domingo, 26 de agosto de 2018

Uma BNCC à procura do magistério

Por Luiz Carlos de Freitas*

No Brasil o suporte à BNCC está sendo dado por um grupo de tecnocratas e especialistas (alguns bem intencionados), organizados no Movimento pela Base, financiado pela Fundação Lemann. Há algum tempo, a Fundação Lemann vem se aproximando do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) criando uma espinha dorsal que, alinhada com o MEC, cujo atual ministro foi do CONSED, constituem uma máquina de indução para a aprovação e implementação da BNCC. Como resultado, construíram uma proposta disforme e agora estão em busca do magistério para que ele a adote.
Sempre dissemos que é uma falácia a afirmação dos apoiadores da BNCC, incluindo o MEC, argumentando que ela não é currículo. Eles dizem que a base vai virar currículo nos Estados de nos Municípios com a participação dos professores. Uma argumentação, e nada mais que isso, para fugir da crítica da verticalização das decisões e ocultar a própria falta de participação na construção da base.
O Movimento pela Base, em associação com o MEC, continua sua tarefa de mobilizar os estados brasileiros para que adequem a BNCC já aprovada a seus estados. Note que nem nos Estados Unidos a base nacional comum (Common Core) foi implantada obrigatoriamente. Lá, o governo federal teve, pelo menos, que fazer algum esforço para que houvesse a adoção pelos estados. Mas no Brasil, resolveram pular esta parte e acelerar. Portanto, aqui ela é obrigatória e por pouco o próprio conteúdo da BNCC não virou lei no Congresso. Mas, como dizem, quanto mais alta a árvore, maior é o tombo.
Estes dias o Movimento pela Base divulgou um “roteiro” para os estados engolirem a BNCC do MEC. Um exame deste só atesta o que já dissemos: a BNCC (associada à avaliação do SAEB) padroniza o currículo das escolas em todo o país – fato negado pelo MEC e apoiadores. Vejamos o que planejaram para os estados “participarem”.
O texto, logo no início diz a que veio (todos os grifos que se seguem são meus):
“A (re)elaboração dos currículos em regime de colaboração com os municípios é um passo essencial para que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se torne realidade nas escolas de todo o país.”
“A ideia é que professores, gestores e a comunidade escolar possam enviar sugestões para deixar os currículos com a cara da região.”
“Para que as contribuições sejam mais significativas, é preciso conhecer bem o que a BNCC determina.”
O foco do esforço é que a BNCC chegue até a sala de aula e a “participação” está limitada a isso: aplicar a base em sala de aula. “Reelaborar” e  “dar a cara da região” é a mensagem de abertura. Aqui nada sugere que se possa “participar” de fato da elaboração de uma base estadual curricular. O nível de participação permitido é aquele que “dá a cara” do local à base pronta. É um convite para que o magistério coloque um “máscara” na BNCC pronta, para que ela se pareça com a região. A ênfase está na aplicação da base já pronta:
“Seja contextualizando um objeto de conhecimento ou habilidade dentro da riqueza sociocultural da região, seja acrescentando novas competências e habilidades que fazem sentido para os alunos do estado, seja sugerindo práticas pedagógicas que podem ajudar a aprimorar o trabalho do professor.”
No entanto, onde está o pulo do gato: mesmo que você consiga acrescentar ou contextualizar algo, isso só vale para os estudantes do seu município ou estado. Saiba que nada disso cairá na avaliação do SAEB – a avaliação que dirá se sua escola está fracassando ou não em seguir a BNCC já pronta e não a do estado ou município. Padronizar a educação pela base é só um primeiro passo. O controle do MEC será feito sobre a BNCC que já está pronta e não por esta “base mascarada”.
E era muito fácil melhorar isso: bastava tornar o SAEB amostral e liberar os estados e municípios para que fizessem suas próprias avaliações (como aliás é nos Estados Unidos), pelo menos podendo levar em conta suas próprias “caras” construídas sobre a BNCC. Não salvaria a lavoura toda, mas do ponto de vista do próprio MEC, melhoraria a situação da colheita. Mas como o que conta é o SAEB, de nada adianta a avaliação estadual ou municipal – ela não salvará sua escola.
Em seguida o texto elenca uma série de dimensões para a tarefa dos estados que permite ver o que se espera da “participação” do magistério:
“1. CONTEXTUALIZAÇÃO: adequar o que está proposto pela BNCC à realidade local, usando as características regionais (culturais, históricas, sociais, naturais) e a própria vivência dos alunos.” Por exemplo: “escolha dos autores das obras”; “questões municipais/estaduais em relação à coleta e reciclagem de materiais”; e outros como “para trabalhar estatística, use a vivência em sala de aula”.
Atente-se para o verbo “adequar” e veja os exemplos de “participação”: definir autor de obra e outras formas de trabalhar com a BNCC em sala de aula. Trata-se de fazer uso da BNCC e não de participar na sua construção local. Mas além de “contextualizar”, você pode “complementar”.
