Por Manuel Augusto Araújo
O recente falecimento da Quino, o criador da banda desenhada “Mafalda”, justifica não apenas esta homenagem, mas também o apelo a que o seu exemplo seja seguido. Num tempo em que a cultura mediática e dita popular é um esmagador instrumento de alienação e de difusão de reaccionarismo, a lúcida e combativa Mafalda - famosa em todo o mundo - é a prova de que a inteligência e o espírito crítico, combinados com um humor demolidor, podem ser ao mesmo tempo entretenimento e eficaz instrumento de combate.
Uma lista mais que resumida, escassa perante a grande quantidade e qualidade dos muitos que com os cartoons marcaram e marcam presença em todo o mundo. Se os percursos artísticos e as opções estéticas os distinguem há um traço firme comum a todos, os referidos e os muito mais que se poderiam referir, que é o darem testemunho do seu tempo tirando a temperatura ao seu estado social e político, aos seus desastres, ao seu grotesco, aos seus vícios, com elaborado humor, vastas ironias, mesmo vitriólica veia satírica.
Cada cartoon, com golpes mais certeiros e devastadores que os golpes cinematográficos de kung-fu de Bruce Lee, contribui para traçar um cadastro irreverente e implacável da mediocridade e das hipocrisias deste nosso mundo. O cartoon, na sua aparente efemeridade, sempre ligado a um sucesso temporalmente datado, na sua linguagem, por vezes simplista para adquirir maior legibilidade, arrisca-se àquela classificação de ser uma arte menor, uma tremenda injustiça até porque isto de artes maiores e menores tem muito que se lhe diga no seu tempero elitista. O cartoon é uma reportagem do quotidiano que se liberta dos calendários para transmitir, de um ou outro modo, uma mensagem politicamente universal e intemporal.
Olhar crítico sobre o mundo
Quino inscreve-se por direito próprio nessa longa lista de caricaturistas, especialistas do raio-X que aplicam à sociedade radiografando-a implacavelmente. Adquire celebridade quando, em 1964, faz Mafalda sair da banda desenhada de uma casa típica de uma família burguesa de classe média que iria comprar uns eletrodomésticos, para a tornar na célebre contestatária que, com o seu humor corrosivo e negro, não deixa pedra sobre pedra do edifício da realidade social e política desta sociedade sem dignidade fundada na exploração humana.
Contestatária com um lado muito terreno de detestar sopa, adorar os Beatles, expor perplexidades filosóficas a olhar para o globo terrestre, torna-se rapidamente na mais famosa comentadora política sobre o mundo, a luta de classes, as tiranias, o capitalismo. Reconhecida em qualquer canto do mundo, Mafalda quase oculta o trabalho do seu criador Quino que, em paralelo à rapariga contestatária, continuava a fazer outras bandas desenhadas, excelentes mas com menos visibilidade, como se pode ver em Portugal no ano de 2014, no Festival Amadora BD.
Mafalda não envelhece, espalha o nome e o trabalho de Quino pelo mundo, até o seu criador a calar continuando o seu trabalho de cartonista, óptimas tiras de banda desenhada embora longe do estrelato da Mafalda. Quino deixou de desenhar Mafalda em 1973. Comenta o tê-la silenciado por estar extenuado com essa sua criação, mais conhecida que o seu criador, não deixando de dar uma pista para não mais a encontrarmos: «provavelmente estaria morta, seria um dos desaparecidos da ditadura militar argentina»(1). Mafalda até ao fim da sua vida teve sempre a luminosa lucidez crítica política de Quino, para quem o mundo actual «é um desastre, uma vergonha» que dissecou com o bisturi do seu lápis.
Nota:
1- A ditadura argentina imposta por um golpe de estado em 1976, chefiado pelo general Videla, almirante Massera e brigadeiro Agosti, foi preparada com colaboração activa dos EUA. Brutal, durou até 1983 período durante o qual «desapareceram» 30 000 argentinos. Kissinger apoiou-a e defendeu-a em vários areópagos internacionais para não deixar dúvidas sobre o que representam os direitos humanos para os EUA
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2445, 8.10.2020
FONTE: ODiario.info
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