domingo, 29 de dezembro de 2019

Entrevista de Anita Prestes à Folha de São Paulo, 29/12/2019

Comunismo é tão precário que não significa perigo, diz filha de Olga e Prestes
Para Anita Prestes, acusação hoje serve de justificativa para perseguir pessoas, como em 1964

Por Paula Sperb

Em uma prisão do regime nazista de Adolf Hitler, na Alemanha, nasceu Anita Leocádia Prestes. Sua mãe, a militante comunista Olga Benário, foi entregue grávida ao genocida pelo presidente brasileiro Getúlio Vargas, em 1936. Seu pai, o gaúcho Luiz Carlos Prestes, estava preso no Brasil pela ditadura do Estado Novo.

Anita escapou do nazismo graças a uma campanha internacional liderada por sua avó paterna, Leocádia, ao lado de sua tia, Lygia.

Após a libertação da menina, Olga foi enviada a um campo de concentração, onde morreu em uma câmara de gás.

Aos 82 anos [entrevista concedida antes de 27/11/2019, aniversário de 83 anos da entrevistada], Anita publica o livro de memórias “Viver É Tomar Partido” (Boitempo, 2019). Para ela, o comunismo “tem sido usado como uma justificativa para perseguir as pessoas” e, “precário”, não representa “perigo nenhum”.

Como é crescer sabendo que esteve em posse de nazistas após o nascimento?
Nasci na prisão de mulheres. Minha mãe foi para o campo de concentração depois que eu fui devolvida. Me habituei desde pequena com a verdade porque a minha família nunca foi de dramatizar as coisas. Me ensinaram a lutar e enfrentar. Entendia, inclusive, que tinha gente em condições muito piores que a minha.

Fui salva graças à campanha internacional. Poderia ter sido levada para um orfanato nazista. Sempre fui muito cuidada, com solidariedade tanto no Brasil como no exterior. Quantas crianças, pessoas inocentes morreram vítimas do nazismo?

O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo já disseram que o nazismo é de esquerda. Por que esse equívoco tem sido propagado?
É o capitalismo desesperado diante da situação de sua própria crise, refletida na insatisfação popular, nas greves, nas manifestações. Precisam inventar uma história para se justificar, dizendo que o nazismo é de esquerda, que o holocausto não existiu, que o comunismo é um perigo. A realidade do comunismo é tão precária que não significa perigo nenhum.​

No seu livro, a senhora conta que ainda criança foi perseguida por ser filha de comunistas. Uma diretora tentou evitar seu ingresso na Escola Nacional de Música [hoje UFRJ]. O rótulo de comunista retornou à pauta, usado contra artistas, intelectuais e até mesmo contra políticos moderados. Por quê?
A diretora, naturalmente, era influenciada pela propaganda anticomunista da época. Meu pai era um demônio e eu, por consequência, um demoniozinho [risos], embora só tivesse 11 ou 12 anos. Essa propaganda faz a cabeça das pessoas. É isso que a gente está vendo.

No golpe de 1964, alegavam que era para evitar o comunismo e contra a corrupção. Exatamente a mesma coisa de agora. Muita gente é perseguida sem ter nada a ver com comunismo. Precisam de bodes expiatórios. Comunismo é usado como uma justificativa para perseguir as pessoas.

A senhora foi perseguida pela ditadura militar. O que pensa sobre os elogios ao período feitos por Bolsonaro e seus apoiadores?
É toda uma política para justificar repressão, para implementar medidas autoritárias, está aí o Escola Sem Partido. Eles criam essas histórias para conquistar adeptos. Através do WhatsApp, Bolsonaro conseguiu se eleger. O PT fez muita coisa errada, mas espalharam barbaridades que não tinham cabimento, coisas inventadas.

Que coisas erradas o PT fez na opinião da senhora?
No governo, o PT não fez reformas profundas como é necessário. Deu continuidade, no fundamental, às medidas liberais que vinham do FHC. Sem dúvida, houve políticas para melhorar a vida dos mais pobres. Mas não fez nada para esclarecer o povo, até para que pudessem defender as conquistas que tiveram. O que tinha melhorado já está pior.

O que explica a eleição de Bolsonaro?
O povo brasileiro estava bastante insatisfeito com a crise. A última crise do capitalismo, de 2008, demorou a chegar aqui, chegou em 2013, 2014 e cresceu. Até porque o PT não teve competência para enfrentar isso. Deram um golpe jurídico-parlamentar na Dilma [Rousseff]. Ficou o [Michel] Temer uma temporada, mas precisavam de candidato confiável para o capital, que fizesse contenção de despesa, reforma da Previdência, trabalhista, tinha que ter um governo disposto a isso.

O próprio PT não estava disposto. Derrubaram a Dilma, mas faltava candidato, o [Geraldo] Alckmin não decolou e acabaram engolindo o Bolsonaro.

No seu livro, a senhora conta que era tratada com frieza por dona Maria [mulher de Prestes após a morte de Olga]. O que acontecia?
Eu tinha que mencionar porque não tem jeito, são minhas memórias, mas isso é o menos importante. Felizmente, vivi muito bem sem ela. Não há por que ficar remoendo as coisas erradas que ela fazia.

Por que a senhora não aceitou as pensões que lhe foram oferecidas?
Foram duas. A primeira, porque era um absurdo dona Maria [madrasta] recorrer ao Exército após a morte de meu pai [ele foi capitão]. Como liderança comunista revolucionária, ele achava que não tinha que voltar [se aposentar pelo Exército]. Como filha, eu teria direito, mas rejeitei porque acho uma indignidade com a memória dele.

A segunda foi porque tive os direitos políticos cassados. Aceitei apenas que o período em que fui perseguida e não consegui emprego após me formar em 1964 [em Química Industrial] contasse para o cálculo da aposentadoria, mas doei os R$ 100 mil que recebi. Fiz uma doação para o Inca (Instituto Nacional do Câncer). Não tinha sentido ficar com o valor, afinal, era dinheiro do povo brasileiro.

Seu pai e a senhora romperam com o PCB. Por quê?
Eu até rompi primeiro porque não tinha as responsabilidades que ele tinha. Ele rompeu quando redige e divulga a “Carta aos Comunistas” [em março de 1980, quando ele cobra autocrítica do partido]. A gente fez muita força para ver se modificava a direção, se fariam autocrítica da política errada de “revolução em etapas”.

A gente chegou à conclusão que o Brasil era outro, não podia repetir aquelas teses erradas. Ele se convenceu que não tinha como mudar [os rumos do partido] e decidiu não continuar dando aval. Ele dizia que traíram a classe operária. Virou um conjunto burocratizado, o jeito foi romper. 

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