quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Com a palavra, Anita Leocadia Prestes: "- Não sou como falam por aí. Isso é coisa da mídia"

"Eu preferia ser desconhecida e ter a minha mãe viva."

Entrevista de Anita Prestes à "Zero Hora" de Porto Alegre


Filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benario 
"Para mim, Olga era uma mãe teórica", destaca Anita Prestes

Juliana Bublitz | Zero Hora, 5 de janeiro de 2014 (p. 20-22)

O apartamento de classe média no bairro Botafogo, em uma rua movimentada da zona sul do Rio, diz muito a respeito de Anita Leocadia Prestes.

Sobre móveis de madeira antigos e bem conservados, flores dividem espaço com retratos do pai e objetos da vida no exílio, como um conjunto de porta-copos da ex-União Soviética. Nas paredes brancas da sala, a imagem paterna - motivo de devoção - também estampa quadros e telas.

Mas o que mais chama a atenção é uma pintura a óleo assinada por Cândido Portinari. As pinceladas do célebre artista revelam as feições da mãe que Anita mal conheceu, cuja trajetória virou tema de filme e emocionou mais de 3 milhões de espectadores.

Aos 77 anos, Anita é um pedaço vivo da história recente do Brasil. Nasceu na prisão nazista feminina de Barnimstrasse, em uma Berlim conturbada. É a única filha de um casal de comunistas que marcou época: o gaúcho Luiz Carlos Prestes , morto em 1990 e conhecido por ter comandado a famosa Coluna Prestes , e a alemã de origem judaica Olga Benario, personagem-chave da tentativa fracassada de derrubar Getúlio Vargasdo poder, no Brasil de 1935. 

Ambos foram capturados pela polícia política de Vargas. Prestes ficou preso por nove anos. Grávida, Olga foi entregue a Hitler, deu à luz na prisão e acabou assassinada em uma câmara de gás em 1942. Anita só foi salva graças a uma campanha internacional liderada pela avó paterna, Leocadia Prestes, "uma gaúcha muito brava de Porto Alegre", nas palavras da neta.

O passado trágico deu a Anita, professora de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o estigma de mulher amargurada. Ela vive só, nunca se casou e não teve filhos. Dedica a vida a defender as ideias de Prestes. Tem fama de receber mal a imprensa e de reagir como uma leoa a questionamentos sobre a conduta do líder comunista. Nada disso é verdade.

Na tarde de 26 de novembro, a historiadora recebeu Zero Hora em casa, com café passado e bolachinhas doces. Bem-humorada, de batom vermelho, posou para fotos e gravou vídeos. Não deixou pergunta sem resposta, nem as mais delicadas, sobre o lado obscuro da Coluna e os fuzilamentos ordenados pelo pai. 

- Não sou como falam por aí. Isso é coisa da mídia - diz.

Autora de 11 livros, Anita planeja estar em Porto Alegre em 2014 para a inauguração doMemorial Luiz Carlos Prestes , às margens do Guaíba. Não gosta de homenagens, mas tem uma obsessão: quer levar o legado do pai às novas gerações. E vai se dedicar a isso até o fim.

Projeto foi criado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em 1998


A senhora está acompanhando a construção do memorial Luiz Carlos Prestes em Porto Alegre?

Sim. A ideia partiu de um comunista gaúcho, o engenheiro agrônomo Dulphe Pinheiro Machado, já falecido. Foi em 1990, logo depois que meu pai morreu. O arquiteto Oscar Niemeyer aceitou fazer o projeto e, em 1998, a prefeitura cedeu o terreno. Foi lançada a pedra fundamental, mas não havia recursos para a obra. Isso só foi possível quando a Federação Gaúcha de Futebol se interessou pela área e fez uma proposta ao Polo Comunista Luiz Carlos Prestes, que está à frente da iniciativa. Metade do terreno foi cedido à entidade. Em troca, ela está construindo o memorial, que está em fase final. Está ficando muito bonito.

Prestes aprovaria?

Acho que ele não gostaria muito. Não era muito chegado a homenagens. Mas o memorial está sendo feito por pessoas realmente preocupadas em resgatar e preservar o legado revolucionário dele.


