por Eduardo Nunomura, Carta Capital
Documentos da Gestapo liberados agora permitem a Anita Leocadia Prestes remontar últimos dias da vida de sua mãe
Anita se encontra com o pai, Luiz Carlos Prestes, cujas cartas para Olga eram censuradas. [Foto de outubro de 1945] |
Nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão alemã de Barnimstrasse e arrancada dos braços da mãe 14 meses depois, Anita Leocadia Prestes surpreendeu-se ao encontrar, dois anos atrás, uma lista com cerca de 2 mil folhas digitalizadas da Gestapo, a polícia secreta de Adolf Hitler.
Organizada em oito dossiês com o nome “Processo Benario”, a documentação revela em detalhes nunca antes descritos a perseguição do regime nazista à sua mãe, considerada uma “comunista inteligente e perigosa”.
A luta de resistência de Olga Benario, a companheira de Luiz Carlos Prestes, pode agora ser revista e aperfeiçoada. A comunista que não se dobrou ao nazismo dizia até o último momento ao aparato do terror alemão: “Se outros se tornaram traidores, eu jamais o serei”.
Em abril de 2015, boa parte dos chamados “documentos-troféus” (Trophäen-dokumente, em alemão) tornou-se pública. O acervo, com cerca de 2,5 milhões de folhas, que formam um conjunto de 28 mil dossiês, estava em mãos dos russos desde que soldados soviéticos apreenderam o material, após a derrota da Alemanha nazista em 1945.
Por 70 anos, esses documentos foram mantidos em segredo. Ao serem revelados, mostram que o “Processo Benario” compõe “talvez a coleção mais abrangente de documentos sobre uma única vítima do fascismo”, observa a filha de Olga e Luiz Carlos Prestes.
“Isso mostra como a Gestapo dava uma importância muito grande a ela. Há informes para (Heinrich) Himmler, que era o chefe supremo da SS (Schutztaffel, a organização paramilitar de proteção a Hitler) e depois foi mantenedor dos campos de concentração”, explica Anita.
“Ele era do alto escalão, diretamente ligado a Hitler, e estava interessado em saber os detalhes de como a Gestapo estava se comportando frente a Olga, o que estavam fazendo com ela.”
Um pesquisador alemão procurou a filha de Olga e Prestes para comentar sobre a abertura dos documentos-troféus. Como historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, hoje com 81 anos, aposentada e trabalhando em um livro de memória, Anita sabia que teria uma tarefa típica de um pesquisador.
Teria de catalogar em fichas tudo o que dizia respeito à sua mãe nos arquivos da Gestapo. Mas esta era uma tarefa familiar. Em 2001, ela e sua tia Lygia publicaram Anos Tormentosos (Paz e Terra), uma obra em três volumes com a correspondência trocada entre seu pai e sua mãe, além de outras cartas de Prestes para os familiares.
Os documentos, todos escritos em alemão, completam um quebra-cabeça antigo. O “Processo Benario”, revelado agora, forma uma imagem que Anos Tormentosos e Olga, a famosa biografia de Fernando Morais publicada pela primeira vez em 1984 pela Editora Ômega e relançada pela Companhia das Letras dez anos depois, não puderam alcançar.
“O que foi novidade, e seria para minha tia também, é esse empenho todo que os alemães tinham para que ela falasse sobre o Comintern. E a intrepidez dela, a capacidade de resistir e até morrer e não falar o que eles gostariam de saber”, afirma a historiadora.
Olga Benario e Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, tiveram uma relação amorosa fulminante. Em dezembro de 1934, os dois se conheceram em Moscou, ela a serviço da Internacional Comunista (o Comintern) e incumbida de cuidar da segurança dele. Para garantir a proteção ao comandante da Coluna Prestes, famosa mundialmente, os dois fingiram ser um casal.
Mas na viagem repleta de percalços de volta ao Brasil, em abril de 1935, acabaram se apaixonando e se tornaram marido e mulher. Do primeiro encontro até a prisão no Rio, em março de 1936, passaram-se um ano, três meses e vinte e dois dias. Ao ser presa, Olga estava grávida de um mês de Anita.
