terça-feira, 11 de setembro de 2012

ALLENDE PRESENTE!!!!!!!!!!!!!!!!!!




Allende presente!!!

11 de setembro de 1973: com o apoio dos Estados Unidos, integrantes das forças armadas do Chile, comandados por Augusto Pinochet, instalam através de um golpe de Estado a ditadura militar que duraria 17 anos.

Ainda nesse dia, o presidente eleito de forma democrática pelos cidadãos chilenos, Salvador Allende, morre no bombardeio ao Palácio La Moneda, sede do governo.

Por uma América Latina livre de governos golpistas!
Viva a soberania dos povos latino-americanos!!!


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Viajar sem sair de casa

World Wonders Project

CLIQUE NO LINK ABAIXO E BOA VIAGEM!!!!

http://www.google.com/intl/es/culturalinstitute/worldwonders/


Médicos que não querem conversa



POR LUIZ ROBERTO LONDRES

A anamnese, conversa inicial com o paciente, está em desuso, mesmo permitindo até 90% dos diagnósticos. Na meu tempo, os exames eram para confirmação


Durante minha formação, tive o privilégio de conviver com Danilo Perestrello, autor de "A Medicina da Pessoa" (Atheneu). Vinham ao consultório não só pessoas doentes, mas pessoas que se sentiam doentes.

Um dia, em conversa com meu pai, cardiologista cujos passos segui, comentei que metade dos meus atendimentos eram de pessoas sem doença física. Ele retrucou: "Só metade? Você deve estar adoecendo alguns".

Em inúmeros casos, a simples conversa resolvia a "doença". Muitos saíam da consulta sem solicitação de exames ou receitas. Em nova consulta, estavam totalmente "curados".

Na medicina atual, aos poucos a pessoa foi reduzida à condição de doente. Não mais interessava sua vida, história, personalidade ou situação psicológica e social, apenas os sintomas no momento da consulta. A anamnese, entrevista inicial com o paciente, passou a se limitar aos dados da doença apresentada. A alteração biológica passa a ser tudo.

Na medicina atual, não se leva em conta características específicas de cada paciente, que podem determinar se o tratamento indicado deve ser administrado. Um exemplo gritante é aplicação de cirurgias ou tratamentos agressivos, tantas vezes extremamente dispendiosos, a idosos que provavelmente faleceriam de outras causas antes que a doença em questão levasse ao óbito.

Médicos se sentem oprimidos em relação ao tempo que podem dispensar a uma consulta e perderam o espírito crítico em relação ao valor da anamnese -que, segundo Howard Barrows, da Universidade de Southern Illinois, dá ao bom médico 90% de chance de diagnóstico certo.

Deixamos de lado os princípios médicos para atender volume. Recém-formado, fui colocado em um ambulatório com uma lista de 40 pacientes para serem atendidos em quatro horas. Atendi como deveria e, ao final do meu tempo, havia atendido por volta de 15. No dia seguinte, fui chamado à diretoria do hospital, que questionava minha conduta. Médicos não têm de atender filas, têm de atender pacientes.

Na nossa época de estudantes, aprendíamos que exames serviam para confirmar ou não o diagnóstico e quantificar alguns parâmetros. Hoje, isso foi esquecido. Além disso, médicos se fiam em laudos de colegas que não conhecem, sem avaliar o grau de sua capacidade médica.

Com esse reducionismo, o médico é cada vez mais dispensável, podendo ser substituído por computadores.


LUIZ ROBERTO LONDRES, 71, médico e mestre em filosofia pela PUC-RJ, é presidente da Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro

FONTE: Folha de São Paulo, 9 de setembro de 2012.


sábado, 8 de setembro de 2012

Os conteúdos escolares e a ideologia dominante



Por Cátia Lapeiro

É uma opinião largamente difundida pelo sistema capitalista que a educação seja algo de apolítico, ou, como se costuma frequentemente dizer, seja «neutra». Esta afirmação reflete uma concepção de educação que prescinde dos elementos sociológicos que a condicionam, e cria o conceito de «educação pela educação», naquilo que é um espaço social. Ao contrário, se considerarmos a educação como determinada pela forma social dentro da qual se constituem as suas finalidades, e na qual deve ser realizada, este conceito acha-se imediatamente envolvido nos contrastes reais da sociedade, ou seja, inserido no contexto da luta de classes. A educação preenche um lugar insubstituível nas sociedades humanas, na construção da sua história e na estruturação das relações entre os homens. Por isso, a educação de massas é um dos mais potentes instrumentos de controle das mesmas, como também pode ser um poderoso instrumento para a sua libertação. A edificação da consciência humana está profundamente interligada com a educação e a forma como se aprende e com o que se aprende. Assim, dominar sistemas educativos no quadro actual do sistema capitalista é um enorme passo para a consolidação do seu poder. As teses marxistas fundamentais que dizem respeito à educação baseiam-se no seu caráter de classe, ou seja, na ideia de que a educação é um instrumento da classe dominante ao serviço dos seus interesses de classe.

A questão da educação constituída para perpetuar o sistema não se prende só com a sua clara e cada vez maior elitização, que afasta per si os filhos dos trabalhadores dos mais elevados graus de ensino. Este é um dos fatores fundamentais, mas a utilização da Educação pelo capitalismo consegue ir mais longe. E a temática deste texto prende-se sobretudo com os conteúdos escolares. Este é um tema que pode ser muito abrangente, do ponto de vista do tipo de conteúdos e da forma como podem ser incutidos. Apenas serão dados alguns exemplos, dando preponderância aos manuais escolares, que são dos elementos mais paradigmáticos de transmissão de conteúdos; assim como ao ensino da História, tendo em conta o seu papel de relevo para a formação de representações sociais e concepções do mundo.

São diversos os recursos didáticos disponíveis em cada escola para apoio à prática letiva dos docentes, mas nenhum deles conseguiu a centralidade e o destaque no quotidiano escolar, que têm os manuais escolares, ao longo de várias gerações. O manual escolar transformou-se num dos recursos didáticos mais utilizados, constituindo suporte ao trabalho do professor, delineando a natureza da sua atividade, e tendo-se tornado, em alguns casos, um substituto do próprio programa da disciplina. Corrêa (1), refere-se aos manuais escolares como configurando um objeto em circulação, sendo por isso veículos de circulação de ideias que traduzem valores e comportamentos que alguns desejam que sejam ensinados. E vai mais longe, falando mesmo numa política do manual escolar, que visa a formação das massas populares com base em conhecimentos que alguns acham que deveriam ou não ter acesso, significando assim o controle sobre os conteúdos escolares e, de certo modo, o controle sobre as práticas escolares e a produção dos próprios manuais.

