segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Nietzsche, o Rebelde Aristocrata

Nietzsche visto hoje

Giovanni Semeraro*


Uma analise da obra de Nietzsche justificaria por si só o volume de páginas deste livro [Nietzsche, o Rebelde Aristocrata: Biografia intelectual e Balanço Crítico, de Domenico Losurdo, Editora Revan, 1.108 páginas]. Mas Domenico Losurdo vai além dessa tarefa. Situa o estudo dos textos e das diversas fases do itinerário intelectual de Nietzsche no contexto do século XIX, um período histórico que ele domina como poucos.

O levantamento de uma impressionante documentação sobre Nietzsche e o seu tempo, desconhecida para muitos analistas, permite ao autor descobrir as profundas ligações políticas e culturais que o filosofo alemão cultivava. Ao situá-lo no contexto da sua época e recuperar a sua interlocução com diversos personagens e correntes de pensamento, Losurdo chega a uma compreensão mais penetrante dos conceitos centrais e das posições de Nietzsche, como ninguém tem ousado até hoje.

O resultado que emerge dessa tão gigantesca quanto solitária tarefa é inédito e admirável. Na contracorrente das leituras idílicas e estereotipadas, uma outra imagem de Nietzsche toma corpo ao longo das páginas deste livro. Com o rigor da investigação e a acuidade da argumentação que o caracterizam, Losurdo desconstrói a paradigmática meta-narrativa que se veio formando e difundindo em torno do pensamento de Nietzsche.

Sai desmascarada não apenas a despolitização operada pela interpretação seminal que Heidegger começou a fazer em seus cursos no início do século passado, mas fica também evidenciada a manipulação que a escola pós-modernista francesa e italiana conferiu às idéias de Nietzsche. Sobram também críticas e reparos à edição oficial da obra de Nietzsche organizada por G. Colli e M. Montinari, surpreendidos com falhas de tradução e remoções suspeitas.

Os que ainda tentam leituras libertárias e esquerdistas de Nietzsche não vão gostar de ver dissolvido o anarquismo reacionário e elitista do autor de Assim falou Zaratustra. Ao contrário do lugar comum de um filósofo apresentado como a-político e a-sistemático, Losurdo descobre que o elemento de unidade do pensamento inatual e aforismático de Nietzsche é exatamente sua plataforma política.

O autor de Para além do bem e do mal é revelado como um intelectual totus politicus que não se limita a enaltecer a guerra, a propor o aniquilamento das raças decadentes, a defender a escravidão, a atacar o sufrágio universal, a emancipação da mulher e a socialização dos direitos, mas desenha um claro projeto anti-moderno, anti-democrático, anti-socialista e anti-revolucionário.

Quando não bastam o manto do recurso à alegoria e o expediente da metáfora para explicar os aspectos mais inquietantes e repugnantes de Nietzsche, muitos autores se dedicam a selecionar textos, a encobrir a violência e a depurar as dimensões políticas e sociais determinantes na sua proposta niilista. A velada hermenêutica da inocência e a pureza do devir divulgadas pelo catecismo nietzscheano não convencem a epistemologia da suspeita de Losurdo que, ao contrário, mostra um autor que desde jovem foi sempre fiel ao seu radicalismo aristocrático, que pregou abertamente a repressão das revoluções que vulgarizavam a Europa, que combateu a corrente plebéia e subversiva subjacente à linha histórica Sócrates-judaísmo-cristianismo-socialismo e que contrastou a perigosa propagação da questão social, séria ameaça para a nobre estirpe dos super-homens.

Presos à vulgata predominante, alguns leitores já familiarizados com Nietzsche, podem discordar mas não ignorar os resultados deste trabalho de Losurdo. Trata-se de um método incomum de pesquisa, de uma filologia rigorosa e de um indispensável campo de estudo que impedem a filosofia de evadir-se dos fatos e da história. Mas, acima de tudo, de um desafio posto pelo poderoso embate entre contrapostas concepções filosóficas e políticas que o autor desvela e coloca corajosamente na mesa.

A Editora Revan, ao empreender no Brasil a edição dessa obra monumental, teve em vista especialmente a juventude. Cabe agora aos jovens universitários, a quem interessa particularmente esse imenso campo de estudo e pesquisa, acolher o desafio de levar adiante as múltiplas fronteiras do conhecimento e das indagações aqui descortinadas.

Não se espante também o leitor não especializado. Pode ter certeza de que, uma vez iniciada a leitura, não vai conseguir parar. As numerosas páginas vão lhe parecer poucas diante da riqueza dos dados e das descobertas que vai encontrar, da leveza e da clareza da linguagem, da finura da argumentação e da urdidura envolvente do discurso de conjunto. Mais do que uma leitura, trata-se da escola de um mestre de indagação que reconhece a grandeza e fascínio de Nietzsche e enfrenta com perspicácia e radicalidade sua alma mais recôndita e ocultada.

*(Professor de Filosofia na Universidade Federal Fluminense – UFF)

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