O que os visitantes encontrarão lá?

Ainda não está bem definido, mas eu cedi uma coleção de 150 fotos para o bisneto de Niemeyer, que está tocando o projeto. A ideia é fazer uma parede em caracol, em um amplo espaço no interior do prédio, onde será apresentada a vida de Prestes.

O que Prestes costumava lhe contar do período em que viveu no RS?

Ele viveu no Estado até os seis anos, foi para o Rio e voltou depois do levante de 1922 (que ficou conhecido como a revolta dos 18 do Forte de Copacabana, contra o governo de Arthur Bernardes). Como castigo por ter participado do movimento tenentista, foi mandado a Santo Ângelo. Ele falava bastante desse período. Viveu lá por dois anos e atuou como engenheiro militar. Quando se demitiu do Exército, foi trabalhar numa firma de engenharia civil e, um mês antes de começar a Coluna, montou o sistema de luz elétrica da cidade. Dizem que ele também construiu uma ponte ferroviária na região.

Nas redes sociais, a escolha dele como homenageado despertou polêmica. Isso surpreende?

É normal. O anticomunismo ainda é uma realidade. E, mais forte ainda, é o antiprestismo. As classes dominantes e muita gente desinformada não perdoam Prestes por ter se recusado a liderar o golpe de 1930 (movimento armado que pôs fim à República Velha e levou Getúlio Vargas ao poder). Ele era a principal liderança da época, e as oligarquias dissidentes, que lideraram o golpe, esperavam que ele participasse do novo esquema de poder. Quando decidiu virar comunista e se colocar ao lado dos trabalhadores, foi um gesto imperdoável. A partir daí ele sempre foi boicotado, perseguido e caluniado.


A senhora chegou a se formar em Química e, anos mais tarde, decidiu se tornar historiadora. Foi para defender o legado do seu pai?

Teve a ver com meu pai, mas não foi só isso. Eu nunca tive uma vocação definida. Gostava de várias coisas. Primeiro, acabei me entusiasmando com a Química Industrial. A Petrobras tinha inaugurado uma fábrica de borracha no Rio. Mas eu me formei em 1964, em pleno golpe militar. Não consegui trabalhar em lugar nenhum. Depois me exilei em Moscou, onde fiz uma tese de doutorado em Economia. Só quando voltei, em 1979, é que decidi estudar história. 

Luiz Carlos Prestes e a filha Anita Leocádia Prestes na defesa da tese dela, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1989.


Mas todo o seu trabalho como historiadora é sobre Prestes, não?

Sim, sobre Prestes e o PCB. Meu pai já estava com mais de 80 anos e não queria escrever sobre a sua história, mas eu tinha essa preocupação. Pensava que era lamentável perder a memória dele, principalmente no que diz respeito à Coluna Prestes. Ele se lembrava de tudo em detalhes. No fim, gostou da ideia. 

É possível manter o distanciamento necessário para escrever de forma crítica sobre seu pai? 

Eu acho que sim. Quando defendi a tese, a banca examinadora reconheceu isso. Sempre fui criada com espírito crítico. 

Nos confins do Brasil: o comando militar da Coluna Prestes (Luiz Carlos Prestes é o terceiro da direita para a esquerda, sentado), reunido em Porto Nacional, localizado no Tocantins.

Em um de seus livros, a senhora classifica a Coluna como uma "epopeia brasileira" e retrata Prestes como o "Cavaleiro da Esperança", mas hoje em dia os historiadores têm horror a heróis. A senhora recebe muitas críticas? 

Na academia, ninguém critica ninguém, até para não ser criticado. Mas eu não falo no meu pai como herói. Falo como liderança. Não existe nenhum movimento de massa no mundo que não tenha liderança. Se não tem, acaba se perdendo. É o caso das manifestações que tomaram as ruas em junho, que não tinham líderes e não se sabia para onde iam. 

Nos anos 90, a jornalista Eliane Brum refez o caminho da Coluna Prestes e deparou com relatos de saques, torturas e estupros. Essa outra versão da história a incomoda?

Não é que incomode. É uma versão deturpada, que pega alguns fatos isolados e mostra isso como se fosse característico da Coluna, e não foi. Episódios de violência exagerada foram punidos com muito rigor. 