Uma das questões que se coloca é a seletividade do conhecimento na Escola. A forma como, entre todo um vasto campo possível de passado e presente, se escolheram como importantes determinados significados e práticas, enquanto outros são negligenciados e excluídos. E muitas vezes, alguns desses significados são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que fundamentam a cultura dominante. Outra das questões é a estrutura constitutiva da maioria dos currículos escolares centrar-se em torno do consenso. Poucas são as tentativas sérias de lidar com o conflito, sendo que em vez disso «investiga-se» uma ideologia do consenso que revela-se pouco semelhante com os significados e contradições complexas que envolvem o controlo e a organização da vida social. Deste modo, a chamada «tradição selectiva» prescreve que não se ensine, ou irá seletivamente reinterpretar a verdadeira história da classe operária ou a história da mulher (por exemplo). A Escola, a pretexto de ser neutra, não aborda muitas vezes questões que estão na base da existência das classes dominadas: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais. Também ocorre que considerações sobre a justiça da vida social surjam progressivamente despolitizadas e transformadas em enigmas supostamente «neutros». Como disse Marx (1843), não se devem aceitar as ilusões de uma época, as próprias abordagens das participantes fundamentadas no senso comum sobre as atividades intelectuais e programáticas, mas sim o investigador deve «situar» tais atividades no campo mais vasto do conflito econômico, ideológico e social.

Para Silva (2), os discursos escolares sobre a história, estão «embrenhados» de uma concepção de historicidade onde o principal nexo interpretativo está nos encadeamentos cronológicos, sem que seja atribuída qualquer importância aos intérpretes, às relações de poder que sustentam o seu trabalho, e aos problemas construídos pelo processo de conhecimento. Neste modo de conceber a aprendizagem não há espaço para considerar o estudante como um agente capaz de propor questões ou dispor conhecimento a partir da sua própria experiência social. Stephanou (3), aborda três características do conhecimento histórico contemplado nos currículos, que se podem eventualmente aplicar aos currículos portugueses: a) o fato de deter-se sobre fatos passados, acentuando a atuação de personagens especiais, cujas intenções, propósitos e vontade são propulsores dos eventos históricos destacados nos cenários das diferentes épocas. Aparece claramente uma concepção de sujeito autônomo nestas formulações; b) o destaque dado aos acontecimentos oficiais; c) a apresentação dos fatos por meio da sucessão cronológica, dispostos linearmente, convergindo para a noção de evolução e de relações de causa-efeito.

Podemos dizer que o caráter evolutivo da História faz parte de uma leitura humana do real, e não de um dado concreto e objetivo. O social é movimento, e essa noção constitui um critério fundamental da explicação científica, uma vez que permite desnaturalizar os fenômenos históricos e sociais, demonstrando que não são imutáveis, e não se repetem(4). Uma suposição básica parece ser a de que o conflito entre grupos de pessoas é inerente e fundamentalmente mau, e que nos deveríamos esforçar para o eliminar dentro do quadro estabelecido das instituições, em vez de ver o conflito e a contradição como «forças propulsoras» da sociedade, enquadrado na luta de classes.

Passemos a alguns exemplos concretos. Olhando para o conjunto de manuais escolares de História do 9.º ano, que mais foram utilizados entre 2005 e 2008, em escolas do distrito de Coimbra, podemos retirar várias conclusões, somente analisando os conteúdos da abordagem ao regime fascista em Portugal, à Guerra Colonial e à Revolução de Abril, momentos tão relevantes na história do nosso país.

Comecemos pelo tema da Guerra Colonial. Um dos exemplos mais flagrantes reporta-se à contextualização da Guerra, nomeadamente a referência aos seus antecedentes ou causas. O ponto de vista dos países colonizados que é apresentado nesta categoria é na maioria das vezes apenas a descrição do surgimento dos movimentos independentistas. Ou mesmo os confrontos e ataques que surgiram nas colônias. Pouco relevadas são as causas destes confrontos ou as causas do surgimento de movimentos independentistas organizados. Quase nenhum manual se refere às características das condições de vida dos povos colonizados, à forma como foram explorados e quiseram resistir, como razão para o desencadeamento dos confrontos. Tal confirma-se igualmente quando analisamos a categoria das consequências da Guerra Colonial. No que concerne às consequências para os países colonizados, é claramente dada menos relevância aos custos humanos dos países colonizados. Para além dos custos humanos, em vários manuais, a única consequência que aparece refere-se à construção de infra-estruturas nos países colonizados que contribuiriam para o desenvolvimento das colônias. Poderíamos dizer ainda, que o ônus do desencadeamento da Guerra Colonial aparenta ser colocado várias vezes nos movimentos independentistas. Vários manuais deixam claro que o início da guerra pertence aos movimentos independentistas, talvez esquecendo que esta é o desencadeamento de várias causas. É aqui patente a confirmação do que dizia Apple (5), quando se referia à seletividade do conhecimento na Escola, que se reflete nos currículos e manuais escolares. Ou seja, a forma como se escolhem determinados significados e práticas, enquanto outros são negligenciados e excluídos. A própria caracterização dos movimentos independentistas reflete a opção por um determinado tipo: uma caracterização intimamente ligada a conceitos de caráter mais agressivo – a maioria das vezes são caracterizados como guerrilheiros, e mesmo como atacantes e rebeldes.

Quando é analisada a caracterização de Portugal e das políticas do regime fascista do ponto de vista econômico, é de referir que é dado destaque ao atraso econômico e agrícola, mas são os Planos de Fomento Econômico que merecem um maior destaque na maioria dos manuais. Pouco ou nada é referido acerca da política monopolista, apenas surgindo uma componente num único manual escolar, que poderia pressupor o monopolismo – «favorecimento dos grandes industriais e banqueiros». Quando analisamos o chamado «marcelismo», do ponto de vista econômico, apenas são feitas referências, ainda que em poucos manuais, a um incentivo à industrialização e abertura da economia ao estrangeiro, referenciando apenas elementos positivos do contributo deste governo para a economia.

