quarta-feira, 22 de julho de 2015

Luiz Carlos de Freitas: ''A lógica empresarial no ensino desmoraliza o professor''

Especialista critica a visão empresarial da Educação e comenta os rumos que a política educacional brasileira está tomando

 Elisa Meirelles (elisa.meirelles@fvc.org.br) (texto e edição)

Luiz Carlos de Freitas Pós-doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista nas áreas de Avaliação da Aprendizagem e de Sistemas.

A recente divulgação do documento Pátria Educadora: A Qualificação do Ensino Básico como Obra de Construção Nacional reacendeu o debate sobre as concepções de ensino que deveriam nortear a rede pública. Preparado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), o texto - que ambiciona materializar o lema do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff - traz orientações divergentes em relação ao Plano Nacional de Educação (PNE), aponta Luiz Carlos de Freitas, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na opinião do especialista, que há mais de 20 anos pesquisa avaliações e políticas públicas educacionais no país, a proposta é pautada por uma visão empresarial da Educação que desmoraliza os professores e aumenta a segregação escolar. Em entrevista a NOVA ESCOLA, Freitas detalha a crítica e comenta os rumos que a política educacional brasileira está tomando.

O documento da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) considera as discussões que têm ocorrido no campo da Educação?

 
LUIZ CARLOS DE FREITAS Não. O texto ignora todo o debate da Conferência Nacional de Educação (Conae), da mesma forma que o governo ignorou o próprio Ministério da Educação (MEC), remetendo a elaboração da política educacional para a SAE. Que ela participasse de um esforço conjunto com outras entidades seria compreensível, mas, ao chamar para si a liderança e a orientação da política educacional, ela exclui quem costumeiramente participa desses esforços.

O senhor afirma que o texto da SAE é pautado pela lógica empresarial. O que isso significa? 

 
FREITAS Significa, por exemplo, imaginar que, se inserirmos as escolas públicas no mercado, a concorrência se instala e o "produto" melhora. Ou propor que o pagamento dos envolvidos passe a ser feito com base na produção. Isso não funcionou em nenhum lugar do mundo. Note: já foi experimentado à exaustão e não deu resultados significativos. Se você colocar um empresário para pensar a Educação, é natural que ele responda com os recursos teóricos que tem. Mas o debate sobre esse assunto exige profissionais específicos.

O texto defende um ensino baseado em "um modelo de desenvolvimento produtivista, capacitador e democratizante". Qual concepção de Educação está por trás dessa visão? 

 
FREITAS Um dos grandes problemas das reformas educacionais contemporâneas, em especial dessas baseadas em princípios empresariais, é a ausência de discussão e definição do que entendemos por uma "boa Educação". A questão está extremamente distorcida, sendo vista como sinônimo de notas altas em testes. Não existe nada no campo das ciências da Educação que ampare tal crença. Do ponto de vista educativo, essa não pode ser a finalidade do ensino. Temos que ir muito além de tirar notas boas nessa ou naquela disciplina. Também não podemos nos resumir apenas à elaboração de uma base nacional curricular especificando uma lista de conteúdos. Precisamos ter um projeto educativo para a formação da nossa juventude como nação. A ênfase em provas cria concorrência e gera ganhadores e perdedores, o que não é compatível com os objetivos educacionais. Ao contrário do mercado, a Educação só deve ter ganhadores.

Um dos pontos propostos pela SAE é "mudar a maneira de ensinar e aprender", separando alunos com mais ou menos dificuldade. Quais os riscos dessa medida? 

 
FREITAS Como o próprio documento diz, a ideia foi "organizar a diversidade". Para tanto, propuseram a criação de sequências de capacitação-padrão, dividindo os alunos em três trilhas de progressão: uma abaixo, uma no centro e uma acima do padrão. A escola será obrigada a lidar com os estudantes dessa forma, tendo seu bônus atrelado ao desempenho deles. Aí está o ponto: a superposição da meritocracia à organização de trilhas diferenciadas. Pensar atividades diferentes para os alunos deve ser parte do trabalho do docente, que precisa receber apoio e buscar formas de lidar com as dificuldades da turma e superá-las. Mas, em um ambiente de competição, se oficializa a segregação. Em geral, o cuidado com quem está acima ou dentro da trilha-padrão aumenta como forma de compensar, na análise do desempenho da escola, o impacto de quem está abaixo do padrão. Com isso, gera-se o efeito contrário ao desejado. É preciso ter claro que a diversificação de desempenho é um fenômeno multideterminado e não há uma receita única para ele.

O texto sugere também que o país foque esforços em determinadas disciplinas, em detrimento de outras. Quais os impactos dessa mudança para a garantia do direito de todos à Educação? 

 
FREITAS O impacto nos estudantes é a sonegação de formação. A mudança, se efetivada, produzirá um estreitamento curricular com foco em Língua Portuguesa, Ciências e Matemática. No entanto, os países hoje estão carentes de inovação. Sem inovação, a economia não vira, as empresas não se mantêm no mercado. É vital, portanto, que haja um equilíbrio curricular, pois as artes e o desenvolvimento corporal são componentes fundamentais na produção da criatividade. E, sem criatividade, não há inovação.

É possível dizer para qual modelo de Educação estamos caminhando? 

 
FREITAS Caminhamos para o modelo empresarial na Educação, com direito à privatização tanto por vouchers (espécie de carta de crédito fornecida pelo governo para pagar a escola) como por concessão de gestão - ou seja, por meio de terceirização. Isso significa maior segregação escolar e risco às populações mais pobres e às que necessitam de cuidados especiais. Estamos nos aproximando de políticas que, em nome da valorização do professor, vão - de fato - desmoralizá-lo com base em avaliações, processos de certificação e pagamento de bônus, combinado com um intenso apostilamento da prática docente. Isso conduzirá a uma desqualificação do educador. As repercussões sobre a Educação Infantil vão se fazer sentir na forma de uma escolarização antecipada. Isso é o que se pode notar nos países que estão se valendo dessas políticas empresariais. Não é previsão, é o que as pesquisas mostram hoje nesses países. O documento da SAE é a oficialização disso tudo. Não é um texto para "ser otimizado", mas rejeitado. Ele não está baseado em pesquisa consistente e sequer traz uma bibliografia.

O que pode ser feito diante desse cenário?

 
FREITAS A nova proposta chega às entidades da área educacional em um mau momento, em que estão desarticuladas e sem capacidade de resposta. Se a concepção de Pátria Educadora da SAE se concretizar, acredito que não vamos superá-la por meio das entidades - elas poderão ajudar, claro -, mas com a participação das escolas, à medida que as políticas começarem a ser implementadas e a produzir efeitos. Foi assim nos Estados Unidos e no Chile. Os pais sentirão muito rapidamente os efeitos nefastos sobre os filhos. Os estudantes também. Em relação aos professores, o efeito será dúbio: parte reagirá mal, mas parte vai deixar-se levar pelo bônus salarial para somente depois acordar. Os gestores serão os últimos, dada a condição deles dentro do sistema. Vamos superar o cenário atual com ajuda de pais, estudantes, professores e gestores - nessa ordem.

FONTE: Revista Nova Escola 

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