Por Marcelo Badaró Mattos
Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
Para um professor que como eu, já está trabalhando em instituições federais de ensino há quase trinta anos, as greves por certo não são novidades. Da mesma forma, tenho dificuldades em encontrar argumentos novos entre aqueles que se manifestam contrariamente ao uso desse instrumento. Percebo que novas gerações de estudantes (e também de docentes e servidores) muitas vezes reproduzem, legitimamente, dúvidas e ponderações que apareceram em momentos passados. São argumentos válidos, que merecem um debate que se enriquece quando experiências passadas são resgatadas. Há, entretanto, também, muitos que conhecem essas experiências e recorrem aos mesmos argumentos contrários às greves que utilizaram em outras ocasiões, mesmo tendo sido refutados, por outros argumentos e pela própria realidade histórica, mas fingem desconhecer essas refutações para continuar tentando deslegitimar as organizações coletivas e formas de luta dos profissionais de educação e estudantes.
Por isso, mesmo correndo o risco de também ser repetitivo em relação a argumentos que já usei em outros momentos de greve, acredito ser importante comentar e contra-argumentar a respeito de algumas dessas questões recorrentes. Afinal, entre outros resultados possíveis de uma greve, especialmente na área de educação, está a dimensão pedagógica do compartilhamento de conhecimentos e experiências, o que só pode fortalecer a capacidade de entendimento e intervenção no mundo, que aspiramos seja objetivo fundamental de toda instituição educativa. Vamos então às questões.
A greve não é o único/melhor instrumento de luta. A greve no serviço público/na educação não é eficaz. Devemos recorrer a outras formas de luta? Devemos ir para as ruas. A greve esvazia a universidade…
Sem dúvida, a greve não é o único instrumento de luta de trabalhadores. Ela é sempre utilizada quando outras tentativas de defesa dos seus interesses fracassam em conquistar resultados em torno de demandas coletivas. No entanto, a greve é um direito fundamental dos trabalhadores, que serão sempre a parte mais fraca numa relação com seus patrões, no setor privado ou no público, e tem nesse instrumento uma forma de tentar equilibrar, mesmo que momentaneamente, o jogo desigual que caracteriza a exploração do trabalho assalariado.
No serviço público, e especialmente na área da educação, a greve não tem o mesmo objetivo de causar prejuízo econômico, e com isso pressionar os patrões, que possui no setor privado. Ela existe como estratégia de ampliação do poder de pressão, através da mobilização coletiva, para que demandas fundamentais, salariais, de condições de trabalho e de defesa da educação pública, ganhem maior audiência e criem constrangimentos que obriguem os governos a negociarem.
Por isso mesmo, não há oposição entre greves e outras formas de luta. Pelo contrário, aqueles que defendem de forma consequente a necessidade de ocupar as ruas sabem que só com grande quantidade de pessoas é possível obter êxito em uma manifestação desse tipo. Mas, como colocar milhares de educadores e estudantes nas ruas se eles estão nas salas de aula? Para muitos o fundamental é garantir maior repercussão nos meios de comunicação de massa. Sabemos que a mídia é fundamentalmente composta por grandes oligopólios empresariais, cujos interesses estão distantes de convergir para a defesa da educação pública e dos trabalhadores. Por mais insistência que tenhamos em buscar esses canais em tempos de funcionamento normal das instituições o resultado é quase nulo. Com as greves, a coisa muda de figura. Em nossa última paralisação de 24h, por exemplo, todas as grandes redes de televisão fizeram matérias sobre a situação das universidades e a paralisação, da mesma forma que os principais jornais impressos e sites de notícias. Em greves anteriores, a cobertura da mídia – mesmo que muitas vezes deturpando nossas reivindicações – foi sempre muito mais ampla que em momentos de atividades normais.
Uma greve pode sim esvaziar a universidade. Mas, não precisa ser assim. E muitas vezes não é assim. Os três segmentos da comunidade universitária (docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes) programam muitas atividades de mobilização nos espaços universitários – debates, rodas de conversa, exibição de filmes, atos, acampamentos, etc. – e aproveitam o momento da greve para discutir das questões mais específicas das universidades às mais gerais do país e do mundo, com um olhar pedagogicamente crítico, que deveria nortear todo o nosso cotidiano nas instituições, mas que sabemos nem sempre é a tônica no dia a dia da atividade universitária.
Quanto à eficácia do instrumento, para quem conhece a história das greves universitárias e de seus resultados desde o fim dos anos 1970, o argumento de que para nada servem é insustentável. Todas as conquistas salariais e referentes à carreira docente foram decorrentes de greves nas instituições de ensino. Além disso, tais greves conquistaram muitas vezes avanços significativos para a vida universitária em geral e, em outros momentos, foram barreiras interpostas às propostas governamentais danosas à universidade pública, que não foram aplicadas ou o foram limitadamente graças à força das greves. Um quadro muito sintético das greves nas instituições federais de ensino pode ser encontrado nesse link.