Mas a jornalista levantou dezenas de relatos. Eles são falsos?

Há muita mentira. As pessoas inventam muito.

Por que a senhora diz isso?

A marcha tinha de fazer requisições para sobreviver. Às vezes se usava de violência, sem dúvida. As pessoas não gostavam. Ninguém gostava de entregar seus cavalos, seus estoques de alimentos, embora Prestes assinasse vales dizendo que todos seriam indenizados se a revolução prosperasse. A questão é que o governo dizia se tratar de um bando como o de Lampião. Então muita gente fugia e tinha medo. Mas, na volta, a Coluna era recebida com festa, porque fazia justiça: queimava as listas de cobrança de impostos, libertava os presos. 

Prestes assinou penas de morte?

Sim, principalmente no início, no Rio Grande do Sul. Ele achava que guerra era guerra. Manter a disciplina de uma tropa não era fácil, tanto que nas cidades pelas quais passavam, no interior do país, a primeira coisa que ele mandava fazer era destruir toda a bebida alcoólica. Quem iria controlar 1,5 mil homens loucos para beber? Até remédios com álcool ele mandava liquidar. Era uma medida permanente. Mesmo assim, o comando nunca pode ter o controle total.

A Coluna percorreu 25 mil quilômetros, nunca foi derrotada e poderia ter prosseguido. Prestes nunca se arrependeu de não ter tentado tomar o poder? 

No início existia o sonho de marchar sobre o Rio de Janeiro. Mas depois não houve condições, porque não havia armas. Não tinha como tomar o poder. O exílio na Bolívia foi a solução possível, porque eles não se entregariam jamais.


A senhora assistiu ao filme Olga?

Claro, duas ou três vezes. Mas não é o filme que eu gostaria.

Por quê?

O papel do meu pai ficou muito fraco e os acontecimentos de 1935 ficaram confusos (quando houve no Brasil várias revoltas antifascistas que acabaram fracassando). Parece um bando de gente louca. O próprio diretor declarou que não estava interessado em história, em política nem na figura de Prestes. O que ele queria era contar um caso de amor, e foi o que ele fez. Desempenha um papel importante de divulgação da história que estava esquecida, provocando muita simpatia. Até hoje, quando vou ao aeroporto, aqueles moços que trabalham no check-in ficam entusiasmados quando descobrem que sou a filha da Olga.

Como o fato de ter nascido em uma prisão nazista marcou a sua vida?

Desde muito cedo, minha avó paterna, Leocadia Prestes, e minha tia, Lygia, nunca me esconderam a história. Elas achavam que era melhor eu saber de tudo desde o início e enfrentar isso com tranquilidade.

E entendia o que era o comunismo?

Explicavam isso numa linguagem simples, para uma criança entender. Diziam que era a luta por um mundo melhor, mais justo, para que não existisse pobreza. Na nossa sala, no México, onde vivi até os nove anos, tinham duas fotos grandes dos meus pais, para eu conhecê-los. Toda noite eu me despedia deles. E as cartas deles eram lidas em casa. Eu estava a par de tudo.

Olga Benario, alemã de origem judaica que morreu na prisão, em 1945, e Anita (à direita), aos oito anos.



O que ficou de lembrança de Olga?

Quando se soube da morte dela, em 1945, não posso dizer que foi um impacto. Claro, eu lamentei. Eu queria conhecê-la. Minha tia Lygia me dizia sempre que, no dia em que a minha mãe voltasse, eu iria viver com ela. Mas fui assimilando a história aos poucos, sem maiores impactos.

A senhora sente raiva pelo que aconteceu?

Raiva não é a palavra. Isso faz parte da luta de classes. É lamentável que a campanha pela libertação dos presos políticos liderada por minha avó não tenha tido força para impedir a extradição de Olga e o seu assassinato. Mas acho que Getúlio Vargas estava no papel dele.

Getúlio Vargas entregou sua mãe aos nazistas e manteve seu pai preso por nove anos. Depois, seu pai se aliou a ele. Foi uma decisão correta?

