sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Do ponto onde estamos: uma leitura sobre o momento atual da luta de classes no Brasil

POR MARCELO BADARÓ MATTOS


A situação atual confirma as muitas avaliações de que junho de 2013 abriu um novo momento na luta de classes no Brasil.[1] As mobilizações multitudinárias, àquela altura, colocaram em cheque o “sucesso” do modo lulopetista de governar. Se a polarização eleitoral de 2014 rendeu ao governo capitaneado pelo PT a possibilidade de recompor bases sociais de apoio, tendo por mote o voto no “menos pior” (face ao medo do retorno do tucanato) e uma certa radicalização discursiva da candidatura de Dilma, o acirramento da crise capitalista, ao obrigar o governo a uma reorientação da política econômica, desvelou as máscaras: às favas com as fachadas neodesenvolvimentistas e volta à carga pesada do arsenal neoliberal clássico – juros elevados, mais retirada de direitos, cortes orçamentários nas áreas sociais e privatizações em cascata.
            Aproveitando o clima da ressaca pós-eleitoral com o governo petista, a direita política mais radical lançou-se às ruas, no primeiro semestre deste ano, buscando capitalizar os descontentamentos, especialmente dos setores médios, com as políticas anti-populares do início do segundo mandato de Dilma.[2] Um descontentamento, diga-se de passagem, já manifesto em São Paulo (que se tornaria o epicentro da efervescência reacionária) desde as eleições, conforme indicou a queda da votação petista mesmo nos seus “bastiões” tradicionais.
            A onda coxinha tinha respaldo parlamentar. De aliança em aliança para ampliar a “base de apoio” no Congresso, o governo petista conseguiu a proeza de se eleger com o Congresso de perfil mais retrógrado da história recente do país, elevando o status de figuras nefastas como Eduardo Cunha, que assumiu a presidência da Câmara e de fascistas assumidos como Jair Bolsonaro que capitalizou a situação como figura pública da reação (ou “mito” da coxinhada). Ambos eleitos por partidos da “base aliada” diga-se de passagem. Na combinação das mobilizações reacionárias com as articulações da bancada BBB (bala, boi e bíblia) criou-se o espaço para o avanço da “pauta conservadora” no Congresso – redução da maioridade penal, limitações ainda maiores ao aborto, estatuto da família, etc. – que despertou e tem despertado resistências importantes. Sintomaticamente, porém, percebe-se que se a “pauta conservadora” avança, mas encontra resistências internas no congresso – permanece congelada no Senado -, as medidas de austeridade do “ajuste fiscal”, com toda a transferência da carga da crise para o ombro da classe trabalhadora, são aprovadas com agilidade impressionante.
            De qualquer forma, as mobilizações coxo-reacionárias do primeiro semestre refluíram, na medida mesmo que os porta-vozes das organizações de classe dos dominantes negaram publicamente o apoio ao “Fora Dilma!”. No entanto, um elevado grau de imponderabilidade no jogo das manobras políticas entre o governo e seus opositores/aliados (oposição política, mas apoio de classe à principal política do governo – o “ajuste fiscal”) se manteve, em decorrência da dinâmica jurídico criminal da “operação lava a jato”, na qual, em troca de algum tempo a menos na cadeia, próceres da burguesia e da gestão do aparelho de Estado acabam por entregar cada vez mais envolvidos em tenebrosas transações com dinheiro público.
Do lado de lá
            O consenso até aqui evidente da classe dominante em torno das medidas de austeridade como caminho para o enfrentamento da crise é o elemento fundamental para a avaliação da sustentabilidade ou não do governo Dilma. Tal consenso, porém, não é absoluto ou imutável. As torneiras da combinação dívida pública/juros altos continuam a irrigar os lucros dos bancos e as frações do capital aglutinadas nos fundos de investimento (e todo o capital se garante por essa via, independentemente de sua origem na produção do valor ou na intermediação comercial, de serviços e bancária) continuam a saquear o fundo público à vontade – vide o aumento dos recursos para o FIES (alimentando as grandes corporações finaceirizadas do ensino superior privado) em meio aos cortes no orçamento da educação e a ofensiva para capitalizar o Funpresp (fundo previdenciário complementar para o funcionalismo público). Entretanto, as pressões para uma “flexibilização” do ajuste, para o capital, se ampliam. Com a União e os demais entes federativos sem recursos para continuar sobre-remunerando as empreiteiras (e seus gestores hoje em grande parte encarcerados) nas obras do PAC e mega-eventos; com a desaceleração da economia chinesa abalando as previsões de expansão do agronegócio (que tem se apoiado na desvalorização do real para manter “competitividade”); ou com a brutal queda do consumo de bens de consumo duráveis (20% de retração na produção automobilística) há descontentamentos. É essa pressão que explica os discursos de maior contemporização e ênfase na retomada do crescimento feitos por Joaquim Levy, não a marola dos “neodesenvolvimentistas” do PT. E o previsível agravamento da crise tende a acirrar essas contradições.