No entanto, vale lembrar, que muitos dos que argumentam que as instituições se esvaziam nas greves e que era preciso ir para as ruas, em certos casos são docentes há mais tempo que eu e nunca os vi em atividades de mobilização no interior das universidades, antes ou durante as greves, e nunca os encontrei em nenhuma manifestação de rua em defesa da educação/das universidades públicas. Outros, não só participaram como até organizaram atividades desse tipo há muitos anos, quando eram estudantes e docentes mais jovens, mas hoje as condenam: eles não mudaram de opinião, mudaram de lado.
As greves na universidade só param a graduação e prejudicam os estudantes de graduação…
Não é verdade que as greves só param as aulas de graduação. Atividades de pesquisa e extensão também são paralisadas pelos que participam das greves. Quando ingressei na universidade essa questão sequer era levantada, porque não se fazia diferença, quando uma greve começava, entre aulas na graduação e na pós-graduação. Nas últimas duas décadas e meia, cresceu muito a pressão sobre as pós-graduações para apresentarem indicadores quantitativos de produtividade que são a base central de avaliações feitas pela CAPES e que podem representar mais ou menos recursos financeiros, bolsas de estudo e prestígio acadêmico. De lá para cá, cresceu também o número de argumentos contrários à suspensão das atividades de pós-graduação em função dessa pressão da CAPES.
No entanto, muitos docentes e programas inteiros continuam a paralisar suas aulas na pós-graduação, buscando contornar sempre que possível a pressão das agências de fomento/avaliação, pois percebem que tal pressão não tem como contrapartida a garantia dos recursos e condições de trabalho adequados ao funcionamento dos programas com qualidade. Os comandos locais de greve também são cientes de que algumas bancas e atividades são agendadas com muita antecedência, significam despesas com passagens e diárias já realizadas e autorizam excepcionalmente tais atividades. Os que continuam trabalhando regularmente na pós-graduação durante as greves, portanto, o fazem por decisão própria de furar uma greve, utilizando os argumentos da especificidade das pós como biombos para suas atitudes, e depois, ironicamente, acusam as greves de só paralisar a graduação. Muitas vezes, os que dizem isso, são os mesmos professores que no dia a dia dos cursos, menosprezam as aulas na graduação e justificam que sua “excelência” os deveria liberar de tal “fardo” para dedicação integral à pesquisa e pós-graduação.
Por outro lado, cabe sempre a pergunta: o que realmente prejudica o estudante – de graduação ou pós – uma greve que pode se estender por algumas semanas, defendendo a universidade pública, ou a falta de condições adequadas de estudo e permanência na Universidade?
Numa greve como a que se iniciará em 28 de maio de 2015, cujo motivo maior, além da defasagem salarial dos docentes (motivo justo e digno, diga-se de passagem, pois todo trabalhador assalariado tem direito à proteção mínima de seus vencimentos face à inflação) é o conjunto de medidas destrutivas à universidade pública, não há dúvidas da justeza do movimento para grande parte dos estudantes. Afinal, faltam professores em muitos cursos, há outros em que obras estruturais necessárias à construção de salas de aulas, bibliotecas e laboratórios não foram executadas ou pararam pelo meio, há falta de bandejões e alojamentos estudantis, as bolsas são insuficientes e estão atrasando, entre muitas outras situações. Todas motivadas por uma expansão de vagas discentes que não foi acompanhada do necessário crescimento do número de docentes e do aporte de recursos para infra-estrutura, manutenção e assistência estudantil. O que tem sido muito agravado nos últimos meses pelas políticas de “ajuste fiscal” do governo federal, que repassará R$15 bilhões de reais ao setor privado através do FIES (financiamento estudantil), mas corta R$ 9,43 bilhões do orçamento do Ministério da Educação.
Por isso os estudantes da UFF e de outras universidades fizeram suas assembleias e deliberaram pela greve. Porque sabem que essa luta também é sua.
Curioso que os que argumentam que a greve prejudica os estudantes, desconsideram completamente a posição coletiva dos próprios estudantes. O que é bem ilustrativo de como enxergam sua atividade docente e seus estudantes: são os portadores do conhecimento e da verdade, que buscam iluminar os pobres e ignorantes estudantes, que sequer percebem que estão sendo prejudicados com a greve.
