domingo, 9 de dezembro de 2012

Engajamento político e trabalho intelectual



Por Marcelo Badaró Mattos

As origens da expressão “intelectual” tal como a concebemos hoje estão associadas a fenômenos do século XIX. Na segunda metade daquele século, na Rússia, algo semelhante ao que definimos como intelectual era nomeado por meio da expressão intelligentsia. Foi, entretanto, na França, em 1898, com a intervenção em que se destacou Émile Zola, que surgiu o uso contemporâneo do termo. Já naquele momento, no “Manifeste des intellectuels”, a respeito do caso Dreyfus, o termo já se carregava de duplo sentido: de um lado, a atividade intelectual era associada ao cultivo da instrução; de outro, à intervenção e ao engajamento no debate público.

Tal parece ser a compreensão de Benoît Denis, para quem os intelectuais podem ser definidos como:

[...] um conjunto relativamente heterogêneo de atores sociais (cientistas, universitários, escritores...) que têm em comum, além de serem profissionais que trabalham no campo das ideias e dos saberes, de terem chegado, nos seus setores respectivos de atividades, a um grau suficiente de autonomia e prestígio para reivindicar um direito de intervir nos negócios públicos. (DENIS, B. Literatura e engajamento. Bauru: Edusc, 2002, p. 210)

Edward Said [...] insistiu não apenas no papel público do intelectual, mas também na sua dimensão de “representação” de determinada mensagem – o que deveria levá-lo a assumir posições “embaraçosas”, lembrando muitas vezes o que se quer esquecer:

Quero também insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro competente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e deseus interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público. E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações e cuja raison d’être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. (SAID, E. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 25-26)

Entretanto, atualmente é mais comum encontrarmos a concepção do intelectual como simples especialista em determinado campo do conhecimento ou atividade artística. É comum encontrarmos mesmo o repúdio à ideia de engajamento. A definição do papel do intelectual que associa funções de elaboração artística ou científica à intervenção pública não é nem nunca foi consensual. Em especial os intelectuais que assumem a perspectiva de que sua intervenção pública possui um “partido”, no sentido de que representa um projeto político – e mais ainda quando esse projeto é o da transformação social –, defrontam-se há muito com as críticas que apontam a “contaminação” da investigação científica ou do produto artístico pela ideologia do seu produtor. É uma operação típica do pensamento conservador tentar separar essa dupla dimensão do papel do intelectual, criando a ilusão de que os intelectuais poderiam existir como uma categoria social autônoma, como técnicos especialistas, como cientistas neutros ou como artistas que produzem a arte pela arte.  

A essa operação ideológica conservadora sempre se opôs a análise que, além de caracterizar os intelectuais como possuidores de vínculos sociais claros, chama a atenção para o fato de a produção intelectual e artística estar sempre atravessada pelos conflitos de seu tempo. Um caminho para compreender tal processo foi aberto pelas análises de Antonio Gramsci. De início, podemos atentar para aquela distinção observada por Gramsci entre a operação intelectual e a função intelectual nas sociedades capitalistas. Criticando a tentativa de encontrar o que seria intrínseco à atividade intelectual, Gramsci defendeu que o correto seria analisá-la no interior do conjunto das relações sociais. Por isso afirmou que “todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectual” (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 18).

Por este caminho, compreendemos que os intelectuais nem formam um grupo à parte das relações sociais fundamentais da sociedade de classes em que vivemos, nem tampouco possuem atributos específicos, especiais, que os distinguem dos demais mortais. Exercem uma função específica, que na maioria dos casos é, ainda segundo o próprio Gramsci, conservadora em relação à ordem, pois a atividade dos intelectuais é quase sempre associada ao exercício de um papel de “prepostos do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político” (idem, p. 21).

Recorrendo novamente a Gramsci, podemos recordar também o par conceitual que ele estabelece entre “intelectual tradicional” e “intelectual orgânico”. Mais do que uma taxonomia classificatória rígida (Gramsci operava dialética e historicamente com suas díades) ou uma chave para o entendimento da opção do indivíduo que exerce a função intelectual, a distinção se aplica entre, de um lado, uma concepção (Gramsci fala mesmo de uma “utopia social”): a do intelectual tradicional como pensador autônomo em relação aos conflitos políticos e sociais de sua época, portador de um conhecimento neutro, livre de vínculos maiores com quaisquer das classes sociais fundamentais, cuja base histórica, já superada no século XX, era o clérigo católico do Antigo Regime. De outro lado, uma realidade contemporânea: o intelectual orgânico, por ele exemplificado na figura do empresário – organizador da produção e dirigente político –, figura que, por pertencimento ou adesão, representa um dado projeto político, portanto, de classe. Por certo que a autodefinição do intelectual tradicional tem peso relevante em sua atuação social. Porém, os que resistem representando-se como intelectuais tradicionais, embora muitas vezes sinceramente aferrados ao valor da autonomia do conhecimento, recusam-se a enxergar que, na maior parte das vezes, atuam como intelectuais orgânicos e, quase sempre, das classes dominantes, pois uma das operações envolvidas nos processos de construção da hegemonia seria justamente a tarefa de atrair o máximo de intelectuais tradicionais para os projetos de classe dominantes.

Quando se ressalta que o caráter orgânico do intelectual contemporâneo se define por seu papel de representação de um projeto de classe, entendido como projeto político, é direta a analogia com algumas conhecidas passagens da obra de Marx e de Engels, como no seu Manifesto do Partido Comunista, quando associam organizar-se como classe a constituir-se em partido, afirmando a “organização dos proletários em classe, e deste modo em partido político” (MARX, K. e ENGELS, F. “Manifesto do Partido Comunista”. In: ___ . Obras escolhidas. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1982, v. 1, p. 115). Cabe aí o cuidado, porém, de perceber que naquele momento o conceito de partido com o qual trabalhavam Marx e Engels era distinto do que orientará as análises a partir do final do século XIX. O sentido político/partidário, tanto dos intelectuais em Gramsci quanto do projeto em Marx, é dado pelo vínculo de classe.

Resta ainda chamar a atenção para o fato de que Gramsci parte justamente da assertiva de Marx e Engels, de que defender um projeto político de classe corresponde à função de partido, ainda que essa tarefa seja assumida por uma entidade não partidária, no sentido institucional que o termo ganharia depois. Por isso, periódicos, grupos de pressão e organizações da sociedade civil (chamados pelos gramscianos de “aparelhos privados de hegemonia”) podem assumir tal papel em determinados contextos históricos. Claro deve estar que com isso Gramsci não pretendeu negar a importância do partido propriamente dito. Pelo contrário, valorizou-o profundamente, conseguindo condensar, em suas elaborações, a ideia do partido como uma necessária direção política das lutas, com o sentido de que o partido nasce na classe e das lutas de classe. Nascido e inserido na classe, como seu setor mais consciente, a tarefa do partido para Gramsci era também a de promover “uma reforma intelectual e moral”.

Para tanto, a relação partido/intelectual é central. Gramsci apresenta como tarefa da classe trabalhadora formar seus próprios intelectuais orgânicos. Entendendo esse intelectual como um organizador e persuasor permanente, nada próximo dessa figura que o militante partidário. Nesse sentido gramsciano, todos os membros de um partido político devem ser considerados como intelectuais (com diferenças e hierarquias), pois a sua função [...] é diretiva e organizativa, isto é, educativa, isto é intelectual” (GRAMSCI, 2000, p. 25). Indo além, segundo essa concepção, o próprio partido é em si um “intelectual coletivo” (idem).

           

FONTE: MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012, p. 15-19.





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