            Nada indica, entretanto, que a classe dominante ou alguma de suas frações aposte na saída da derrubada de Dilma para substituí-la por um vice peemedebista ou para buscar novas eleições antecipadas em que a imprevisibilidade será a marca. As oscilações recentes no jogo político, portanto, tem origem em outra dimensão de conflitos. É nesse marco que talvez possamos compreender melhor o efeito que poderá ter a admissibilidade do processo de impeachment por Eduardo Cunha, em ato de retaliação explícita pela mudança de posição dos deputados petistas que anunciaram voto pela admissibilidade de processo contra ele na Comissão de Ética (sic.) da Câmara.
            Oposição e situação se sentiram realmente ameaçadas foi com as prisões de Delcídio Amaral – líder do governo no Senado atualmente, mas diretor da Petrobrás no segundo mandato de FHC, vale lembrar – e do banqueiro André Esteves – que financiou as campanhas de Dilma, Aécio, Cunha e meio Planalto Central, além de presentear de Lula a Aécio com viagens de luxo e ouros mimos. Diante da disjuntiva entre as grades da cela e a tornozeleira eletrônica nos palácios urbanos em que residem, a opção por delatar alguns comparsas de todas as cores partidárias e devolver uma parcela pequena do botim aos cofres públicos não é assim tão difícil.
            Como a reação imediata da volta dos avatares dilmistas nas redes sociais e as comemorações de alguns petistas (que antes diziam que “qualquer impeachment é golpe”[3]) deixaram evidente, o gesto de Cunha tende a ser positivo para o governo, por propiciar uma possibilidade à desgastada Dilma de ampliar sua base de apoio, polarizando contra a figura do presidente da Câmara, cuja reputação é a pior possível. De quebra, ao retirar as prisões da semana passada do centro do noticiário, aliviam-se todos, de Lula a Aécio.
Do lado de cá
            O avanço da direita reacionária, inclusive para as ruas, decorre das “jornadas de junho”, mas essencialmente como reação ao caráter de classe – da classe trabalhadora – daquelas manifestações. E o “espírito de junho” não se dissipou completamente, nem pela reação de direita, nem pelos esforços petistas – nas eleições e depois – de reaglutinar as bases de apoio do lulismo. A onda de greves do segundo semestre de 2013 e primeiro de 2014, embalada por mobilizações dos trabalhadores da área de educação e pelas paralisações à revelia, ou contra, das direções sindicais burocratizadas (garis, rodoviários, operários da construção civil, entre outras) foi impulsionada por junho. Como o foram as ocupações urbanas na luta por moradia, muitas delas dirigidas pelo MTST.
            Greves na contracorrente das direções sindicais e ocupações urbanas continuaram a acontecer. A elas se somam agora dois movimentos em que o “espírito de junho” parece reviver, com o adendo de que neles não há espaço para a disputa da direção pela direita, visto que sua pauta e perfil são essencialmente de enfrentamento contra a mesma direita: a “primavera das mulheres” e as ocupações de escolas em São Paulo.