Eu acho que sim. Aliás, a decisão não foi só dele e não foi uma aliança, apenas apoio a determinada ação política. O PCB também tomou essa decisão. Eu ouvi meu pai dizer várias vezes que, se fosse para fazer vingança pessoal, ele teria saído da prisão e dado um tiro em Getúlio. Mas não se tratava disso. Tratava-se de derrotar o nazifascismo, que na época era o principal inimigo da humanidade.

Foi difícil para ele ter essa decisão?

Não creio. Prestes não personalizava as coisas. Não que Getúlio tivesse ficado bonzinho de uma hora para outra. Ele tinha relações muito próximas com Hitler e Mussolini, mas era um político hábil e percebeu que eles sairiam perdendo. 

Então decidiu declarar guerra aos países do Eixo e mandar os pracinhas para a Itália. Como mudou de lado, não podíamos continuar contra ele. Meu pai tinha a capacidade de separar os interesses pessoais dos políticos, e isso vinha da minha avó, que era uma gaúcha muito brava.


Qual é a sua lembrança mais marcante do exílio?

A nossa chegada ao Brasil, em 1945. Eu e minha tia deixamos o México e fomos recebidas por milhares de pessoas no Aeroporto Santos Dummont, no Rio. Eu ia fazer nove anos.

Foi quando a senhora conheceu seu pai?

Sim. Tem até a foto dele comigo na porta do avião. Foi muito emocionante. Quando o avião posou, o pessoal de bordo disse aos passageiros que esperassem a gente sair primeiro, porque a massa invadiu a pista. Embora o pessoal do PCB tivesse organizado cordões de isolamento, eles se romperam. A gente desceu, e todo mundo queria me agarrar, me beijar e abraçar. Fiquei assustada, porque me separaram da Lygia, que teve de tratar de passaporte, bagagem, essas coisas. Chegou um ponto que me levantaram, lá no meio, para o povo ver.

Chegada de Anita Leocadia Prestes e Lygia Prestes ao Rio, em 28 de outubro de 1945, quando foram recebidas no aeroporto por Luiz Carlos Prestes.



Seu pai era como a senhora esperava?

Nem sei dizer. Eu já me correspondia com ele, mas foi uma emoção tão grande que não dá nem para descrever. Eu me lembro de ele dizer para eu me acalmar, que a minha tia já vinha. A verdade é que o brasileiro é muito emotivo, e naquele momento havia um clima de comoção enorme. Prestes havia saído da prisão depois de nove anos e recém havia chegado a notícia do assassinato da minha mãe. O que eu recebi de presentes foi um negócio impressionante, tanto que a Lygia tratou de dividir com outras crianças. Eram brinquedos, roupas, chocolates. Muito do que sou hoje, agradeço a ela. Minha tia sempre dizia que eu não estava recebendo aquilo tudo por minha causa, mas por causa dos meus pais e da história deles.

Vocês passaram dificuldades no exílio?

Não. Sempre houve muita solidariedade, não só dos comunistas. No México, para onde fui com menos de dois anos, a colônia de estrangeiros de esquerda era muito grande. Na União Soviética, onde nos exilamos em duas ocasiões, entre 1951 e 1957 e entre 1973 e 1978, também.

Como foi viver a adolescência na Rússia?

Fui para lá aos 14 anos, com a minha tia Lygia. Era pesado, não pela parte material, porque tínhamos tudo o que era necessário, mas pelo isolamento, a distância do Brasil. Estranhei muito. Tive de aprender rapidamente o idioma russo para poder ir à escola. E não foi fácil. Quando você tira uma garota dessa idade do seu ambiente, é natural o estranhamento. Estava longe dos amigos, do pai, da família. Não foi fácil a adaptação, mas foi bom porque tive uma boa formação. Fiz toda a escola secundária lá.

A senhora aprendeu rápido a falar russo?

Em um ano eu estava falando. Mas eu tinha professora particular em casa e minha tia sabia russo, porque já tinha morado lá. Chegamos em janeiro a Moscou, e as aulas começavam em setembro. Estudei intensamente nesse período e fui para a escola no dia 1º de setembro. Lembro que cheguei lá e não entendi nada. Mas tiveram muita boa vontade e paciência comigo, e eu fui aprendendo.

