domingo, 3 de janeiro de 2010

Luiz Carlos Prestes: patriota, revolucionário, comunista

Por Anita Leocadia Prestes

Luiz Carlos Prestes tornou-se, indiscutivelmente, um personagem altamente controvertido da História do Brasil contemporâneo. Sua vida é pouco conhecida e muito deturpada. Ele próprio, um homem de ação, um revolucionário, que passou a maior parte de sua existência em condições extremamente adversas, não teve a preocupação de escrever suas memórias, nem contou com circunstâncias favoráveis para elaborar reflexões aprofundadas sobre os diferentes momentos de sua diversificada atuação política. Sua vida, entretanto, está indissoluvelmente ligada a cerca de 70 anos da história recente de nosso país. Desde 1921, quando Prestes participa dos primórdios da conspiração tenentista que resultaria no levante de 5/7/1922, até o seu falecimento em 7/3/1990, sua trajetória política se confunde com os acontecimentos mais importantes e mais palpitantes da história brasileira e, em muitos momentos, da história mundial.
Luiz Carlos Prestes, desde muito jovem, revelou indignação com as injustiças sociais e a miséria de nosso povo, mostrando-se preocupado com a busca de soluções efetivas para a situação deplorável em que se encontrava a população brasileira, principalmente os trabalhadores do campo, com os quais tivera contato durante a Marcha da Coluna, que ficaria conhecida como a Coluna Prestes. Muito antes de tornar-se comunista, Prestes já era um revolucionário. Sua adesão aos ideais comunistas e ao movimento comunista apenas veio comprovar e confirmar sua vocação revolucionária, seu compromisso definitivo com a luta pela emancipação econômica, social e política do povo brasileiro. Enquanto revolucionário, Prestes foi um patriota – um homem que dedicou toda sua vida à luta por um Brasil melhor, por um Brasil onde não mais existissem a fome, a miséria, o analfabetismo, as doenças, a terrível mortalidade infantil e as demais chagas que sabidamente continuam ainda hoje a infelicitar nosso país. Como se dizia antigamente, e no bom sentido da palavra, Prestes foi um idealista.
A descoberta da teoria marxista e a conseqüente adesão ao comunismo representaram, para Prestes, o encontro com uma perspectiva, que lhe pareceu factível, de realização dos anseios revolucionários por ele até então alimentados, principalmente durante a Marcha da Coluna. A luta à qual resolvera dedicar sua vida encontrava, dessa forma, um embasamento teórico e um instrumento para ser levada adiante – o Partido Comunista. O Cavaleiro da Esperança, uma vez convencido da justeza dos novos ideais que abraçara, tornava-se também um comunista convicto e disposto a enfrentar toda sorte de sacrifícios na luta pelos objetivos traçados.
No processo de aproximação ao PCB, Prestes rompeu de público com seus antigos companheiros, os “tenentes”, posicionando-se abertamente a favor do programa da “revolução agrária e antiimperialista” defendido pelos comunistas brasileiros. Seu Manifesto de Maio de 1930 é um documento de indiscutível importância, uma vez que consagra o início de uma nova fase na vida do Cavaleiro da Esperança. A partir daquele momento, Prestes deixava definitivamente para trás os antigos compromissos com o liberalismo tenentista e enveredava pela via da luta pelos ideais comunistas que passariam a nortear, dali por diante, toda sua vida.
Mas a importância do Manifesto de Maio transcende a virada ocorrida na trajetória política de Luiz Carlos Prestes. Pela primeira vez na história do Brasil, uma liderança de grande projeção nacional, a personalidade de maior destaque no movimento tenentista – na qual apostavam suas cartas as elites oligárquicas congregadas na Aliança Liberal, na expectativa de que o Cavaleiro da Esperança pusesse seu cabedal político a serviço dos objetivos da oposição oligárquica, aceitando participar do poder para melhor servi-la –, recusa tal poder, rompendo com os políticos das classes dominantes para se juntar aos explorados e oprimidos, para se colocar do lado oposto da grande trincheira aberta pelo conflito entre as classes dominantes e as dominadas, entre exploradores e explorados. Prestes tomava o partido dos oprimidos, abandonando as hostes das elites comprometidas com os donos do poder.
Tratava-se de um fato inédito, jamais visto no Brasil. Luiz Carlos Prestes, capitão do Exército, que se tornara general da Coluna Invicta, que fora reconhecido como liderança máxima das forças oposicionistas ao esquema de poder vigente na República Velha, talhado, portanto, para se transformar no líder da “revolução” das elites oligárquicas, numa liderança política confiável dessas elites, usava seu prestígio para indicar ao povo brasileiro um outro caminho – o caminho da luta pela reforma agrária radical e pela emancipação nacional do domínio imperialista, o caminho da revolução social e da luta pelo socialismo.