Do ponto de vista social, durante o governo de Salazar, é claramente destacada a questão da emigração e do êxodo rural, em detrimento da descrição de outros aspectos sociais. Vários aspectos sociais, que são certamente fatores deste fenômeno migratório, são na maioria dos manuais apresentados genericamente como «más condições de vida que levaram à emigração ou ao êxodo rural». Ou seja, os manuais escolares referenciam várias componentes de aspectos sociais – os baixos salários, a falta de instrução ou a falta de condições de habitabilidade – mas estas referências são breves e muito pouco descritas, seja no texto genérico, seja nos documentos apresentados. A descrição das políticas sociais durante o «marcelismo» resume-se à Reforma do Ensino e ao alargamento da Providência Social. É evidente que dos aspectos mais referenciados com conotação negativa, e descritos como fatores de descontentamento relativamente ao governo de Salazar, são os ataques às liberdades democráticas, para além da Guerra Colonial. A descrição das questões sociais é pouca, comparativamente a este aspecto e aos aspectos da economia. No que diz respeito ao governo de Marcelo Caetano, a generalidade dos manuais refere-se a aspectos de abertura do regime do ponto de vista das liberdades democráticas, sendo várias as componentes encontradas – «regresso de alguns exilados políticos»; «abrandamento da censura»; «abrandamento da repressão»; ou «organizações políticas foram legalizadas para ir às urnas».

Num enquadramento que se procura fazer do ponto de vista internacional, nomeadamente falando das pressões da ONU ou das questões da II Guerra Mundial, não deixa de ser questionável que apenas em dois manuais escolares seja feita referência à relação de Salazar com os regimes fascistas de Hitler e Mussolini.

A caracterização da oposição ao regime está muito centralizada na questão da participação nas eleições, como forma de protesto contra regime. No entanto, ações concretas de combate ao regime fascista que ocorreram e tiverem uma importância fundamental, como as manifestações e greves de trabalhadores e estudantes, são muito pouco mencionadas. Este fato pode fazer-nos colocar a hipótese que Snyders (6) colocou: a escola não aborda muitas vezes questões que estão na base da existência das classes dominadas, como a luta geral dos trabalhadores. Trata-se de qualquer modo de mais um exemplo de seletividade. É também evidente a pessoalização da oposição. Quando se fala na ação dos opositores existe uma tendência para centrar a caracterização só em determinadas personagens (isto é claramente evidente com o general Humberto Delgado). Confirma-se aqui uma das características apontadas por vários autores acerca dos programas e currículos de história: a centralização dos processos históricos em «heróis», individuais. É evidente que com isto está a ser negligenciado o papel do «coletivo» na maioria dos avanços históricos das sociedades ao longo dos tempos.

A caracterização do processo revolucionário do 25 de Abril, na generalidade dos manuais escolares, reflete claramente uma das características apontadas por Stephanou e por Felgueiras (7) aos currículos e programas de História: a apresentação de fatos por sucessão cronológica, dispostos linearmente, que normalmente é vista como um todo contínuo, mas que é várias vezes pobre em conteúdo e na descrição. Relativamente ao desencadeamento da Revolução, o enfoque é praticamente dado apenas ao golpe militar protagonizado pelo MFA. Maioria dos manuais referem o apoio popular, mas muito pouco descrevem o que foi este contributo fundamental e determinante.

Relativamente às consequências da Revolução, são focados os aspectos essenciais das conquistas na maioria dos manuais, mas na generalidade das vezes nada é aprofundado. Em todos os casos, nomeadamente nas conquistas sociais e das liberdades democráticas, apenas é designada a conquista, não sendo descrito mais nada, nem como a conquista se efetivou na vida da população. No quadro da importância que teve a Revolução de Abril para a consagração das mais vastas liberdades democráticas e direitos, a referência nos manuais escolares a estes direitos e à sua concretização é quase nenhuma, sendo dada mais ênfase à instabilidade político-social no pós- 25 de Abril, do que à descrição da efetivação dos direitos consagrados.

Muitos outros exemplos podiam ser dados neste plano, desde as descrições feitas da União Soviética ou a descrição do que foi a II Guerra Mundial e os seus principais atores, ou mesmo conteúdos de outras disciplinas. Podíamos enveredar pelo conteúdo dos exames nacionais, aos quais hoje a formação está «agarrada». Ou poderíamos entrar nos conteúdos dados nas diversas áreas do Ensino Superior, claramente perpetuando modelos únicos e que ajudam a perpetuar a perspectiva do sistema.

Este é um tema muito vasto e que nos dias de hoje continua a estar cada vez mais presente na vida das escolas, de tal modo «entranhado» que é preocupante pensarmos nas suas consequências. No sistema capitalista, o uso da escola como aparelho ideológico e tentando de forma «institucionalizada» moldar consciências e perspectivas do mundo e da sociedade é uma arma poderosa que a classe dominante tem nas mãos. A vida, as suas condições, o trabalho de consciencialização feito, a organização da resistência, será sem dúvida o maior contributo que se poderá dar para a alteração desta situação. Num sistema diferente, na democracia avançada, no socialismo, irá florescer a educação e os seus conteúdos como um fator de libertação e emancipação do Homem, como impulsionadora do progresso. E tal teria também um profundo cunho ideológico, sem dúvida…, mas que estaria do outro lado da barricada.

