE: Folha de São Paulo, 27 de julho de 2011.
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