Por Mauro Luis Iasi.
Assistimos ao espetáculo da violência.
A própria frase encerra seu significado mais dramático. Parte das
pessoas encara a violência no papel de espectadores e a consomem pelo
filtro dos meios de comunicação – seja a televisão, o rádio, as redes
sociais. Sujeitos apassivados adornianamente pela indústria cultural,
transformados em espectadores que expectoram catarticamente para o vídeo
burro seus anseios e frustrações, para vê-los realizados pelo outro
inexistente, tornando-os vazios.
A raiva, a
violência, a fúria, mas também a paixão romântica, a aventura ou
fantasia, projetam desde fora os elementos do ser social, projetado para
fora de si mesmo para se reconhecer no outro. Tal mecanismo não é
necessariamente de estranhamento, se pensarmos que assim nos
constituímos como seres sociais, se reconhecendo no outro. O problema é a
natureza e qualidade deste outro.
A
mercantilização da arte e da comunicação reconstrói o objeto de projeção
de forma a retirar dele toda a contraditoriedade viva. A massificação
sob a forma mercadoria é necessariamente padronizadora, repetitiva,
metódica e, em uma palavra, burocrática. Inseparável da reificação, como
já dizia Marx quando afirmava que está é a maldição inevitável dos
produtores quando assumem a forma de mercadorias. Uma relação entre
seres humanos que assume a fantasmagórica forma de uma relação entre
coisas.
Aquele que
se relaciona com o vídeo ou a pequena tela onde vivem as “redes sociais”
é já, antes de tal ato, uma coisa. Reificado pela vivência de relações
reificadas, coisificado na compra e venda de sua força de trabalho, na
relação com os demais mediados por coisas e pela lei do valor, pelo
mercado. No entanto, aquele que se coisifica é ainda um ser humano
coisificado e isso é um problema.
A força de
trabalho pode ter sido convertida em mercadoria, as necessidades humanos
em meios de realização do valor de troca, mas tais dimensões não podem
existir fora dos seres que a possuem. Para desespero do capital, os
seres humanos e seus problemas comezinhos, são o veiculo portador da
principal mercadoria da forma capitalista, assim como aqueles que em seu
consumo a realizam.
Um ser
social e histórico que vive e respira, que precisa comer, vestir-se,
habitar, que fica doente e que se apaixona, canta, olha seus filhos com
esperanças descabidas, que sente a carne cortada por injustiças, por
isso se revolta e por isso luta. Em suas veias não corre apenas a
substância abstrata do valor, mas sangue que ferve e, às vezes, explode.
O capital
não pode explorar o trabalho sem atingir o conjunto da humanidade e os
seres que a compõe. Não pode evitar, portanto, que esta forma superior
de exploração não produza seu contrario: a revolta. Por isso, toda forma
de exploração é, inevitavelmente, uma forma de dominação.
A dominação
não é um ato simples que resulta do mero uso da força, ainda que esta
seja um meio indispensável. O velho Maquiavel já alertava há muito tempo
que nenhuma ordem se mantém só pela espada e funda a política moderna
afirmando que o domínio resulta da exata combinação da coerção e do
consenso.
Se por uma
lado a força coercitiva é explicita, as formas de violência não o são. É
violenta a ação criminosa da Polícia Militar que assassina jovens nas
periferias e favelas, mas é violento também o racismo que a enquadra, a
opressão sobre migrantes e imigrantes, assim como é ainda mais violenta a
manifestação de integração dos oprimidos e explorados como sujeitos de
sua própria dominação quando se amoldam a ordem que os massacra.
No entanto,
esta integração não é um ato de convencimento. Os explorados e oprimidos
não aceitam a ordem porque foram convencidos de sua superioridade
societária ou porque portam os melhores valores de nossa melhor
sociedade. A ideologia não é um ato meramente cognitivo, não é um mero
conjunto de ideias transmitidas e assimiladas por falta de crítica. Isso
pensavam os críticos – críticos que Marx e Engels ironizavam
impiedosamente em sua obra A ideologia alemã.
Se a
ideologia é um mero conjunto de ideias que falsificam o mundo para
favorecer a dominação, bastaria oferecer as ideias corretas. Daí resulta
que não apenas os apóstolos do novíssimo testamento como Bauer e
Stirner, mas boa parte da esquerda contemporânea se empenha em disputar
com os meios de comunicação da burguesia com golpes risíveis de suas
precárias iniciativas comunicacionais.