Notas

(1) Corrêa, Rosa Lydia Teixeira (2000), «O livro escolar como fonte de pesquisa em História da Educação», Cadernos CEDES, 20, n.º 52.
(4) Idem.
(5) Apple, Michael W. (1999), «Ideologia e Currículo», Porto Editora, Porto.
(6) Snyders, George (1977), «Escola, Classes e lutas de classes», 1.ª ed., Moraes editores, São Paulo. 
(7) Stephanou, Maria (1998), op. cit.



quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Educação, o grande desafio brasileiro



Já é quase consensual no Brasil que a educação é na atualidade problema chave do nosso país. Não há consenso, porém, quando se trata de explicar as causas de nosso atraso na área e o modo de ajustar o sistema educacional brasileiro ao tamanho enorme do desafio que ele precisa enfrentar. Samuel Pinheiro Guimarães faz uma análise em profundidade desse tema essencial e indica soluções de emergência e de longo alcance. A seguir.
 Realidade da Educação
 Samuel Pinheiro Guimarães
Em CartaMaior
“Com a divulgação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB ficou provado que o ensino médio público no país não evoluiu em aspecto algum mantendo a mesma nota obtida em 2009, 3,4 numa escala de zero a 10”. Correio Braziliense, 19/8/12, pag. 12 
“Mas a proporção dos que atingem um nível pleno de habilidades de leitura, escrita e matemática manteve-se praticamente inalterada entre 2001 e 2011, em torno de apenas 25%. No ensino médio, só 35% dos alunos são plenamente alfabetizados. Maria Alice Setubal, Folha de São Paulo, 15/8/12, pag. A3
“A nossa prioridade é levar a educação integral para as famílias e as regiões mais pobres”. Dilma Rousseff, 20/8/12
1. A educação é extremamente importante do ponto de vista do indivíduo, da sociedade e do Estado. Sua própria existência e seus resultados diferenciam o ser humano dos demais seres vivos.
2. A educação é o conjunto de processos pelos quais se formam o cidadão, o trabalhador, o ser humano.
3. A formação do cidadão se dá pela transmissão dos valores sociais de nacionalidade, de democracia, de igualdade racial e de gênero, de tolerância religiosa, de família e comunidade, de liberdade de expressão.
4. A formação dos trabalhadores se verifica pela transmissão de conhecimento científico e técnico que habilita o indivíduo a desempenhar tarefas produtivas desde aquelas de grande complexidade, tais como a pesquisa científica, até aquelas mais simples que o trabalhador não qualificado executa.
5. A formação do ser humano se faz pela transmissão e assimilação de conhecimentos culturais, de capacidade de apreciação das artes, das manifestações culturais, da filosofia.
6. Na sociedade brasileira, vários são os veículos pelos quais se verifica o processo de educação de crianças, jovens e adultos: a escola, a família, as igrejas, a televisão, a Internet e a rua.
7. A escola se encontra em situação extremamente difícil. A qualificação média dos professores é insuficiente e precária, sendo que há uma enorme maioria de professores “leigos”, isto é, sem formação profissional adequada. Os níveis salariais dos professores são em extremo baixos o que não permite atrair para esta missão indivíduos mais qualificados e submete os professores a jornadas de trabalho estafantes. As instalações escolares se encontram muitas vezes depredadas e o ambiente de convívio nas escolas pode ser desrespeitoso, conflituoso e até violento entre alunos e professores, em decorrência, em parte, da desvalorização social dos professores. Naturalmente, esta não é a situação das escolas de classe média, mas sim das escolas que frequenta a enorme maioria das crianças e jovens brasileiros.
8. A família no Brasil tem poucas condições de transmitir às crianças e aos jovens valores sociais e informações técnicas e culturais. Cerca de 35% das famílias, 22 milhões de lares, são chefiadas por mulheres em geral de baixa renda, de escassa formação educacional e cultural e que tem de trabalhar para manter sua prole, o que as mantém afastadas de suas residências a maior parte do dia. As crianças e os jovens muitas vezes não conhecem seus pais e vivem em ambientes em que predominam habitações precárias, sem saneamento básico, com nutrição e hábitos de higiene inadequados, de grande violência familiar e até de abuso sexual, com as consequências psíquicas daí resultantes.
9. As igrejas de diferentes denominações, com honrosas exceções, difundem e perpetuam preconceitos sociais e sexuais e a desinformação científica como, por exemplo, teorias criacionistas e, às vezes, chegam a estimular o antagonismo religioso, em especial contra as religiões de origem africana. Em alguns casos, pela sua ênfase na exaltação do sucesso, simbolizado pela aquisição de riqueza, contribuem para o enraizamento do individualismo enquanto outras, com sua ênfase na salvação eterna e na aceitação da situação social de desigualdade, são essencialmente conservadoras em uma sociedade que, por suas características, requer grandes transformações.
10. A televisão, como veículo do processo educacional em seu sentido mais amplo, pode ser classificada em TV aberta e TV por assinatura. A principal questão relativa à televisão é a posição hegemônica da TV Globo e de sua rede de repetidoras.
11. A TV aberta é, acima de tudo, uma máquina de propaganda de consumo. Os programas são, em realidade, apenas os intervalos em um fluxo de propaganda que almejaria ser contínuo. Em grande parte, esta propaganda se refere a automóveis, a supermercados, a cosméticos, a bancos e a cerveja. A propaganda é altamente individualista, procurando uma nítida associação do produto ao sucesso sexual e afetivo. Os programas podem ser classificados em programas de auditório, transmissão de eventos esportivos, noticiários, novelas, filmes. Os programas de auditório exibem raridades humanas, comportamentos esdrúxulos, ridicularização de indivíduos, concursos de prêmios. A transmissão de eventos esportivos, do futebol às artes marciais, corresponde ao que os romanos designavam de circo. Os programas de noticiário dão ênfase a crimes, a casos de corrupção, a eventos esportivos.
O noticiário internacional é normalmente pautado pelas agências de notícias estrangeiras, reproduzindo seu material. O patrocínio dos noticiários é feito maciçamente por instituições financeiras o que garante razoável “proteção” contra críticas, em especial nessa época de crise e crimes financeiros. As novelas são o que há de melhor na TV aberta, garantindo um contraponto à maciça divulgação de filmes de baixa qualidade, seriados e programas estrangeiros, esmagadoramente americanos.
12. Na TV por assinatura, a que tem acesso cerca de 50 milhões de brasileiros, a programação é maciçamente de filmes americanos, com alguns canais de noticiário, entre eles a GloboNews, com todo o seu efeito sobre a formação do imaginário e a transmissão de valores e de comportamentos.
13. O brasileiro em média dedica à televisão cerca de cinco horas por dia. Há que fazer duas qualificações. Há aparelhos de televisão que ficam ligados sem que os programas estejam sendo assistidos e há pessoas que assistem efetivamente a mais de cinco horas diárias de TV. 60% das crianças e de jovens até 17 anos, antes ou ao voltar da escola, se dedicam a assistir televisão e sua média efetiva de assistência é de mais de três horas por dia.
14. A Internet, saudada em seu início como um extraordinário avanço nas comunicações, tem efeitos contraditórios, do ponto de vista educacional. De um lado, certamente propicia acesso rápido a informações as mais variadas. De outro lado, se tornou campo de atividades criminosas como a pedofilia, a xenofobia, o racismo, o antissemitismo, o tráfico de drogas etc. Além disto, do ponto de vista das crianças e dos jovens, a Internet ocupa um espaço extraordinário em seu tempo fora da escola devido a sua sedução narcísica pelas redes sociais tais como Facebook, Orkut e outras.
15. Finalmente, a rua. Nela, onde as crianças e os jovens, principalmente os mais pobres, em ambientes física e culturalmente degradados, adquirem hábitos de violência, de criminalidade, de tráfico e consumo de drogas etc. A violência na rua é a regra e ali se transmitem “valores”, que certamente não são os melhores, tais como a esperteza, a malandragem, a força, mas nenhuma informação positiva sobre cidadania, trabalho ou cultura.
16. Na concorrência com a rua, a Internet e a televisão, a escola certamente perde pela dificuldade natural do processo de aprendizado, pela atração do entretenimento fácil da TV, e do narcisismo individualista da Internet e pela desconexão entre o que se ensina na escola e a percepção de sua utilidade pelos alunos.
17. Como não há mesmo no médio prazo possibilidade razoável de modificar o padrão dos programas de televisão, o conteúdo veiculado pela Internet e o nível cultural das famílias a solução para o aperfeiçoamento do processo educativo é a adoção gradual do ensino em tempo integral.
18. A escola em tempo integral permitiria afastar a criança e o jovem da televisão, da Internet e da rua. Em segundo lugar, a própria produtividade seria afetada, pois as mães trabalhadoras estariam mais tranquilas quanto ao que ocorre com seus filhos enquanto elas trabalham. As crianças e os jovens poderiam fazer seus trabalhos escolares, adquirir a disciplina necessária ao estudo e ter na própria escola aulas de recuperação, de suporte e de reforço. Não se trata de implantar regime de horário integral apenas para as crianças e jovens fazerem esportes, ainda que isto seja importante, mas sim para algo essencial: para estudar e aprender.
19. A escola em horário integral não pode ser implementada de uma só vez em todo o Brasil devido ao seu custo e à necessidade de aperfeiçoamento e treinamento dos professores. Seria necessária a organização dessas escolas gradualmente e definir um programa de implantação com acesso democrático a todos as crianças e jovens, com preferência, mas não exclusivamente, para aqueles de menor renda, os afrodescendentes e as mulheres.
20. Naturalmente, enquanto não for definida a carreira de professor com salários correspondentes à importância de sua atividade, a escola de boa qualidade, em horário integral ou não, continuará a ser um privilégio dos brasileiros abastados.
21. O programa do Ministério da Educação de escolas em tempo integral, de sete horas por dia denominado Mais Educação, atende a um total de três milhões de alunos do ensino fundamental, isto é, do 1º ao 9º ano. Há um longo caminho a percorrer, em quantidade e qualidade, pois são 51 milhões de crianças e jovens que se encontram matriculados no ensino fundamental e médio.
22. A educação é extremamente importante para cada indivíduo e para a sociedade. O esforço de transformação do sistema educacional deverá ser acompanhado, para ter êxito, por uma política intensa de geração de empregos e, portanto, de promoção de investimentos. Cada indivíduo certamente poderá melhorar seu nível de renda caso venha a habilitar-se, venha a se educar. Para o conjunto da população, para a população como um todo, a educação isoladamente não leva à melhoria do seu nível de renda médio.
23. O nível de renda médio depende do aumento da produção; o aumento da produção depende do aumento da capacidade instalada, isto é, do número de fábricas, da extensão da área cultivada, do número de empresas de serviços etc.
24. Esta expansão de capacidade produtiva, o que acarretaria em princípio o aumento do emprego, é necessária para que as pessoas que se educam isto é, que se capacitam, venham a encontrar oportunidades de emprego, isto é, encontrem postos de trabalho onde produzir e receber um salário.
25. Caso isto não ocorra, caso a capacidade instalada permaneça igual, apenas haveria uma substituição de trabalhadores, os mais qualificados obtendo os empregos, enquanto que o número total de trabalhadores empregados e a renda média permaneceriam os mesmos. Talvez, até ocorresse um aumento do lucro das empresas na medida em que os trabalhadores, ao se tornarem mais qualificados, aumentassem sua produtividade, já que este aumento de produtividade não corresponderia necessariamente que a um aumento de seus salários.
26. Fazer crer que a educação isoladamente é o maior desafio da sociedade brasileira sem associar a educação à necessidade de aumento da capacidade instalada e do emprego contribui para evitar o debate sobre a concentração de renda e de riqueza, e a urgência cada vez maior de promover sua desconcentração, etapa indispensável para construir um verdadeiro Brasil Maior.
FONTE: Mirante