            O sucesso das campanhas feministas nas redes sociais e as expressivas mobilizações de rua do movimento de mulheres pelo “Fora Cunha!” desnudam o verdadeiro sentido da “pauta conservadora”: preservar a lógica do patriarcado que reveste a dominação social no Brasil face a verdadeira elevação da consciência feminina e social na luta contra o machismo cotidiano em sua brutalidade, hoje cada vez mais difícil de invisibilizar. Por outro lado, dão o sinal para toda a esquerda socialista: unidade de ação em uma pauta progressiva – “Fora Cunha!” e “Pela vida das mulheres” – sem maiores espaços para as pautas governistas mal-disfarçadas em “Defesa da Democracia”.[4]
            Já as ocupações de escolas revelam o melhor legado das jornadas de 2013. Jovens, de origem trabalhadora, estudantes da escola pública, que se levantam contra o governo tucano e sua política de desmanche da educação, em uma experiência de ocupação e auto-gestão de escolas que representa objetivamente a possibilidade de formação de uma nova geração de ativistas político-sociais comprometidos com as bandeiras socialistas e experimentados desde cedo na luta. Luta que nos últimos dias vem se acirrando, com os enfrentamentos entre a PM assassina – com seu arsenal “não letal” tão popularizado em junho: spray de pimenta, cacetete, bombas de gás e balas de borracha – e a estudantada armada da mais letal das ferramentas de luta de que dispõe: as carteiras escolares, hoje usadas para simbolizar o que a escola não é, mas poderia ser.[5]
            Aos militantes da esquerda socialista não há alternativa a não ser apostar na multiplicação dessas lutas. Mas, com que perspectivas e programa de intervenção?
Nosso lugar    
        Estar inseridos nas lutas em curso, nesta conjuntura, é a obrigação. Essa predisposição, por certo, nem de longe resolve nossos problemas. Como atuar e com que propostas?
            De uma lado, reatualiza-se a necessidade da construção de uma frente da esquerda socialista, reunindo suas organizações políticas e os movimentos sociais mais combativos e de perspectiva classista, para intervir de forma articulada nos movimentos (e não apenas nos cenários e momentos eleitorais, embora nem isso tenha sido possível nos últimos tempos). A elevação do patamar de lutas, com a unificação dos movimentos regionalizados e fragmentados em pautas setoriais, exige a formação de um polo combativo mais amplo.
            Além disso, para levar adiante bandeiras essenciais nessa conjuntura – como a greve geral contra o ajuste fiscal e a retirada de direitos dos trabalhadores – precisaremos construir unidade na luta até mesmo com os setores da burocracia governista nos movimentos sindical e “popular”, o que dependerá mais que tudo da pressão de “suas” bases. No entanto, só teremos força de pressão e capacidade convocatória sobre essas bases para levar adiante tais bandeiras, com autonomia e representatividade, se construirmos uma atuação conjunta da esquerda socialista, costurada por um acordo em torno de um programa comum de intervenção.
            Essa perspectiva não pode ser confundida com a proposta de uma frente de movimentos e forças políticas que inclua as organizações que dão sustentação ao governo que executa as medidas do ajuste fiscal. Esse parece ser o caso da “Frente Povo sem Medo” que, embora respaldada na respeitabilidade adquirida na luta pelo MTST, possui o efeito de sustentar a ilusão de que é possível combater o ajuste em uma aliança estável com a burocracia dirigente, que no dia a dia representa um dique de contenção da classe trabalhadora. Se do ponto de vista tático-imediato, a participação nas atividades convocadas por tal “Frente” pode representar um instrumento de resistência em situações regionais como a do “Tucanistão” paulista, no plano da conjuntura de média duração e em outras realidades regionais em que a capacidade de vertebração do MTST inexiste (sendo a “Frente” é um mero slogan do aparato governista), o apoio a esse instrumento cumpre o papel objetivo de confundir as lutas da classe trabalhadora.
            Por outro lado, será necessário construir um programa de intervenção imediata que se ancore da luta realmente existente – como o movimento de mulheres e as ocupações de escolas, aos quais certamente se somarão movimentos de servidores estaduais em situação de parcelamento salarial e atraso do 13o. em diversas unidades da federação, entre outros – para propor alternativas dos trabalhadores para a crise. Não nos cabe receitar o programa completo, substituindo o papel dos protagonistas reais das lutas, nem tampouco lançar do alto palavras de ordem – como o “Fora todos!” – na suposição de que terão aderência automática em lutas que estamos distantes de dirigir, sob o risco de sermos tomados por oportunistas na esquerda, ou confundidos com a direita pelo senso comum.
            Mas, quem disse que algum dia foi fácil?

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