A ideologia é
um fenômeno mais complexo. São as relações sociais dominantes expressas
como ideias, as relações que fazem de uma classe a classe dominante, as
ideias de sua dominação. Por esta aproximação não se trata de mudar uma
fraseologia do mundo por outra, mas de mudar o mundo, um ato prático,
uma revolução. E uma revolução é um ato violento de negação, uma
ruptura.
Voltemos, então, à frase inicial: assistimos ao espetáculo da violência.
Inseridos nas relações que constituem a ordem do capital que degrada o
ser humano a mera coisa, o trabalho em meio de vida, e a vida em meio
pelo qual o valor se valoriza, os seres humanos subsumidos à ordem
reificada vivem contradições que geram raiva e indignação porque se
confrontam com seu ser e o aviltam.
Diante disso
poderiam viver esta contradição, rebelar-se. Mas isso é muito perigoso.
Aqui entra em cena o mecanismo da catarse. Oferece-se a estes seres
angustiados uma caixinha de alternativas mágicas através das quais ele
pode perder-se numa ilha deserta, viajar aos confins do espaço (onde
nenhum homem já foi), amar perdidamente, mas, também, sofrer, morrer em
explosões, matar, trair, derrubar regimes, salvar seu pais em atos
heroicos. Em poucas palavras, como no velho teatro grego de onde deriva o
termo, realizar no outro e pelo outro aquilo que em seu ser latejava
como necessidade, e o que é fundamental, abdicando de fazê-lo. Eis a
catarse.
É por isso
que, enquanto Gramsci via positivamente a catarse como passagem do
momento econômico corporativo ao ético-politico, Brecht declara guerra à
catarse em seu teatro. Ambos vêem facetas diversas do fenômeno. O sardo
foca a necessidade de superar o egoísmo que isola os membros da classe
trabalhadora pela necessária identidade de classe que liga cada um de
nós na meta política da transformação revolucionária; enquanto o alemão
chama atenção para o mecanismo pelo qual através da arte (e diríamos nós
pela comunicação de massas) rouba a revolta de cada um impedindo a ação
que resultaria nesta identidade de classe esperada.
Nesta
segunda acepção, a catarse é um ato violento de expropriação da revolta,
da angustia, da raiva que produz o apassivamento. Para que isso seja
possível a pessoa precisa se tornar espectador e a violência espetáculo.
E não se
iludam: isso acontece até mesmo em nossos espelhos tão queridos. Nas
“redes sociais” em que filtramos os amigos para que nossas ideias
pareçam ter eco em muitos outros que pensam o mesmo. Aí vai mais um post para
que você se indigne, ou se emocione, ou ria, ou se revolte. E se
gostou, curta e compartilhe nesta incrível relação entre seres humanos
que se apresenta na forma fantasmagórica de uma relação entre smartphones.
Há um certo
tempo ouvi uma propagando no rádio (uma espécie de rede social precária
que os antigos frequentavam) na qual se anunciava um site que tinha o
significativo título de “faça alguma coisa.com”. O locutor dizia: “se você está indignado, acredita que nem tudo está como devia, clique em nosso site – http://www.facaalgumacoisa.com –, e você já estará fazendo alguma coisa”.
Infelizmente, para a ordem, nem todos estão assistindo o espetáculo da violência. Alguns de nós estão vivendo a violência. São Mães
que perderam seus filhos para a Polícia Militar assassina, são
trabalhadores que adoecem sugados pela sanha do capital em extrair mais
valia, são jovens jogados no chão sentindo a bota do carrasco sobre suas
cabeças, são professores tomando porrada da policia, são famílias vendo
suas casas derrubadas para dar lugar a horripilantes prédios de aço e
vidro ou vias por onde correm carros sem alma.
As vezes,
quando moradores da favela estão sendo atacados, estudantes de uma
universidade pública – a UERJ – levantam os olhos de seus celulares e
atravessam a rua e compartilham a raiva, a sagrada raiva da revolta. O
imbecil do reitor (ou feitor?) afirmou depois de chamar a policia e
jogar jatos d’água na moçada que “com a barbárie não há dialogo”. Sou
obrigado a concordar com ele, apenas o espantaria o fato que o
personagem que lhe cabe nesta trama é o da barbárie.