domingo, 2 de setembro de 2012

Bonde da Cultura: "Vamos derrubar o sistema"

Apresentação do Bonde da Cultura, da comunidade Jorge Turco, em Coelho Neto, no Rio de Janeiro, no VI Congresso da União da Juventude Comunista (UJC).




Como surgiu a ideia do Bonde da Cultura?
Surgiu a partir de um grupo de amigos, que inconformados juntaram poesia, música, discussão política, entre outras coisas e começaram juntos a lutar pela transformação da realidade local. Pode-se dizer que tudo começou em 2009, quando voluntariamente,  estes amigos iniciaram a militância comunitária no Morro do Jorge Turco (em Coelho Neto), onde alguns participantes do Bonde residem. Faziam trabalho cultural voluntário na biblioteca comunitária na sede de um clube chamado NOVO ORIENTE/CECINO (um antigo clube de futebol amador da década de 1960), que na época transformaram em uma espécie de Centro Cultural.
Quem compõe as letras das músicas?

Os próprios integrantes do Bonde da Cultura.


De onde vem a inspiração?

Do dia-a-dia vivido em uma sociedade capitalista. Num país onde os índices de desigualdade social afetam milhões pessoas que estão a nossa volta. Essa inspiração vem também da esperança de viver em um mundo mais justo, com a humanidade emancipada da dominação vigente. Um mundo onde o bem comum predomine. Faz-se questão de afirmar que há um caráter favelado, de resistência e que há uma veia comunista na inspiração do pessoal do Bonde, no discurso deles.


