sexta-feira, 31 de maio de 2013

“Somos do teatro de rua!”

Buraco d’Oráculo completa 15 anos de arte e luta nas ruas

Eduardo Campos Lima
de São Paulo (SP)

Em 2013, o grupo de teatro Buraco d’Oráculo completa 15 anos de atuação nas ruas de São Paulo. Nos espaços da cidade e nos problemas de homens e mulheres urbanos, a trupe – que já nasceu do lado de fora de edifícios teatrais – tem seu eixo central de trabalho e de crítica. 
A história do Buraco d’Oráculo começa em 1998, quando três de seus fundadores participaram de uma oficina de teatro de rua com o ator e diretor João Carlos Andreazza. “Participamos do Núcleo de Teatro de Rua da Oficina Amácio Mazarropi. A partir dessa experiência, o trabalho com teatro de rua tornou-se nosso foco”, lembra o ator e diretor Adailton Alves. 
A definição da rua como espaço de trabalho teve íntima relação com a própria origem dos artistas. “Morávamos em lugares em que não havia nada em matéria de equipamentos públicos culturais”, explica Alves. 
Logo que se formou, o grupo buscou fazer apresentações em bairros da zona leste de São Paulo – algumas das regiões visitadas, situadas nos extremos do bairro do Itaim Paulista, ainda estavam em formação naquela época. 
“Começamos a fazer nossos trabalhos em nosso próprio chão. Talvez não tivéssemos embasamento político, naquela época, para ter uma real percepção do que estávamos fazendo, mas algo nos trazia para cá”, conta outro fundador do grupo, Edson Paulo. 
A instalação definitiva na região de São Miguel Paulista ocorreu em 2002, por meio do contato com militantes das artes que atuavam na região há décadas. Esses ativistas eram remanescentes do Movimento Popular de Arte (MPA), que desde o fim dos anos 1970 estimulou a agitação cultural em espaços do bairro, principalmente na praça Padre Aleixo Monteiro Mafra. 
A primeira ação sistemática do Buraco d’Oráculo na região deu-se por meio do projetoSe Essa Rua Fosse Minha, que reunia sete grupos de teatro de rua. 
“A ideia era criar um corredor cultural nos bairros: cada grupo teria uma programação em uma região e, em um momento seguinte, os grupos circulariam entre elas”, explica Adailton Alves. O projeto teve vida curta, mas foi o estopim para a organização dos grupos de teatro de rua. 
“Somos do teatro de rua!”
Naqueles anos, havia uma efervescência no movimento teatral na cidade de São Paulo. A articulação política dos grupos em frentes como o movimento Arte Contra a Barbárie resultou na aprovação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, em 2002. 
“Defendíamos aquela luta, mas o teatro de rua não era bem visto sequer pela própria categoria teatral. Naquele momento, foi importante riscar o chão no sentido de dizer: ‘somos do teatro de rua!’”, afirma Alves. 
A partir daí, o Buraco d’Oráculo começou a travar contato com mais a mais coletivos, reunidos em diferentes iniciativas que foram se constituindo, como as Overdoses de Teatro de Rua
“Todos os grupos que estavam nessa ebulição do teatro de rua resolveram fazer apresentações ininterruptas, das 10h às 18h, no boulevard da Av. São João. Na época não havia Virada Cultural, mas já fazíamos isso – e os públicos eram gigantescos”, recorda Edson Paulo. Em pouco tempo, a articulação tornou-se mais ampla, abrangendo grupos de outras regiões do país. Em 2007, surgia a Rede Brasileira de Teatro de Rua, em Salvador. “Inicialmente, foi criado um espaço virtual de discussão. Em 2008, a Rede passa a ter encontros regulares, duas vezes por ano”, explica Alves. 
O fortalecimento político obtido com essa articulação permitiu que o teatro de rua se afirmasse junto ao poder público e à própria categoria teatral. “Hoje em dia dialogamos dentro do campo do teatro como um todo”, aponta Alves. 
Um dos focos principais da Rede é a discussão de políticas públicas para o teatro. Embora conquistas importantes tenham sido logradas – como o prêmio Artes Cênicas na Rua, discutido entre a Rede e o Ministério da Cultura –, nos últimos anos houve uma série de retrocesso no campo federal, conforme avalia o grupo. 
“Por não termos mais nada a perder, colocamos nossas demandas sem rodeios, o que desagrada a muita gente. Desde o Congresso Nacional de Teatro de 2011, o governo não nos recebe mais”, aponta Alves. 
Enquanto reivindicações históricas do teatro de grupo, como o Prêmio Teatro Brasileiro, encontraram diversos obstáculos, o governo investiu fortemente em programas como o Vale- Cultura – benefício de R$ 50 destinado a trabalhadores com renda de até cinco salários mínimos para o consumo de bens e serviços culturais. 
“O Vale-Cultura não beneficia nem o teatro de rua nem o trabalhador brasileiro, pois privilegia a indústria cultural de massas”, define Adailton Alves. 
Processos de trabalho 
