Por Miguel Urbano Rodrigues
Agatha Christie (1890/1978) foi uma escritora importante?
Sim, muito importante. Dos seus livros, traduzidos em 100 idiomas,
foram vendidos mais de 4 mil milhões de exemplares. Um total de vendas
assombroso, somente superado pela Bíblia e pelas obras de Shakespeare.
Mas porventura foi uma grande figura da literatura mundial? Não.
Sobre ela foram escritos dezenas de livros, quase todos elogiosos.
Uma das suas peças de teatro, A Ratoeira, permaneceu no cartaz no Reino
Unido durante mais de uma década. A Rainha Elisabeth, sua grande
admiradora, atribuiu-lhe o título de Lady do Império.
Mas nunca obteve o apreço da crítica literária séria.
Como explicar o seu êxito comercial que ultrapassa o de qualquer
outro autor de romances policiais, de Conan Doyle a Georges Simenon?
A leitura da sua autobiografia* ajudou-me no esforço para encontrar uma resposta.
Agatha nasceu numa mansão da estância balnear de Torquay. O pai era
um americano britanizado. Não trabalhava, como era habitual na época
vitoriana para quem vivia dos rendimentos.
Nas memórias a escritora recorda uma infância feliz numa família
abastada da alta classe média. Quando no final do século XIX diminuíram
os dinheiros que chegavam dos EUA, os pais alugaram a casa de Torquay e
foram passar um ano no sul de França e depois na Bretanha, onde o custo
de vida era menor.
«Uma das coisas que, penso, sentiria mais - escreveu na velhice – se fosse criança nos dias de hoje, seria a ausência de criados».
As referências à criadagem da época, que ela admirava pelo «orgulho profissional», são abundantes.
Agatha nunca frequentou uma escola. Estudou em casa e em pensionatos franceses, sobretudo música e canto.
Casou aos 22 anos, em l912, com Archibald Christie, um oficial da
Força Aérea, que, finda a I Guerra Mundial, se tornou corretor da City
londrina. Amou intensamente o companheiro, viajou pelo mundo com ele,
mas após 14 anos de um casamento harmonioso (nasceu uma filha em 1919), o
marido apaixonou-se por uma amiga e pediu o divórcio. A escritora conta
que olhou para ele e percebeu que afinal era «um desconhecido». Agatha,
angustiada, desapareceu durante dias, sofreu horrores, teve uma crise
de amnésia.
O seu primeiro livro, um policial, foi escrito durante a guerra mas,
recusado por seis editoras, somente foi publicado em 1920. Passou
praticamente despercebido.
Durante anos Agatha resistiu a assumir-se como escritora, embora
publicasse romances com alguma frequência. O êxito tardou. Para ele
contribuiu a personagem que criou, Hercule Poirot, um excêntrico
detetive belga muito vaidoso.
A publicação em folhetins dos primeiros livros e a adaptação ao
teatro de outros foi para ela uma importante fonte de recursos. No
início da II Guerra Mundial já era a escritora mais lida da Inglaterra e
nos EUA a sua popularidade era enorme.
Muito inteligente, sensível, com uma imaginação prodigiosa, sentiu
sempre dificuldade em se expressar em público, mas cativava as pessoas,
era uma comunicadora superdotada.
«Sou muitas coisas - assim se retratou na Autobiografia -
bem-disposta, exuberante, distraída, esquecida, tímida, afetuosa,
completamente desprovida de autoconfiança, moderadamente altruísta (…)
Gosto de sol, de maçãs, de quase todo o tipo de música, de comboios, de
quebra-cabeças numéricos, e de tudo o que tenha a ver com números, de
nadar no mar, de silêncio, de dormir, de sonhar, de comer, do cheiro de
café, de lírios, da maioria dos cães e de ir ao teatro».
Essa confidência não ajuda muito a avaliar a sua personalidade complexa, contraditória, desconcertante.
Nas suas viagens por todos os continentes acumulou uma soma
impressionante de conhecimentos. Mas não os transformou numa cultura
extensiva, integral. Não tentou sequer esse desafio.
Nos seus livros o leitor não encontra um pensamento estruturado, uma
meditação profunda sobre a existência e a História dos países do Médio
Oriente onde viveu largos anos.