Há motivos para a mobilização ou até mesmo a greve, mas esse não é o melhor momento…
Calendários diferenciados, momentos distintos dos semestres letivos, incertezas sobre os processos de negociação, são argumentos utilizados para questionar a oportunidade da greve, mesmo que utilizados por vozes que não questionam a legitimidade do instrumento de luta. Nesse caso, cabe lembrar que desde o final do ano de 2014 o governo está implementando as políticas de cortes de verbas e as propostas de retirada de direitos dos trabalhadores (vide as Medidas Provisórias que dificultam o acesso ao seguro desemprego e abono salarial, assim como restringem pensões, bem como o projeto de lei que libera as terceirizações, entre outras medidas). Nos últimos dias, com o anúncio de novos cortes e o avanço das medidas no congresso nacional, a situação só tem piorado.
No que diz respeito aos servidores públicos federais e aos docentes das instituições federais de ensino, paralisações e movimentos, em Brasília e nos estados, pressionaram o governo a receber as entidades em reuniões, mas nenhuma resposta concreta às pautas foi apresentada. Sabemos que tanto as demandas por carreira/salário, quanto aquelas referentes a mais verbas para as instituições (de forma a garantir as condições de trabalho/estudo) dependem de rubricas orçamentárias. A Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2016 tem que ser apreciada pelo congresso até agosto. Caso não tenhamos nossas reivindicações atendidas até lá, teremos que nos resignar a reajuste zero no próximo ano e ao aprofundamento do caos na vida universitária. Por isso o momento da greve é este. Ela acontece quando as condições para sua construção caminham mais rapidamente e a necessidade de uma intervenção coletiva que garanta a negociação com o governo já se faz mais que urgente.
O ANDES-Sindicato Nacional e as suas Seções Sindicais não são representativos. As Assembleias Gerais que decidem as greves não são representativas/legítimas. Seu funcionamento e suas decisões não são democráticas…
O ANDES-SN é o resultado de mais de três décadas de organização e lutas docentes. Como toda entidade sindical possui limites e problemas. Mas, está organizado pela base, através de suas seções sindicais em praticamente todas as instituições públicas de ensino superior. Sua direção nacional é eleita diretamente pelos associados, através das seções sindicais, e possui secretarias regionais espalhadas por todo o território nacional, de forma a dar conta da diversidade de situações no país. As taxas de sindicalização nas seções sindicais são elevadas, muito superiores à média do país. Na ADUFF-SSind, por exemplo, tínhamos 2.561 docentes associados em 2014, sendo 1381 ativos (cerca de 46% do total de docentes da instituição) e os demais aposentados.
No sindicato exercita-se a democracia em suas diferentes possibilidades. A diretoria nacional e as diretorias das seções sindicais são escolhidas diretamente pelo voto dos associados. As instâncias nacionais de deliberação da categoria (as diretorias são apenas executivas) – Conselhos de Seções Sindicais e Congresso, ordinariamente anuais – são constituídas por delegados eleitos em suas bases, através das assembleias gerais. E nas Assembleias Gerais, prevalece a democracia direta, com base nas discussões e votações dos participantes.
Na UFF, as assembleias gerais são abertas a todo o corpo docente, independentemente de filiação ou não ao sindicato, porque entendemos que a luta coletiva se faz por e em nome de todos, portanto todos tem direito a voz e voto nesses espaços. O acúmulo de experiências históricas nos leva a conceber que esse é o espaço deliberativo mais democrático para decisões como a construção de uma greve. Porque ali os participantes trocam informações, análises e avaliações e – convergindo ou divergindo – votam esclarecidos por esse debate e constroem coletivamente suas deliberações. Esse sentido coletivo da democracia direta em uma entidade de trabalhadores é fundamental e não pode ser substituído por consultas plebiscitarias, em que indivíduos votam isoladamente, a partir de convicções construídas por diversos caminhos, mas sem participarem ativamente de uma discussão coletiva.
Da mesma forma, incentivamos e participamos de todo tipo de reunião de docentes em âmbito departamental, de cursos ou unidades. Todo fórum convocado para discutir os problemas docentes e da universidade é importante para o avanço do conhecimento coletivo da situação e mobilização dos docentes. No entanto, esses fóruns não são espaços deliberativos da vida sindical, porque não se organizam para tanto e, especialmente, porque no caso das instâncias institucionais – departamentos, colegiados, etc. – estão sujeitos a lógicas de funcionamento e hierarquia funcional de ordem distinta da lógica sindical, que deve ser autônoma em relação a todos os níveis da gestão institucional, garantindo que as deliberações docentes possam estar livres de qualquer pressão de chefias imediatas ou gestões superiores das instituições.