Onde e como se apresentam?

Se apresentam aonde for dado espaço, contanto que o discurso possa ser realizado na íntegra, sem restrições que limitem a expressão artística. Mas  uma vez negado o espaço nos ambientes formais de cultura, a proposta do Bonde é abri-los. A rua esta aí, é o palco da arte pública, e a arte do Bonde é pública! As universidades têm aberto as portas através de vários militantes e grupos estudantis. Mas já se apresentam em eventos políticos da esquerda, ações sociais, manifestações, aniversários, festas em favelas, morros e outros espaços que abrem as portas para o trabalho do Bonde. Enfim, onde tem luta o Bonde pode e deve estar. Mas também realizam e promovem eventos, desde 2009, que explicitam a proposta do Bonde em termos de cultura. É fomentação cultural!

Qual é o público que assiste ao Bonde?

Recentemente, o público de um vagão do Metrô Rio os assistiu, mas não tinham o convite da empresa.

No entanto, o público mais frequente tem sido universitários, militantes políticos e ativistas sociais e parte da galera do movimento Hip Hop. Mas tem-se uma boa inserção com o publico da comunidade deonde se originam os integrantes do Bonde. E atuam muito na internet através do Facebook também. Pretendem expandir os locais de sua apresentação/atuação, pois acham que a politização que levam através das músicas devem alcançar prioritariamente as massas, o povo. É uma obrigação alertá-lo e fazer com que a indignação acenda a chama revolucionária. A cultura, com suas diversas formas artísticas, é uma importantíssima arma da luta de classes.




Pinheirinho: quem ganhou com o massacre?


Sete meses depois da violenta desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), a Justiça anuncia que vai leiloar o terreno onde viviam cerca de 1.700 famílias e usar parte da verba para pagamento da dívida da empresa Selecta, do empresário e especulador financeiro Naji Nahas*, que se diz proprietária do terreno.


A Justiça, que tem uma morosidade conhecida junto à população brasileira, ago
ra se apressa e adianta a realização do leilão para criar o “fato consumado” no despejo das milhares de famílias que foram despejadas no meio do mundo, sem ter mais onde morar, a fim de comtemplar os interesses da própria Selecta e dos seus credores, onde, no final das contas, o principal beneficiado com esse desfecho é o próprio megaespeculador Naji Nahas.


* Naji Nahas é um libanês, empresário da área de especulação financeira, que já foi acusado de quebrar a bolsa de valores do Rio de Janeiro e preso na “Operação Satiagraha”, acusado de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, juntamente com o banqueiro Daniel Dantas).


As armas e as cotas: a batalha adiada da igualdade racial nas Forças Armadas


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"A Batalha dos Guararapes" (1879), de Vítor Meireles, narra a formação mítica de um Exército multirracial que lutou contra os holandeses em 1648-49
"A Batalha dos Guararapes" (1879), de Vítor Meireles, narra a formação mítica de um Exército multirracial que lutou contra os holandeses em 1648-49


Por LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO



Nas vésperas do Sete de Setembro, cabe lembrar as perspectivas sobre as Forças Armadas inscritas no "Livro Branco da Defesa Nacional" (LBDN), apresentado em junho à presidente da República e ao Congresso.

Organizado pelo ministro da Defesa, Celso Amorim, o Livro Branco constitui uma iniciativa original. Tanto na forma quanto no seu conteúdo. Faltou, na imprensa e nos meios políticos e universitários, um debate à altura das análises elaboradas no LBDN. Pela primeira vez, a reflexão sobre as Forças Armadas e a diplomacia estão associadas num documento governamental que analisa as relações de força no mundo atual.

Resta que o LBDN não aborda um problema importante -de repercussão nacional e internacional-, que Amorim ajudou a começar a resolver no Itamaraty. Problema com o qual ele e seus sucessores no atual ministério também terão que lidar: a discriminação racial não escrita que exclui negros e mulatos do alto oficialato das Três Armas.

No Itamaraty, o assunto foi abafado durante muito tempo. Entrou pela primeira vez em pauta quando o presidente Jânio Quadros, em 1961, na época da independência das colônias africanas, nomeou o escritor Raimundo Souza Dantas (1923-2002) embaixador em Gana.

Primeiro e único embaixador negro desde a Independência, Souza Dantas escreveu "África Difícil, Missão Condenada: Diário" (1965), que narra a discriminação de que foi vítima, por parte de intelectuais e diplomatas brasileiros, no seu posto na África. Quando o livro saiu, a ditadura já sufocava o debate sobre esse e outros assuntos.

Agindo como pau-mandado do colonialismo português, o Itamaraty perseguiu o então diplomata e futuro dicionarista Antônio Houaiss (1915-99). Membro da Comissão de Descolonização da ONU, Houaiss dialogava com os movimentos independentistas da África lusófona. Como narra o embaixador Ovídio de Andrade Melo, em seu livro "Recordações de um Removedor de Mofo no Itamaraty" (2009), a pedido de setores salazaristas, Houaiss foi cassado e demitido do Itamaraty, acusado de ser "inimigo de Portugal".

No entanto, cada vez que o governo abria uma embaixada na África, inclusive nos países lusófonos, já escaldados pela colaboração de Gilberto Freyre (1900-87)com o colonialismo salazarista, escancarava-se um paradoxo: como acreditar que o Brasil era uma "democracia racial" se todos os diplomatas, e até os contínuos da embaixada, eram brancos? A branquidade encenada pelos diplomatas brasileiros entravava a política do Brasil na África.

Com a redemocratização, o debate voltou à ordem do dia. Em 2002, iniciou-se o programa Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia. Implementado pelo Itamaraty, o programa concede a afrodescendentes bolsas de preparação ao concurso à carreira diplomática.

A necessidade de aproximar o rosto interno do rosto externo do país foi sublinhada pelo então presidente Fernando Henrique, em dezembro de 2001: "Precisamos ter um conjunto de diplomatas -temos poucos- que sejam o reflexo da nossa sociedade, que é muliticolorida e não tem cabimento que ela seja representada pelo mundo afora como se fosse uma sociedade branca, porque não é".

