terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Reality shows ou rituais de sofrimento?

Estudo compara reality shows da TV a rituais de sofrimento. 
Por Adalberto Pereira Jr.
Folha de S.Paulo – Ilustrada – 13 de janeiro de 2013.

Testes físicos extenuantes, brigas, intrigas e disputa por espaço e prêmios. A descrição acima tem sido a bula dos reality shows desde sua chegada à TV, no final dos anos 1990. 

Em sua 13ª edição, o "Big Brother Brasil", da Globo, que começou na última terça-feira, não fugiu à regra. 

Logo na estreia, submeteu seus participantes a uma prova que durou 15 horas. 

Na tarefa, os jogadores deveriam permanecer com as duas mãos encostadas em um carro, sem comer, dormir ou ir ao banheiro. 

Em 2009, a atração isolou três "brothers" num cômodo inteiramente branco, submetendo-os à privação de sentidos até que um desistisse. 

"A banalização da crueldade só ocorre na TV porque se tornou estrutural em nosso mundo", diz a socióloga Silvia Viana Rodrigues, autora de "Rituais de Sofrimento". 

No estudo, que chega neste mês às livrarias, ela compara o fascínio por esse tipo de produção com uma espécie de ritual religioso vazio, repetido à exaustão e que se reproduz na vida real. 

"Hoje as pessoas trabalham compulsivamente como se vivêssemos num mundo de escassez, mas nunca houve tanta riqueza. Trabalham para não serem demitidas. Reality shows espelham isso: são como processos seletivos", afirma ela. 

Milena Fagundes, do "BBB 9", sentiu isso na pele: "Tinha raiva quando a prova era de sorte. É preciso mostrar garra. Quem está assistindo gosta de ver o sofrimento alheio. Muita gente gostaria de estar lá; já que não pode, quer que o prêmio vá para quem mostre merecer". 

Para Luís Simonetti, diretor-geral do "BBB", o programa "é uma grande festa". Ele minimiza o fator crueldade nas provas da atração. 

"Elas ficaram mais técnicas. Algumas, que deveriam ser leves, ficaram parecendo mais duras. Mas isso quem cria são eles [os participantes]. Fazemos sem essa intenção." 

Para a pesquisadora, o telespectador de reality show não é sádico, mas se anestesiou. "Nossa sociedade exige que sejamos fortes, que não nos deixemos abalar, que superemos os desafios por mais estúpidos e sem sentido que sejam", conclui. 


Saiba mais sobre o livro


Professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP, Silvia Viana leva a sério o aparente escárnio da designação “reality show” em Rituais de sofrimento, novo livro da coleção Estado de Sítio a ser publicado pela Boitempo. 


“Não lidamos aqui com um ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador, pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento”, afirma a pesquisadora no primeiro capítulo. 


Silvia Viana analisa tais rituais e mecanismos de dominação em vários produtos televisivos da indústria cultural brasileira, com especial atenção ao maior deles, o Big Brother Brasil, no ar há treze anos. O estudo também abrange programas e filmes de Hollywood que perpetuam a mesma lógica brutal. Assim como no BBB, o assassino Jigsaw da franquia Jogos Mortais, por exemplo, não almeja a morte/eliminação de suas vítimas: ele quer que elas sobrevivam. Mais que isso, que sobrevivam a qualquer preço. 


Quais são as molas que movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos? Onde estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam, como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas? Silvia reflete sobre essas questões em um relato clínico, com traços firmes e finos, sem poupar nada nem ninguém. Segundo o sociólogo e professor da USP Gabriel Cohn, a fatura desse livro parece seguir uma regra básica: quanto mais o tema se revela repugnante, tanto mais refinada deve ser a sua exposição. O resultado é uma escrita em que não cabe o gesto banal da indignação moral nem a repulsa à má qualidade estética – ambas provocações já programadas no espetáculo –, mas algo mais fundo. 