As direções dos sindicatos são “vanguardas iluminadas”, “radicais”, “pseudo-revolucionários” que decretam greves de cima para baixo…
Seriam argumentos cômicos, não fosse trágico escuta-los de professores universitários. Trágico porque cada vez que um docente toma emprestado esse tipo de argumento da pena dos articulistas da extrema-direita reacionária dos panfletos mais abjetos da imprensa empresarial (como os colunistas da revista Veja), assume conscientemente o papel de arauto dessa ideologia reacionária, que procura associar todo tipo de movimento social/sindical e suas lideranças a uma nova “ameaça comunista”, no estilo típico da Guerra Fria. Em tempos de manifestações reacionárias como as ocorridas em março e abril, de debates no Congresso Nacional sobre um projeto de lei que visa estabelecer “crime de doutrinação ideológica” para punir professores que estimulem o pensamento crítico e o debate de ideias entre seus alunos, tais argumentos são lamentáveis ecos internos de um reacionarismo crescentemente, incentivado pelas forças políticas e sociais mais conservadoras no país e seus diligentes prepostos na “grande” imprensa.
Os dirigentes sindicais do movimento docente exercem seus cargos sem qualquer vantagem pessoal, na maioria das vezes sem dispensa da atividade acadêmica regular e por períodos de tempo limitados (em nosso estatuto nacional e no regimento local, ninguém pode permanecer por mais de dois mandatos seguidos nas diretorias). Expressam diferentes posições políticas e ideológicas, e participam dessas atividades movidos principalmente pela convicção de que o instrumento sindicato é fundamental para qualquer trabalhador, aí incluído o docente.
De qualquer forma, podem acertar ou errar, podem manifestar posições políticas as mais distintas, mas nunca o fazem sozinhos, porque procuram agir como representantes de coletivos maiores e discutem suas posições pessoais e/ou coletivas em espaços democráticos de deliberação. Assim, na UFF, por exemplo, a última assembleia geral dos docentes, que aprovou a deflagração da greve, contou com a participação de 281 professores, que assinaram a lista de presença. No momento da votação, 155 votaram favoravelmente à proposta, 46 contrários e uma abstenção. Outras assembleias, com mais de uma centena de presentes, aconteceram nas semanas anteriores, levantando os problemas e discutindo os encaminhamentos que antecederam a deliberação sobre a greve. Muitas acontecerão durante a greve. Como eu disse, todas são abertas à participação, voz e voto de todo e qualquer docente. Quando alguém se recusa a participar de um espaço tão aberto quanto esse e depois questiona a legitimidade do espaço ou procura detratar as organizações, militantes e dirigentes, devemos desconfiar um pouco mais da crítica.
Em síntese
Nenhuma forma de luta é perfeita e nenhum processo democrático pode ser considerado acabado numa sociedade regida por uma lógica que é estranha e contrária aos interesses da maioria trabalhadora da população. Por isso, todo o esforço coletivo para debater e aperfeiçoar nossas formas de organização e nossos métodos de luta deve ser saudado como sinal de vitalidade do movimento.
No entanto, muitas das críticas à greve e ao sindicato têm raiz em outro tipo de preocupação e concepção. Há ainda quem na universidade resista a compreender-se como trabalhador e por isso rejeite toda e qualquer forma de organização e luta coletiva associada aos trabalhadores. São aqueles que consideram que seu trabalho intelectual os eleva acima dos terreno comum dos mortais e, consciente ou inconscientemente, acabam por aderir aos argumentos e instrumentos dos que buscam deslegitimar ou mesmo desmontar as organizações e lutas dos trabalhadores. Há também os que, por adesão a um determinado projeto político levantam argumentos falaciosos contra os movimentos dos docentes, porque colocam a defesa de seu projeto/governo acima da defesa da universidade pública. Não podemos deixar de reconhecer que esse projeto tem tentado, ao longo da última década, fragmentar e enfraquecer as organizações representativas do movimento docente. Basta lembrar o apoio governamental à criação da entidade Proifes, que antes mesmo de ser formalizada já era chamada a sentar-se às mesas dos gabinetes ministeriais. As greves são uma ameaça a entidades fantoche desse tipo, porque como elas não possuem representatividade de base real, em momentos como esse sua fachada de legitimidade desmorona. Basta lembrar de 2012, quando os docentes foram à greve em praticamente todas as instituições (houve uma exceção) em que o movimento docente supostamente seria dirigido por essa entidade, que se contrapunha ao movimento, e reconheceram o ANDES-SN como seu efetivo representante naquele momento.
Cada greve é um processo único de aprendizado. Podemos conseguir mais ou menos conquistas com elas, mas em um momento como este que hoje vivemos na universidade é fundamental construirmos uma resposta coletiva às políticas destrutivas que estão em curso. A greve se apresenta como oportuna e necessária, justamente porque a situação é muito adversa. Os resultados da mobilização dependerão, em grande medida, de nossa força coletiva. De qualquer forma, teremos com certeza muito a aprender com ela.
FONTE: Capitalismo em desencanto
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