Sob a presidência de Lula, o processo se consolidou. Em julho de 2008, em Brasília, o então chanceler Celso Amorim enfatizou que a democracia é "incompatível" com a discriminação, acrescentando: "Acreditávamos que éramos uma democracia racial. Hoje sabemos que isso não é verdade".

AJUSTE Contudo, o ajuste entre o rosto interno e o rosto externo do país é longo e difícil. No último dia 18 de agosto, reportagem de Flávia Foreque na Folha revelou que, dentre as 40 novas embaixadas abertas na África, 35 têm um corpo de diplomatas inferior ao previsto. Por quê? Porque alguns itamaratecas, que se acham, evitam as embaixadas africanas, acreditando que tais postos rebaixam suas carreiras.

Celso Amorim deixou o Itamaraty e, depois de uma pausa, assumiu o ministério da Defesa. Graças à sua iniciativa, redigiu-se o "Livro Branco". Com 270 páginas, o documento contou com o aporte de vários ministérios e duas centenas de colaboradores.

De saída, o LBDN salienta as bases da geopolítica nacional: "O Brasil dá ênfase a seu entorno geopolítico imediato, constituído pela América do Sul, o Atlântico Sul e a costa ocidental da África". Mais adiante, a importância do espaço oceânico é reiterada, porquanto o Brasil é o "país com maior costa atlântica do mundo".

Citado no texto introdutório da presidente Dilma Rousseff, o pré-sal é objeto de mais quatro referências no LBDN. A posse da Zona Econômica Exclusiva de 200 milhas marítimas (onde está o pré-sal) garantida pela Convenção da ONU de 1994, que foi assinada por 152 países, é destacada.

Mas o documento também observa que nem todos países aderiram à convenção, "inclusive grandes potências", circunstância que "pode se tornar, no futuro, uma fonte de contenciosos". O que o LBDN não diz, mas está nos jornais, é que a única das "grandes potências" não aderente à convenção de 1994 é os Estados Unidos.

4ª FROTA O tom diplomático do texto evita ainda referências a uma novidade que reconfigura o Atlântico Sul, a volta da 4ª Frota americana. Estabelecida em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a 4ª Frota foi desmembrada em 1950. Em 2008, foi restabelecida para operar no Caribe e nos mares da América Central, América do Sul e África Ocidental.

Seu renascimento foi saudado pelo "Navy Times", jornal da marinha de guerra americana: "Quase 60 anos depois de ter fechado, a 4ª Frota, que conduziu a caçada aos submarinos alemães no Atlântico Sul, está de volta. Desta vez, para caçar traficantes de drogas no Caribe".

Na América Central e na América do Sul, pouca gente acreditou nessa fita da caça aos piratas do Caribe. O governo argentino discutiu o assunto com o governo americano. Mas a reação mais incisiva veio do Brasil. Respondendo a jornalistas argentinos, em setembro de 2008, o presidente Lula declarou: "Estou preocupado com a 4ª Frota americana, porque ela vai exatamente para o lugar onde nós achamos petróleo".
Tal armada de porta-aviões, cruzadores e submarinos é comandada por um ilustre oficial negro, o contra-almirante Sinclair M. Harris. Feliz coincidência para o prestígio do contra-almirante Harris e para o lustre da U.S. Navy, sua poderosa esquadra singra entre a costa atlântica africana e o país americano que conta com o maior número de afrodescendentes.

Neste contexto apenas subentendido no LBDN, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul ganha todo o seu relevo. Instaurado pela ONU em 1986, esse tratado abrange o Brasil, Argentina, Uruguai e 21 países africanos. Programas de colaboração militar estão em curso nesses países, com destaque para a Namíbia -cuja costa situa-se em latitudes idênticas à faixa do litoral brasileiro contendo o pré-sal-, a qual envia boa parte dos oficiais de sua Marinha de Guerra para se formarem no Brasil.

O LBDN assinala uma cooperação mais direta com a África do Sul, no intercâmbio de oficiais e no desenvolvimento do míssil A-Darte e, mais além, com a Índia, no avião de transporte Embraer 145, dotado de radar indiano.

A colaboração com a África do Sul e a Índia é reforçada pelo Fórum Ibas, reunindo o Brasil aos dois países. Fundado em 2003, sob o impulso do então chanceler Celso Amorim, o Ibas é definido como "um mecanismo de coordenação entre três países emergentes, três democracias multiétnicas e multiculturais, que estão determinados a redefinir seu lugar na comunidade de nações".

Efetivamente, o Brasil, a África do Sul e a Índia constituem um grupo exemplar de democracias multiétnicas e multiculturais. Não há quem duvide disso, quando percorre as ruas das grandes cidades desses países.

Salvo em algumas altas instâncias, como as Academias Militares. Ali, o rosto dos cadetes, dos futuros oficiais superiores brasileiros, predominantemente branca, destoa da igualdade étnica e multicultural do oficialato das Forças Armadas da África do Sul e da Índia. Destoa, sobretudo, da sociedade brasileira.

Graças aos avanços constitucionais do país, as Forças Armadas têm evoluído. Mulheres passaram a ser admitidas nas Três Armas, embora suas funções sejam geralmente restritas aos serviços administrativos e de saúde.

Também é certo que há, desde o século 19, certo número de oficiais afrodescendentes e que as escolas militares não vetam mais certas categorias da população.

Assim, como revelou o historiador Fernando Rodrigues, da UFRJ, na reportagem de Leonencio Nossa, no jornal "O Estado de S. Paulo", em 12 de março de 2011, até o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45), as escolas militares barravam formalmente a entrada de negros, judeus, islâmicos, filhos de pais separados e filhos de estrangeiros.

SAITO Muita coisa mudou para melhor. Em 2007, a comunidade nipo-brasileira saudou a nomeação no comando da Aeronáutica do brigadeiro Juniti Saito, nascido em Pompeia (SP) e filho de imigrantes japoneses. No ano seguinte, viajando a Tóquio como convidado especial do governo japonês, o comandante foi recebido pelo Imperador Akihito.

Saito visitou também uma escola de filhos de imigrantes brasileiros. Segundo o site nikkeypedia.org.br, ele declarou na saída: "Eu me identifiquei com aquelas crianças porque passei o mesmo que elas quando cheguei ao Brasil. Até os cinco anos de idade, só falava japonês dentro de casa". A menos que tenha sido o resultado de um erro de transcrição, o lapso do brigadeiro Saito ("quando cheguei ao Brasil") é significativo.
Mostra o estranhamento e a emoção da "chegada" à escolinha paulista, e dá mais força ao seu mérito e à competência da Escola Militar na condução de sua trajetória até a chefia da Aeronáutica.

