terça-feira, 11 de dezembro de 2012

“O QUE É HISTÓRIA? PERSPECTIVAS E CONCEPÇÕES HISTÓRICAS”


Seminário realizado pelo Centro Acadêmico Manuel Maurício de Albuquerque (C.A.M.M.A) – IFCS/UFRJ


Intervenção no debate (15/5/1997)

Por Anita Prestes

Penso que a História pode explicar as sociedades humanas seja do passado seja do presente. A História, enquanto disciplina, não deve ser confundida nem com memória nem com relato, crônica ou depoimento. A meu ver, o historiador tem o dever de não abdicar do seu papel de interpretar os documentos – sejam eles de que tipo forem – e construir a sua explicação dos fenômenos pesquisados.


Pode-se questionar: explicar como? Penso que de forma racional. Sou partidária das correntes racionalistas, ou melhor, do “paradigma iluminista”, adotando o conceito de “paradigmas rivais”, proposto por Ciro Flamarion Cardoso na Introdução do livro Domínios da História [1], recentemente publicado.


Defendo uma postura filosófica contrária ao agnosticismo, tão em moda no âmbito do paradigma chamado de “pós-moderno”. Reconheço, portanto, a possibilidade de conhecer o mundo exterior, em sucessivas aproximações, e, por tal razão, explicá-lo de maneira racional.

Sem negar as novas possibilidades abertas pelo estudo das representações, proposto pela Nova História Cultural, considero necessário estar alerta quanto ao risco de cair-se na “tirania do cultural”, conforme é reconhecido por Ronaldo Vainfas. [2] Ou seja, risco de, ao tentar-se escapar do “primado quase tirânico do social”, segundo R. Chartier [3], incorrer-se numa absolutização de sinal contrário. Preocupa-me sobremaneira a produção historiográfica em que são absolutizados sejam as representações sejam outros aspectos culturais dos fenômenos estudados, deixando-se de lado os demais aspectos tão ou mais importantes. A meu ver, chega-se, ou pode-se chegar, a uma caricatura das comunidades humanas pesquisadas, cujo funcionamento seria explicado exclusivamente a partir de um viés culturalista, perdendo-se, assim, a visão de conjunto da sociedade e de suas diferentes instâncias. Desta maneira, corre-se o risco de desconsiderar que “a história é um conjunto dentro do qual existem interconexões contínuas”, conforme nos reitera Pierre Vilar, em entrevista recentemente publicada na França [4], na qual o grande historiador marxista reafirma os pontos básicos do seu pensamento e de sua postura como historiador: a preocupação com a totalidade, ou seja, com a busca de uma visão globalizante das sociedades humanas. Trata-se, entretanto, de uma totalidade hierarquizada, que não deve ser confundida – como querem alguns – com um simples inventário dos acontecimentos do passado, algo impossível e absurdo de ser realizado. Uma totalidade que englobe os aspectos substantivos e essenciais da realidade social pesquisada, contribuindo para que esta possa ser racionalmente explicada.


Quanto à micro-história, tendência presente com grande força na historiografia atual, penso que da maneira como foi enfocada, por exemplo, por Giovanni Levi, em artigo incluído na coletânea A Escrita da História, organizada por Peter Burke [5], é perfeitamente aceitável para quem mantém a preocupação com as articulações entre a escala micro e o conjunto social. Afirma Giovanni Levi:

“A questão é (...) como definir as margens – por mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o governam.” [6]

Semelhante postura metodológica choca-se, contudo, com aquela adotada em alguns trabalhos, que acabam incorrendo na absolutização do particular, desligado de suas interconexões com o geral, dando origem a uma “história em migalhas”, expressão já consagrada na historiografia e também empregada por P. Vilar na entrevista acima citada. [7]


De minha parte, desenvolvo uma linha de pesquisa que denomino de história social e política do Brasil contemporâneo, uma vez que trabalho com uma história política que entendo estreitamente relacionada com o que se poderia chamar de história social do período. Não concebo, por exemplo, estudar o fenômeno do tenentismo restrito à política, pois, a meu ver, é necessário relacioná-lo com o social e, em particular, com os condicionantes específicos das corporações armadas. [8] Conforme é assinalado por Ciro Flamarion Cardoso, em prefácio ao meu livro Os Militares e a Reação Republicana (As Origens do Tenentismo):

“Voltando-se contra as visões parcializadas e reducionistas, no caso, as que circulam acerca da História de nosso país nos anos 20, Anita demonstra, com o uso adequado de pertinente documentação, quão falaciosas são as tentativas de construir uma interpretação “militarista” ou corporativa do Tenentismo e, mais geral, da participação dos militares na política. (...) A tarefa desmistificadora deste estudo não deixará de provocar debates e polêmicas que (...) mostrarão, não duvido, que os civis, os militares e suas ações só são inteligíveis no bojo da crise que naqueles anos levou ao desmonte de uma determinada estruturação global – econômica, política, intelectual – da sociedade brasileira.” [9]

Reconheço a autonomia relativa da política e considero um avanço considerável que a atual Nova História Política esteja voltada para esta problemática.           Mais uma vez, o perigo reside, no meu entender, na absolutização dessa autonomia, que pode deixar de ser, na prática, relativa para tornar-se absoluta. Na realidade, tanto K. Marx quanto F. Engels e, em especial, A. Gramsci foram os grandes formuladores desse caráter relativo da autonomia das instâncias superestruturais, dentre as quais inclui-se a polítrica. Basta citar obras como O 18 Brumário de Luis Bonaparte (de Marx) e a correspondência de Engels [10] nos últimos anos de sua vida para comprovar tal afirmação. Trata-se de conseguir articular com competência as diversas instâncias da sociedade, hierarquizando-as e explicando os seus condicionamentos mútuos.


Concluindo, o historiador, do meu ponto de vista, “deveria sintetizar os conhecimentos sobre o homem e sobre a evolução da humanidade”, nas palavras de P. Vilar. [11] Uma postura teórica e metodológica que se contrapõe à da “história em migalhas” ou história em compartimentos estanques que, a meu ver, não consegue explicar os fenômenos presentes nas sociedades humanas. No máximo, alcança descrever detalhes esparsos, perdendo o relato histórico, o sentido de síntese, de explicação do funcionamento das comunidades humanas.

 NOTAS

[1] CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 1-43.
[2] Idem, p. 155.
[3] Idem, p. 153.
[4] VILAR, Pierre. “La mémoire vive des historiens”. In: BOUTIER, J. et DOMINIQUE, J. (orgs.) Passés Recomposés. Paris: Autrement, 1995, p. 28.
[5] LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo: EDUNESP, 1992, p. 133-161.
[6] Idem, p. 135. Grifos meus.
[7] VILAR, Pierre, op. cit., p.282.
[8] Cf. PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
____ . Os Militares e a Reação Republicana (As Origens do Tenentismo). Petrópolis: Vozes, 1994.
[9] CARDOSO, C. F. “Prefácio”. In: PRESTES, A. L. Os Militares e a Reação Republicana. Op. cit., p. 10-11.

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