Apesar de permanecer na sociedade o debate em torno de um de seus discursos de origem, o mote do espetáculo da realidade e seu maior apelo junto aos telespectadores é a concorrência, não o voyeurismo. “É esse o fundamento que atrai o nosso olhar, pois é o fundamento de nossa reprodução social”, afirma Silvia. 

Para além dos inúmeros recordes acumulados pelo programa Big Brother Brasil, é digno de atenção o espírito que, ao longo de três meses anuais, toma o público. A disputa hipnotiza as cidades como um espectro: sem entender como, sabemos nomes e acontecidos, o programa toma o ar e sufoca. É onipresente; está em todas as mídias e em todas as conversas; suscita contendas nos ônibus e táxis. Mas é na internet que o comprometimento do público toma corpo: sites, grupos de debate, blogs, salas de bate-papo, tuitagens, comunidades virtuais e campanhas inflamadas para a eliminação de fulano ou beltrano proliferam e deixam o rastro do dinheiro, trabalho e tempo oferecidos gratuitamente ao show de horror. Em espaços de reclusão, que pela própria dimensão já inspiram pesquisas acadêmicas, é unânime o desejo do embate feroz entre os aprisionados. Neles, impera o princípio muito bem formulado pelo organizador da rinha: importa muito mais a queda que a salvação. 

O princípio violento do BBB não é oculto, pelo contrário, o próprio programa faz questão de afirmá-lo constantemente – e funciona inúmeras vezes como propaganda – ao enfatizar o caráter eliminatório e cruel do jogo. Cada edição impõe a seus participantes situações mais árduas. “Não é um jogo de quem ganha. É um jogo de eliminação. Esse saber generalizado, no entanto, não impede que uns se submetam e outros castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer”, afirma Silvia. 

Dividido em quatro partes, “Show de horror”, “Das regras”, “Dos jogadores” e “Das provas”, o livro conta também com o posfácio “Breve história da realidade: sofrimento, cultura e dominação”, do professor-adjunto de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora Pedro Rocha de Oliveira, e com texto de orelha assinado por Gabriel Cohn. 

Trecho do livro 

“A dificuldade de se escrever a respeito da ideologia hoje é que para o juízo bastaria a descrição, mas essa já não o (co)move. Se uma pessoa se mostra crítica ou mesmo condoída diante do sofrimento que se avoluma nesse tipo de programa de TV, a ela caberá a pecha de idiota (ou invejosa!). A dominação se mostra a céu aberto em dia claro, sem que se renuncie à sua prática. Todo discurso a respeito de justiça, liberdade, igualdade e até mesmo bondade é descartado com virilidade em nome de uma dura realidade. [...] Não são poucas as vezes em que coloco o problema do sofrimento ao qual são submetidos os participantes e a resposta é: “Mas foram eles que se voluntariaram”. Uma das ideias centrais que sustentam o estado de direito é a da inalienabilidade: não se pode abrir mão da dignidade, por exemplo, mesmo que se queira. Em tese, nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram. E o problema jurídico posto por essas produções não responde sequer ao paradoxo dos direitos humanos colocado por Hannah Arendt, segundo a qual tais direitos só podem ter vigência quando levados a cabo pelos estados nacionais, ou seja, os apátridas não os têm. Os participantes são cidadãos brasileiros, alemães, norte-americanos, holandeses, argentinos e um longo etc. A vida à disposição da produção de entretenimento a que se assiste em reality shows é um índice mais do que transparente de que vivemos em um estado de exceção permanente, pulverizado e onipresente.” 

Sobre a autora 

Silvia Viana possui graduação em ciências sociais, mestrado e doutorado em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Suas áreas de estudos são sociologia, crítica cultural e filosofia, com ênfase em teoria crítica contemporânea, teoria sociológica e sociologia da cultura e nos temas ideologia, indústria cultural, consumo, trabalho e subjetividade.


Título: Rituais de sofrimento
Autor(a): Silvia Viana
Prefácio: Orelha: Gabriel Cohn
Posfácio: Pedro Rocha de Oliveira
Páginas: 192
Ano de publicação: 2013
ISBN: 978-85-7559-309-7
Preço: R$ 37,00



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