Ciente das suas limitações, é uma escritora de espumas. Criou um estilo, mas cultiva o superficial, a banalidade.
O tratamento da temática do quotidiano é em alguns escritores de uma
grande riqueza. Em Georges Simenon, por exemplo. Nos seus romances, ele
retrata admiravelmente les petits gens, as porteiras de Paris, os
taberneiros, as prostitutas, as velhas solteironas, os clochards do
Sena. O comissário Maigret é a antítese do Poirot de Agatha.
Perguntaram um dia a André Gide quem era na sua opinião o maior
escritor da França. A sua resposta desconcertou o entrevistador: Georges
Simenon. Exagerou, mas o criador de Maigret atravessou as portas da
grande literatura; a mãe de Poirot não.
A gente de baixo não merece atenção especial de Agatha. Não é por
snobismo que a esquece. Concentra a sua atenção na sua gente. Com a
exceção dos romances de Miss Marple, a velha senhora de uma aldeia
inglesa, e de Tommy e Tupence, escolhe as personagens na aristocracia,
na gentry britânica, na alta burguesia, no mundo das artes.
Diz ter sido inspirada por Conan Doyle. Mas um abismo intransponível separa Poirot de Sherlock Holmes.
Os seus livros estão infestados de estereótipos e de lugares comuns,
de disparates. É categórica na afirmação de que a amizade entre homens e
mulheres lhe aparece como um absurdo. Sofreu muito durante as duas
guerras. Mas concluiu que «vencer uma guerra é tão desastroso como
perdê-la». Não hesitou em confessar que «o melhor de escrever naquele
tempo é que eu relacionava o trabalho diretamente com dinheiro».
Cultiva com requinte o suspense. Mas a sua técnica faz dela, para alguns críticos, uma «escritora batoteira». Porquê?
Agatha lembra que gostou sempre de abrir «pistas falsas», para
enganar o leitor. Mas oculta até às últimas páginas informações
indispensáveis para a identificação do criminoso. Em alguns casos,
depois de matar várias pessoas, este só aparece quase no final.
O happy end, talvez para atenuar o choque inerente à violência do
tema, é frequente nos seus livros, sobretudo a relação amorosa entre
personagens secundárias.
As viagens da juventude e as prolongadas estadas com o segundo
marido no Iraque contribuíram para o êxito de alguns dos seus romances.
A pedido de um amigo, escreveu aliás um romance policial cuja ação se situa no Egipto faraónico.
Mas os leitores não encontram nesses livros algo que possa revelar um interesse profundo da autora – sequer interesse - pelas culturas da Assíria, da Suméria, ou do vale do Nilo no tempo do último Ramsés.
Na Autobiografia, iniciada em 1950 e concluída em 1965, três quartos
são dedicados à infância, à adolescência, à juventude, ao convívio com o
primeiro marido. Os 48 anos vividos com Max Mallowan, o segundo marido,
um eminente arqueólogo, merecem-lhe menos atenção. A desproporção choca
o leitor.
***
Agatha Christie somente é concebível na Inglaterra do seu tempo.
Como mulher e escritora foi totalmente inglesa, inimaginável noutro
país, noutro século.
Mas escreveu para milhões de não ingleses, foi por eles admirada como pelos seus compatriotas.
Como compreender, como explicar o seu imenso, surpreendente êxito literário?
Creio que para ele foi determinante ir ao encontro do que é comum no
«gosto» da esmagadora maioria dos leitores de qualquer nacionalidade.
Ela escreveu o que as pessoas gostam que lhes digam.
Agatha faz-me pensar nas audiências enormes das telenovelas, na
abertura à mediocridade. Penso também no êxito dos comentadores
políticos da televisão cujas opiniões ofendem a inteligência.
Obviamente que Aristóteles ou Einstein não poderiam inspirar ao homo
sapiens contemporâneo o interesse despertado pelos livros de Agatha
Christie.
Autobiografia, Agatha Christie, 900 páginas, Editora ASA, Lisboa,2011
Autobiografia, Agatha Christie, 900 páginas, Editora ASA, Lisboa,2011
FONTE: ODiario.Info
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