Enquanto fortalecia o embate político, o Buraco d’Oráculo mantinha suas ações localizadas, dando continuidade à constituição de um circuito próprio em São Miguel Paulista e região. Em 2002, o grupo realizou uma primeira mostra de teatro com grupos parceiros. 
Com a itinerância crescente pela zona leste, o coletivo passou a trabalhar cada vez mais em bairros desprovidos de qualquer tipo de estrutura que pudesse abrigar uma peça teatral concebida para palco tradicional. “Por isso, em 2006 fizemos a primeira edição da mostra contando apenas com teatro de rua”, lembra Edson Paulo. 
Em 2005, o Buraco d’Oráculo obteve recursos públicos para desenvolver o projeto Circular Cohabs. Em cada conjunto habitacional, a trupe trabalhava por um mês: no primeiro final de semana apresentava um espetáculo, que nos encontros seguintes era discutido e servia de insumos para uma oficina teatral. 
“Com esse formato de trabalho, circulamos inicialmente por seis Cohabs”, conta Paulo. No ano seguinte, o projeto foi expandido, com o oferecimento de oficinas com seis meses de duração, abordando circo, expressão corporal, interpretação, figurinos e adereços. “Pulamos para 18 Cohabs, atingindo mais de 30 mil pessoas”, contabiliza Adailton Alves. 
O trabalho artístico do grupo tem como eixos centrais, desde o início, a própria perspectiva da rua, a linguagem farsesca e a cultura popular. Tais elementos consolidaram-se como horizonte de trabalho da trupe no espetáculo O Cuscuz Fedegoso, de 2002, permanecendo centrais em peças seguintes, como A Farsa do Bom EnganadorComiCidade
A vivência muito próxima do público das periferias acabou por influir na produção do Buraco d’Oráculo. “Fazendo nossas apresentações, sempre ouvimos muitas histórias. À certa altura, passamos a nos questionar sobre isso e decidimos, então, fazer um espetáculo que nascesse daqueles relatos, em vez de trazer uma peça pronta para o público assistir”, explica a atriz Lu Coelho. 
Essa foi a gênese de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. O grupo colheu mais de 80 horas de depoimentos em vídeo de moradores de seis comunidades em São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes. Eram histórias sobre migrações, perda de vínculos sociais e afetivos e luta por moradia na cidade grande (veja quadro com a introdução da peça)
A partir dos relatos, a trupe decidiu privilegiar três eixos temáticos principais: uma ocupação de terreno urbano, uma favela e um conjunto habitacional, refletindo sobre as conseqüências políticas de cada contexto. 
“Na ocupação e na favela há um aspecto da solidariedade importante. O conjunto habitacional, marcado pela intervenção do Estado, por um lado traz melhoras do ponto de vista da urbanização – mas por outro desorganiza o coletivo, fazendo os movimentos terem menos força”, compara Adailton. 
A percepção nasceu de um dos depoimentos, em que uma líder de movimento de bairro aponta que “hoje está difícil tirar as pessoas de dentro das casas.” O espetáculo transformou a perspectiva estética do grupo, que passou a privilegiar a narrativa de modo até então não explorado e também a incluir diretamente nas peças dados da realidade, como relatos e documentos – procedimento típico do teatro documentário. 
Ser TÃO Ser também nos aproximou de movimentos sociais, como o MST e o MTST, de forma mais organizada e sistemática. É uma peça que está à disposição da luta, onde ela for necessária”, define Lu Coelho. A perspectiva aberta com Ser TÃO Ser tem sido desenvolvida com a pesquisa das condições de trabalho dos habitantes das periferias. A intenção é tratar de temas como a precarização e o desemprego em uma Ópera do Trabalho. 
Paralelamente,o Buraco d’Oráculo levará aos sertões cearense, baiano e pernambucano sua última produção,  como parte do projeto Ser TÃO Ser pelos nossos sertões, contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. 
Introdução de Ser Tão Ser
“Boa noite senhoras, e senhores! O que irão aqui ver e ouvir não se passa no tempo presente, mas no tempo passado, escrito por nossa gente. Ouvimos as histórias do povo – vocês, nós –, todas contadas em volta de uma mesa de café, num fim de tarde qualquer. 
As personagens que aqui aparecem são habitantes de um sertão que fica à margem da cidade, pois foi lá o único lugar que encontraram que podiam pagar. Desse passado, não tão distante, muita coisa ainda permanece. Nas comunidades por onde passamos, as pessoas abriram as portas de suas casas e seus corações. 
Pois então vos peço: abram espaço para o teatro que aqui vamos apresentar! E começaremos pela chegada desse povo, pois como diz o poeta, um passo à frente e você já não está no mesmo lugar.”


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