A senhora estava lá quando Josef Stalin morreu, em 1953?

Sim. Eu era uma garota de 16 anos. Nós sofremos muito. Os comunistas no mundo inteiro sofreram. Na época, não se sabia do que veio à tona depois (Stalin foi acusado de ordenar milhares de execuções e prisões de opositores políticos na União Soviética da década de 1930, episódio que ficou conhecido como Grande Expurgo). Tentamos chegar perto do local onde ele estava sendo velado no centro de Moscou, mas era impossível. Voltamos para casa. Depois, como éramos familiares do secretário-geral do PCB, fomos convidadas a ir ao velório. A gente foi e viu o caixão.

Anita, que acabara de completar nove anos, acompanha o pai à seção eleitoral para votar, no Colégio Bennet, no Rio, em 2 de dezembro de 1945.



Como foi voltar ao Brasil e descobrir que seu pai havia se casado e tinha outros filhos?

As minhas tias e eu tivemos a maior boa vontade com a dona Maria e as crianças (Maria do Carmo Ribeiro casou-se com Prestes em 1952 e teve sete filhos com ele. A viúva vive no Rio e tem 83 anos). Demos muita assistência a elas, mas a dona Maria sempre teve muita má vontade comigo e com minhas tias. Sempre foi hostil conosco. Ela tinha muita inveja da minha mãe e, por extensão, de mim, por eu ser conhecida. Mas eu fiquei famosa, e isso independeu da minha vontade. Eu preferia ser desconhecida e ter a minha mãe viva.

A tentativa de revolução comunista no Brasil, liderada por Prestes em 1935, foi um equívoco?

Não foi uma revolução comunista, mas um movimento antifascista. Sem dúvida, foi um equívoco. Considerava-se que havia uma situação revolucionária no Brasil, o que não era verdade. Foi um período de mobilização popular, de luta contra o fascismo, de grandes greves. Os comunistas se impressionaram com isso e acharam que tinham condições de tomar o poder. Foi um engano, mas houve luta, e isso é importante.

O fracasso contribuiu para o avanço do anticomunismo?

Talvez, mas o anticomunismo já era uma realidade desde os anos 20. Dizia-se que comunista comia criança assada na brasa. E o que se falava da União Soviética era um horror. Foi uma campanha muito grande de difamação, e as pessoas acreditavam.

Uma militante do PCB foi morta de forma brutal por integrantes do partido em 1936, por ter dedurado companheiros à polícia política de Getúlio Vargas. Prestes teve envolvimento?

Teve. Os dirigentes do PCB tomaram a iniciativa, consultaram o Prestes e ele concordou. Meu pai já tinha experiência da Coluna. Para ele, inimigo tinha de ser justiçado. Claro que foi um erro muito grande, mas ele nunca se arrependeu. Resolveram matar a moça numa fazenda. Estrangularam e enterraram. Anos depois, no dia do julgamento, o advogado de Prestes chegou perto dele e disse que ele estava absolvido por falta de provas. Meu pai então perguntou: E os outros? O advogado respondeu que estavam todos condenados. Então Prestes resolveu fazer um discurso defendendo a União Soviética e acabou condenado também.

Por que Prestes se afastou do PCB?

Houve todo um esforço, a partir de 1976, para mudar a orientação política do partido e ficou claro que a maioria do Comitê Central não queria mudanças. O PCB havia se transformado em um partido acomodado, reformista, dissolvido dentro do MDB. Ficou a reboque dos liberais burgueses, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Prestes queria um partido revolucionário. Chegou um momento que ele disse que não pactuaria mais com aquilo.

E o PC do B?

O PC do B surgiu de uma cisão do PCB em 1962. Usou o pretexto da mudança de nome do partido para poder romper. Nos anos 80, também fez concessões à ditadura e se uniu aos liberais. Tanto quanto o PCB e o MR8, não podia ser considerado de esquerda, na opinião de Prestes. E o pior é que, nos últimos anos, o PC do B resolveu usar a figura dos meus pais na televisão. É um partido que está falsificando a sua própria história.

Foi por isso que a senhora se opôs à proposta do senador Inácio Arruda (PC do B) de anular a decisão que cassou o mandato de senador de seu pai, em 1948?