Procurada pelo Terceiro Reich, Olga Benario foi extraditada pelo governo brasileiro em 23 de setembro de 1936, aos sete meses de gravidez. Getúlio Vargas, à época, mantinha relações muito próximas com os nazistas. Para Anita, o ex-presidente deportou a mãe como forma de castigar Prestes. “Seria muito escandaloso submetê-lo à tortura física, como fez com outros. Então a forma de atingi-lo foi deportar minha mãe para a Alemanha.”
Submetida à “prisão preventiva”, expediente nazista para forçar pessoas a delatarem os companheiros, Olga ficou detida cerca de 2 mil dias em prisões alemãs. Foi submetida a torturas, castigos físicos e privações. Como ela não apresentava certidão de casamento, porque Olga e Prestes vieram ao Brasil como clandestinos, o governo alemão alegava que ela não tinha cidadania brasileira.
Nesse período, uma campanha internacional lutava pela libertação de Olga. Era articulada por Leocadia e Lygia Prestes, mãe e irmã de Luiz Carlos Prestes, respectivamente. Essa rede de apoiadores foi fundamental para assegurar a troca de correspondências entre marido e mulher, ambos presos, e depois a sobrevivência do bebê e da menina Anita. Como a Gestapo exigia que todas as cartas fossem escritas em alemão, os apoiadores se revezavam para traduzi-las.
Prestes e Olga, no dia de sua prisão [março de 1936] |
Em dezembro de 1937, um memorando da Polícia Secreta de Estado alemã, encaminhado a Himmler, já indicava que Olga seria enviada a um campo de concentração. A máquina do Terceiro Reich esperava apenas o tempo para que Anita pudesse ser tirada dos cuidados da mãe, o que veio a acontecer em 21 de janeiro do ano seguinte.
Olga não pôde se despedir da filha. “Considerando sua astúcia política e que não se tratava de alguém confiável, podia-se supor que ela enviasse da prisão mensagem ao exterior nas vestimentas da criança”, justificou o diretor da prisão.
Um documento da Gestapo indica ainda que houve monitoramento de todos os movimentos de Leocadia, Lygia e o advogado que foram buscar Anita na prisão e a levaram a Berlim e depois a Paris. Já Olga passou por dois campos de concentração, o primeiro em Lichtenburg e, depois, o de Ravensbrück. As formas de comunicação foram se tornando cada vez mais escassas, espaçadas e até censuradas.
O nazismo impediu que o livro Iracema, de José de Alencar, fosse entregue a ela por descrever “a vida de luta de um combatente brasileiro pela liberdade e difama em grande medida a forma de governo ordeira”. Três países ofereceram asilo a Olga, negados pelos alemães.
Anita evita romancear a história de Olga. Prefere tomar de empréstimo as narrativas do biógrafo Fernando Morais e da escritora e jornalista Sarah Helm.
Nos campos de concentração, Olga foi impedida de se corresponder com Prestes ou qualquer outro familiar. Era a forma de obrigá-la a revelar algo sobre suas atividades no Comintern. Em suas cartas, que acabaram não chegando ao destino, ela questionava sobre Prestes, a filha aos cuidados da avó e da tia dele, e sobre o fim trágico que se aproximava.
“Anita deve poder ser criança de verdade e também ficar um pouco forte, pois quantos golpes e pancadas ainda a aguardam na vida; e quem sabe se estaremos presentes para protegê-la?”, escreveu ela ao marido.
A mãe jamais voltaria a ver a filha. Um memorando de 30 de abril de 1942, do Escritório Central de Segurança do Reich, chamava de falecimento por “insuficiência cardíaca por oclusão intestinal e peritonite” o assassinato de Olga Benario. Prestes e a família só souberam da morte dela em 1945. E Anita, algum tempo depois.
Por volta dos 5 anos, no México, ela já sabia que seus pais estavam presos por serem comunistas e lutarem contra o fascismo. “É preciso mostrar nos dias de hoje o perigo da repetição do fascismo. É importante que as novas gerações conheçam esses revolucionários e se inspirem nessas lutas, inclusive para resistir à reação que está aí hoje”, afirma.
FONTE: Carta Capital
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