Comentando a nona tese de Walter Benjamin, na qual o autor se refere ao quadro Ângelus Novus de Paul Klee, Žižek afirma que:
“E
se a violência divina fosse a intervenção selvagem desse anjo? Ao ver o
amontoado de escombros que cresce em direção ao céu, esses destroços da
injustiça, o anjo contra-ataca de vez em quando para restabelecer o
equilíbrio, vingando-se do impacto devastador do “progresso”. Não
poderia a história da humanidade ser vista como uma normalização
crescente da injustiça, trazendo consigo o sofrimento de milhões se
seres humanos sem nome e sem rosto? Em que lugar na esfera do “divino”,
talvez estas injustiças não tenham sido esquecidas. Acumulam-se, os
erros são registrados, a tensão aumenta e torna-se insuportável, até o
momento em que a violência divina explode numa cólera de retaliação
devastadora.” (Violência, São Paulo: Boitempo, 142)
O discurso
ideológico sobre a violência, sua espetacularização, que é outra forma
de referir-se à sua mercantilização, cumpre, então, uma função além de
sua distorção ou negação. A violência é simultaneamente louvada e
negada, mas a função última é negar a possibilidade da violência
revolucionária pela vivência catártica da violência vazia de substância.
Oferecer uma violência ao consumo passivo, para que não seja possível o
ato prático de negação violenta da ordem.
Agora, nesta
cidade, homens e mulheres estão caminhando para o matadouro do trabalho
subsumido ao capital, casas estão sendo derrubadas, um jovem negro está
caído pedido por sua vida quando a bala procura sua cabeça, um corpo
ensanguentado pela tortura foi jogado numa cela, um coração se partiu de
tristeza, uma palavra sufocou de silêncio seu portador…
Nada de triste existe que não se esqueça
alguém insiste e fala ao coração
tudo de triste existe e não se esquece
alguém insiste e fere no coração
nada de novo existe nesse planeta…
alguém insiste e fala ao coração
tudo de triste existe e não se esquece
alguém insiste e fere no coração
nada de novo existe nesse planeta…
As pessoas
estão capturadas pela tela azulada na qual se vive a vida de que elas
abriram mão. Pelas ruas, em qualquer canto, nucas tortas carregam os que
já foram pessoas e pequenos dispositivos sugam os olhos por onde se
esvai a alma até onde se escondem impulsos e fluxos que substituem a
relação entre os seres humanos… Quem sabe se levantarmos os olhos?
em volta dessa mesa velhos e moços
lembrando o que já foi
em volta dessa mesa existem outras falando tão igual
em volta dessas mesas existe a rua
vivendo seu normal
em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais
em volta da cidade…*
lembrando o que já foi
em volta dessa mesa existem outras falando tão igual
em volta dessas mesas existe a rua
vivendo seu normal
em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais
em volta da cidade…*
Um anjo abre suas enormes asas negras sobre o caos, mas ninguém o vê. Anjos não tiram selfies.
* Esse eu
não vou dizer de quem é! Quem não souber que musica é esta… procure no
Google, ou pergunte para um amigo… se ainda tiver algum de verdade.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB.
FONTE: Blog da Boitempo
ResponderExcluir“Em poucas palavras, como no velho teatro grego de onde deriva o termo, realizar no outro e pelo outro aquilo que em seu ser latejava como necessidade, e o que é fundamental, abdicando de fazê-lo. Eis a catarse”.
Excelente artigo. Esse lugar de expectadores “passivos” em muitos momentos se contrapõe em expectadores raivosos, cheios de ódio, narcísicos, impossibilitados de empatia. As redes sociais possibilitam que cada um seja também um ator, representando um papel, que na maioria das vezes é um “feique”, um fotografar a si próprio em um gozo narcísico. “Vende-se” a própria imagem e a vida privada. Os sentimentos e conflitos mais profundos são expostos sem nenhuma privacidade. “A rede cura”. Como é possível ter mais de 800 amigos em uma rede social é um enigma; e 1, 2, 3, 4, 5 mil? Essas são as relações coisificadas, sem empatia ou compaixão. O ego é o centro. A alienação se reflete, quando a imprensa se torna uma imprensa de fofoca e não algo educativo. O exemplo disso é que enquanto o povo Saharaui, exilado em seu próprio país, o Marrocos, na região do Saara Ocidental e sobrevive quase que exclusivamente do auxílio de ONGs, os refugiados do Nepal lutam para sobreviver, a única notícia que teve ênfase nas redes sociais foi do acidente envolvendo apresentadores da Globo, enquanto milhares de jovens estão sendo assassinados no mundo, “assistimos o espetáculo da violência como um produto, por onde cada um poder sentir-se representado em seu viés perverso. Mas a vida no seu dia a dia é cruel para milhares e jovens, mães, pais. Há um desencontro subjetivo nos jovens. Eles sentem-se sem conhecimento, dizem não saber pensar, não saber encontrar um caminho, ou formar um juízo de valor.