Não foi propriamente por isso. A questão é que se passaram 65 anos da cassação dos mandatos e nunca ninguém havia se preocupado em devolvê-los. Agora, que os políticos estão desmoralizados resolveram fazer esse gesto. Meu pai, se estivesse vivo, estaria protestando. Foi chocante ver Renan Calheiros elogiando Prestes e essa gente toda usando o nome dele e da Olga para se enfeitar com pena de pavão.

Por que a senhora não aceitou os R$ 100 mil que recebeu da Comissão da Anistia em 2004?

Eu não queria o dinheiro. Houve muitas injustiças. Pessoas que conseguiram reorganizar a vida e que ganham bem recebem milhares de reais. Outras, modestas, que realmente precisam de ajuda, não recebem ou recebem muito pouco. Eu não precisava, porque fiz concurso e virei professora universitária. É dinheiro do povo brasileiro. Eu queria devolver, mas não podia. Então doei para o Instituto do Câncer.

No seu último livro, a senhora destaca a luta de Prestes por um partido capaz de fazer a revolução socialista no Brasil. A senhora acredita nisso?

Sim, mas não tem data para acontecer. Estamos muito atrasados, e a história do Brasil é trágica. Tivemos quatro séculos de escravidão, e os grandes proprietários de terras conseguiram construir um Estado Nacional extremamente poderoso, com um exército forte e reacionário, que esmagou todas as revoltas populares. Se a gente comparar com o México e a Bolívia, as transições, aqui, sempre foram pactuadas entre setores das classes dominantes. Assim foi com a independência, a abolição e com a República. Tem uma frase lapidar do governador de Minas em 1930, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, que diz: Façamos a revolução antes que o povo a faça. A frase reflete bem o comportamento das classes dominantes no Brasil.


Diante do fracasso do socialismo soviético, que modelo a senhora defende? O cubano?

Sou contra modelos. Toda vez que se tentou aplicá-los deu errado. A revolução tem de ser um processo nacional. Em cada lugar, tem de ser de um jeito. Marx imaginava que o socialismo seria vitorioso em um país com capitalismo adiantado. Entretanto, foi se dar na Rússia. Tornou-se possível a partir da genialidade de Lenin (Vladimir Ilitch Lenin, líder comunista que conduziu a revolução russa de 1917), mas com muitos problemas. Construir o socialismo num país com uma base econômica atrasada é difícil. O mesmo vale para Cuba. Foi possível chegar ao socialismo, mas é um socialismo que, em vez de distribuir riqueza, acaba distribuindo pobreza.

A senhora acredita que a sociedade brasileira aceitaria isso?

Não, no momento não existe a menor condição de falar de socialismo imediato no Brasil, sem contar que as mentes das pessoas estão muito envenenadas pela mídia. Mas é importante ter essa perspectiva, e esse é o legado do meu pai. É preciso encontrar caminhos para organizar os setores populares em torno das suas reivindicações. Ninguém se organiza em torno do socialismo, mas em torno de problemas, como aconteceu nas manifestações de junho. Ao mesmo tempo em que as pessoas vão lutando por melhorias na saúde e na educação, o papel dos comunistas é conscientizar e mostrar que nada se resolverá de forma drástica se não for pelo socialismo.

Então a solução para o Brasil, em sua opinião, é o socialismo?

Sim, não só para o Brasil. Mas esse é um processo complexo, que não cai do céu. Acredito que vai chegar o momento em que vai acontecer. Me considero uma intelectual comunista e entendo que meu dever é contribuir para isso. Tenho dado muitas palestras pelo Brasil sobre o legado revolucionário de Prestes e agora estou escrevendo a sua biografia política. Ele precisa ser conhecido pelos jovens.

Existe algum partido capaz de fazer essa revolução?

O PCB até tenta, mas hoje eu não vejo nenhum partido capaz disso.


Os partidos que se declaram comunistas são comunistas apenas no nome?

É muito radical dizer que eles não têm nada de comunistas. O PC do B eu acho que não tem mesmo. Virou um partido de governo, oportunista. Depois da ruptura com o Roberto Freire, a parte do PCB que ficou com o Ivan Pinheiro faz um esforço, mas tem consciência que está longe do ideal.