“2) COMPLEMENTAÇÃO: os currículos podem adicionar habilidades, módulos e componentes inteiros que não estão na BNCC.” “Exemplos: no município de São Paulo, programação e letramento digital farão parte do currículo a partir do 1º ano do Ensino Fundamental. E no estado de Roraima, que faz fronteira com a Venezuela, além de Língua Inglesa, que é obrigatória, o currículo incluirá Língua Espanhola.”
Veja. São exemplos que indicam claramente que isso jamais cairá em uma avaliação nacional. São acessórios. Mas além de “contextualizar”, “complementar” (com acessórios locais), você pode fazer “aprofundamentos”. Vejamos do que se trata.
“3) APROFUNDAMENTO: é possível incluir sugestões de aprendizagens mais específicas, de práticas pedagógicas para a sala de aula, do que se espera do professor e de orientações para a avaliação.” Exemplo: “em Ciências da Natureza, há uma habilidade que prevê caracterizar os principais ecossistemas brasileiros. Ela pode ser aprofundada quando os alunos consultam fontes de dados como mapas, cartas geográficas e inventários da fauna e da flora. O professor também pode propor, por exemplo, que eles comparem o ecossistema local com outros ecossistemas do Brasil. Já em Geografia, para analisar as mudanças na paisagem causadas por diferentes tipos de sociedade, além de pinturas e fotografias o currículo pode propor o uso de imagens do Google Earth para comparar ambientes urbanos e rurais, analisando os tipos de construção e as condições espaciais, como o relevo e a hidrografia.”
Novamente, estamos falando do nível da sala de aula e não de “participar” da elaboração de uma base estadual curricular. O termo “participar” aqui tem o sentido de “colocar em prática”. O ponto seguinte, “interdisciplinaridade” – que está longe de significar “fazer junto” – atesta isso.
“4) INTERDISCIPLINARIDADE: sempre que o mesmo tema aparecer em disciplinas diferentes, e no mesmo ano, os professores podem trabalhar juntos”.
Finalmente chegamos a duas dimensões que são lapidares quanto à sua diretividade:
“5) DESENVOLVIMENTO INTEGRAL: o currículo deve ajudar o aluno a se desenvolver em todas as suas dimensões, por meio das 10 Competências Gerais que estão no capítulo introdutório da BNCC.”
“6) PROGRESSÃO: é preciso ter em mente quais habilidades precisam estar garantidas em cada etapa, pensando que a aprendizagem segue uma sequência de complexificação, conforme os anos escolares avançam.”
Ou seja, as habilidades e competências são as indicadas na BNCC e até a sequência conceitual está definida. Veja que uma tal especificação determina até mesmo a abordagem que se fará nos materiais didáticos. Eles mesmos já estão com sua estrutura definida. Elimina-se qualquer possibilidade de métodos de ensino com uma estrutura diferenciada.
Fim de papo? Ainda não. As instruções do Movimento pela Base ainda têm uma advertência final:
“Vale lembrar que todas as habilidades e competências previstas na BNCC precisam aparecer nos currículos estaduais. Nada pode ficar de fora!  Além disso, é importante prestar atenção aos verbos utilizados no texto da habilidade para não diminuir a complexidade do processo cognitivo. Por exemplo, se a BNCC fala em relacionar informações, o currículo local não deve falar em identificar informações, pois identificar é menos complexo do que relacionar. Lembre-se de não é apenas o conteúdo em si que precisa estar contemplado na descrição de cada habilidade, mas também os processo cognitivos envolvidos: identificar, diferenciar, relacionar etc.”
Ou seja, todas as escolhas relevantes, já foram feitas ao se montar a BNCC em Brasília. Agora, trata-se de que a pílula seja engolida: um verdadeiro desrespeito à inteligência do magistério. A isso foi reduzida a “participação” do magistério. E ainda querem dizer que a BNCC não é currículo.
É preciso começar tudo de novo, exatamente porque uma base nacional curricular comum não deve ser currículo é que ela está condenada, pois amarrou tudo de cima para baixo. Uma base deve ser uma referência construída coletivamente, que tenha o sentido de um projeto nacional, que aponte o que entendemos todos (não apenas os empresários, suas fundações e ONGs) por ser uma “boa educação para nossas crianças e jovens”. Ela deveria ter começado pelos Estados e Municípios, envolvendo aqueles que fazem a educação.
Sem uma definição coletiva do que entendemos ser uma boa educação, não há BNCC que dure. A prescrição curricular, por si, não garante a prática curricular. Para tal, terão que acionar um sistema repressivo via avaliação do SAEB, mas isso, é mais do mesmo que já não funcionou na matriz americana.
Um dos pontos fracos das políticas públicas neoliberais que estão sendo aplicadas pelo MEC é que elas encantam à primeira vista com suas lógicas de senso comum, mas não se sustentam ao longo do tempo, principalmente quando os primeiros resultados começam a aparecer (ou a não aparecer). É o caso típico destas políticas nos Estados Unidos onde elas estão constantemente empacando. Mas a reforma empresarial da educação tem sua própria lógica movida a fé (e mercado) e não pode abrir mão de suas receitas, nem quando caminha em direção ao precipício. O problema é que existem gerações de jovens sendo atingidas por políticas que gerarão mais décadas perdidas.
*Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.

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