Vale lembrar que Prestes, diferentemente de um João Cândido, na Revolta da Chibata, de um Roberto Morena, no movimento operário, ou de um Gregório Bezerra, junto aos trabalhadores rurais, não provinha dos setores populares, nem surgira da luta das classes exploradas e/ou marginalizadas do povo brasileiro. O Cavaleiro da Esperança era um líder que expressava principalmente os anseios de mudança das camadas médias urbanas no Brasil dos anos de 1920, ainda que, ao final daquela década conturbada, os anseios de mudança representados pelo tenentismo empolgassem parcelas consideráveis de setores populares. Luiz Carlos Prestes, pelo seu papel destacado à frente do tenentismo, estava talhado para ser um político comprometido com os chefes oligárquicos que fizeram a “Revolução de 30”. Da mesma maneira que os “tenentes” Juarez Távora, Osvaldo Cordeiro de Farias ou João Alberto Lins de Barros, esperava-se de Prestes a participação ativa no movimento “revolucionário” de 1930.
Eis a razão do impacto causado pelo seu Manifesto de Maio. Poucos, muito poucos entenderam o gesto do Cavaleiro da Esperança. Numa sociedade em que os setores populares foram, na maior parte das vezes, mantidos longe de qualquer participação na vida política nacional, parecia absurdo que um líder da envergadura de Prestes pudesse recusar o poder que lhe era oferecido para, rompendo com a tradicional política de conciliação com os setores dominantes, colocar-se definitivamente ao lado dos oprimidos e dos explorados, à frente dos trabalhadores. Prestes não aceitara ser um político das classes dominantes. Passaria a ser um político comprometido com os interesses populares, ainda que tais setores, em sua maioria, não pudessem na época compreender a grandeza do seu gesto.
Como foi sempre coerente consigo mesmo e com os ideais revolucionários a que dedicou sua vida, sem jamais se dobrar diante de interesses menores ou de caráter pessoal, Prestes despertou o ódio dos donos do poder, que se esforçariam por criar uma história oficial deturpadora, tanto de sua trajetória política quanto da história brasileira contemporânea.
Mesmo após seu falecimento, Prestes continua a incomodar os donos do poder, o que se verifica pelo fato de sua vida e suas atitudes não deixarem de ser atacadas e/ou deturpadas, com insistência aparentemente surpreendente, uma vez que se trata de uma liderança do passado, que não mais está disputando qualquer espaço político. Num país em que praticamente inexiste uma memória histórica, em que os donos do poder sempre tiveram força suficiente para impedir que essa memória histórica fosse cultivada, presenciamos um esforço sutil, mas constante, desenvolvido através de modernos e possantes meios de comunicação, de dificultar às novas gerações o conhecimento da vida e da luta de homens como Luiz Carlos Prestes, cujo passado pode servir de exemplo para os jovens de hoje.
Uma vez que, nas condições atuais, de existência de uma relativa liberdade de imprensa, embora aliada a uma crescente manipulação da opinião pública, não seja mais possível manter absoluto silêncio a respeito de Prestes – o que foi feito não só durante os anos da ditadura militar, mas também em ocasiões anteriores –, procura- se hoje desenvolver formas sutis de, sem recorrer ao ataque direto, descaracterizar sua figura. O anticomunismo atual já não é o mesmo dos tempos da “guerra fria”, quando se afirmava que os comunistas “comiam criancinhas”. No início do século 21, é necessário apelar para a criatividade dos “intelectuais orgânicos” a serviço da burguesia para encontrar meios mais eficazes de convencimento das pessoas e de construção de um consenso social, capaz de assegurar sua
hegemonia política.
Sem abandonar a repetição de conhecidas e surradas calúnias contra os comunistas e, em particular, contra Prestes, procura-se difundir uma nova imagem do Cavaleiro da Esperança – a de um homem “puro e ingênuo”, indiscutivelmente honesto (jamais alguém conseguiu duvidar de sua honestidade), um bom pai de família, até mesmo um amante das flores e cultivador de roseiras, mas um militar rígido (evita-se lembrar seu reconhecido talento como estrategista, revelado durante a Marcha da Coluna), incapaz de compreender as nuanças da política. Sua vida política, portanto, não teria passado de uma lamentável sucessão de erros e fracassos – um exemplo desastroso, que não mereceria ser seguido pelos jovens de hoje, uma vez que se trata de lhes incutir a visão de que só devem ser adotados os “modelos” vitoriosos. Dessa forma, é “fabricada” uma imagem banalizada, “domesticada” ou “pasteurizada” de Luiz Carlos Prestes – a de uma personalidade que merece muito mais compaixão pelos sofrimentos por que passou do que admiração pelo seu heroísmo, pela dedicação sem limites à causa da libertação do seu povo de todo tipo de dominação e exploração, pela firmeza na defesa das convicções revolucionárias assumidas. O herói, o revolucionário, o patriota, o comunista convicto são silenciados, para se criar a imagem de um Prestes inofensivo para os dominadores e exploradores de hoje.*

* Semelhante tipo de tratamento da personalidade de Prestes é adotado no filme documentário “O Velho - A história de Luiz Carlos Prestes”, de autoria de Toni Venturi, 1996.

Fonte: PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: patriota, revolucionário, comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2006. pp.63-70.

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