O que é ser comunista hoje?

Eu diria que é não se conformar com a exploração capitalista e procurar contribuir para a formação de forças sociais e políticas capazes, como dizia Marx, de se tornar os coveiros do sistema capitalista.

Com a queda do muro de Berlim e o triunfo do capitalismo, Francis Fukuyama decretou o "fim da história". Qual é a sua opinião?

Sempre fui contra, mesmo na década de 90, quando parecia que tudo tinha acabado. É uma tese retrógrada, reacionária e que desconhece que o capitalismo é um sistema social que se move por contradições, que tendem a se aprofundar. Há uma necessidade histórica de se substituir esse sistema por outro, o socialista. É inevitável, embora não se possa prever quando vai acontecer.

Para alguns estudiosos, o marxismo e a luta de classes estão ultrapassados. Eles estão errados?

Na universidade, essa postura está muito presente, mas eu sempre combati isso, inclusive junto aos meus alunos. A luta de classes está aí, nas ruas. Dizer que ela não existe é ignorar a realidade. Quanto ao marxismo, com a crise econômica de 2009, até capitalistas importantes disseram que Marx tinha razão. O capitalismo se move por crises cada vez mais graves. Mas ele sempre se reestrutura se não houver forças organizadas capazes de derrubá-lo.

Quando a senhora fala em revolução socialista no Brasil, isso implicaria o uso da força?

Provavelmente. 
Não sou adivinha.

A senhora defende isso?

Não. Nós, os comunistas de um modo geral, nunca defendemos o caminho armado como princípio. Se for possível chegar ao poder pelo caminho pacífico, é muito melhor. O problema é que a prática tem revelado que as classes dominantes resistem. E aí não tem jeito. Tem de apelar para as armas. Mas para isso você tem de ter grandes massas organizadas, conscientes, sabendo o que querem.

É ligada a algum partido político?

Não. Tenho relações cordiais, de amizade, com algumas pessoas do PCB. Deixei o partido em 1979.


O momento atual do país é muito diferente do Brasil da Coluna Prestes?

Sim, embora alguns problemas sejam eternos. Melhorou um pouco a condição dos mais pobres, mas dizer que esse pessoal virou classe média é um pouco demais. Essa melhoria é muito pequena em relação ao aumento dos lucros daqueles 10% da população mais rica. A desigualdade social persiste e se acentua.


Como avalia os 10 anos do PT no poder?

O PT nunca foi revolucionário nem socialista. Pelo contrário, é um partido burguês, vinculado ao grande capital internacionalizado. Nesses 10 anos, conseguiu mascarar isso muito bem, porque aparece como partido dos trabalhadores, com uma liderança operária, mas na verdade retarda o movimento de organização e conscientização dos trabalhadores. Esse é um papel muito negativo. Para os grandes capitalistas, em especial os banqueiros, é uma maravilha.

O que acha do Bolsa Família?

Engana muito. Uma coisa é ter uma política de distribuição de renda por um período curto e ao mesmo tempo investir para que as pessoas possam ter emprego e trabalho para ganhar seu dinheiro. A eternização do Bolsa Família deforma as pessoas. Na medida em que o nível cultural é muito baixo, a população se contenta em matar a fome e vota no Lula e na Dilma. É um papel deseducativo e tira as pessoas da luta. PT, Lula e Dilma contribuem negativamente para a conscientização e a organização populares.

Como analisa o desfecho do mensalão?

Há muito moralismo da classe média, e o processo teve caráter político. Não sei até que ponto houve roubo, mas também não vou dizer que são inocentes. Acredito que têm muitos outros ladrões soltos por aí.

Como vê os partidos de esquerda no Brasil?

Existe muita gente de esquerda, mas partidos está complicado. O PCB é. O PSOL, não sei. O PSTU tem gente de esquerda, mas com uma visão muito incorreta. Imaginam que o país está às vésperas de uma revolução, mas não há condições para isso.

FONTE: Zero Hora


Um comentário:

  1. Uma visão bem esclarecedora.Com muitas fontes,para poder avaliar.Além do mais a própria vivência.Valeu.

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