Da mesma forma que a carreira do contra-almirante Harris impressiona os oficiais africanos e brasileiros, o dinamismo social e democrático que impulsionou a carreira do comandante Saito deve ter impressionado os oficiais do Japão. No Extremo Oriente, o retrato do oficialato brasileiro, apresentado como um corpo militar multiétnico, ganhou foros de verossimilhança. No Extremo Ocidente é outra história.

GUARARAPES Sabe-se que a hierarquia militar sempre afirmou sua consonância com o colorido da sociedade. Como outros documentos oficiais, o LBDN se refere à primeira Batalha de Guararapes (1648), palco da vitória icônica das Forças Armadas: "Foi o evento histórico considerado gênese do Exército, nessa ocasião as forças que lutaram contra os invasores foram formadas genuinamente por brasileiros (brancos, negros e ameríndios)".

Depois disso, os holandeses se renderam, a população indígena declinou, chegaram muito mais africanos, mais portugueses, outros europeus, e também os levantinos e os asiáticos que formaram a atual sociedade brasileira.

As Forças Armadas mudaram, mas a sociedade mudou mais rápido. A referência encantatória às forças brasileiras na Batalha de Guararapes, pintadas como um exército multiétnico, não cola à realidade. Não é preciso fazer um desenho para mostrar que há um desequilíbrio gritante no escalonamento hierárquico das Três Armas.

Como em outros setores governamentais, os brancos sempre dominaram as patentes mais elevadas, em detrimento da presença dos afrodescendentes, que compõem atualmente a maioria dos recrutas e da população do país. Para retomar a análise do então presidente FHC, trata-se de uma situação que "não tem cabimento".

A doutrina constitucional e a dinâmica democrática tem tornado a sociedade brasileira mais justa. Desse modo, a Constituição decreta que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5°), e completa o preceito com as políticas afirmativas, determinando a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei" (art. 7° § 20).

Consoantemente, a presidente Dilma Rousseff promove a nomeação de mulheres nos altos cargos, numa política pública para ninguém botar defeito.

De seu lado, o Judiciário e o Legislativo têm procurado corrigir as desigualdades herdadas do passado para reforçar a democracia. No mês de abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu, unanimemente, que as cotas raciais nas Universidades estavam em conformidade com a Constituição.

Como é notório, o STF é raras vezes unânime em seus julgamentos. A concordância dos ministros sobre matéria tão controversa, e combatida pela grande maioria dos editorialistas, conferiu mais peso ainda à decisão, que tornou-se jurisprudência.

Após longo estudo, o STF reconheceu que existe no Brasil discriminação étnica estrutural -embora não inscrita nas leis-, que as universidades públicas tem o direito constitucional de combater.

Na sequência, o Congresso aprovou a lei que reserva 50% das vagas das universidades federais para estudantes de escolas públicas. Metade das cotas, ou 25% das vagas, vai para estudantes cujas famílias tenham renda até 1,5 salário mínimo. Os outros 25% das vagas são reservados aos estudantes negros, pardos ou indígenas. Persistem dúvidas sobre a aplicação da lei no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), que depende do Ministério da Defesa.

Independentemente das Academias Militares, os oficiais superiores estão cada vez mais envolvidos na política externa. Aliás, o LBDN registra a frequente "participação articulada de militares e diplomatas em fóruns internacionais [...] na tarefa de defender, no exterior, os interesses brasileiros".

Cedo ou tarde a branquidade do oficialato entravará o papel internacional das Forças Armadas. O acomodamento nacional -tão bem resumido na frase "Imagina na Copa!"- pode continuar esperando que as coisas, na hierarquia militar e alhures, evoluam a partir de críticas externas.

A frase citada acima, e seu complemento carioca "Imagina na Olimpíada!", tem duplo sentido. O significado imediato mostra que se está apreensivo com a chegada de tanta gente de outros países.

Menos óbvio, o segundo sentido deixa entender que se espera uma melhoria nos serviços públicos, na telefonia celular, nos aeroportos. Assim, o bordão "Imagina na Copa!" revela também um comportamento acomodado e subalterno: já que os cidadãos (brasileiros) não impõem respeito, vamos tirar proveito do respeito imposto pelos consumidores (estrangeiros).

Como sucedeu no Itamaraty, o apelo à representação multiétnica, à aproximação entre o rosto multicolorido dos recrutas e o rosto dos oficiais superiores, poderá também vir de fora para dentro, das parcerias militares desenvolvidas com países do Caribe e da África, e até com a 4ª Frota americana.

Não obstante, no seu discurso de posse, Celso Amorim fez uma afirmação que indicava sua intenção de não aceitar acomodamentos e subalternidades.

De fato, na sua fala, Amorim propôs uma gestão mais democrática no Ministério da Defesa: "Devemos valorizar a discussão de temas como direitos humanos, desenvolvimento sustentável e igualdade de raça, gênero e crença". Tais temas não sofrem contestação nas Forças Armadas.

Salvo a discussão do tema da igualdade de raça. Tão presente na sociedade brasileira, tão ausente no "Livro Branco da Defesa Nacional".


FONTE: Folha de São Paulo, 02 de setembro de 2012.

sábado, 1 de setembro de 2012

"Meu filho não foi julgado, foi simplesmente condenado!": Veja carta inédita de Leocádia Prestes


APRESENTAÇÃO
Carta inédita de Leocadia Felizardo Prestes, enviada aos juízes do Supremo Tribunal Militar em protesto contra a condenação imposta ao seu filho pelo espúrio Tribunal de Segurança Nacional, um tribunal de exceção criado pelo Governo Vargas para julgar os chamados “crimes contra a segurança nacional”. O texto é revelador da coragem e da determinação, assim como do caráter indomável da progenitora de Luiz Carlos Prestes.
CARTA DE LEOCADIA PRESTES AO SUPREMO TRIBUNAL MILITAR
Exmos. Srs. Juízes do Supremo Tribunal Militar.
Respeitosas saudações.
Como mãe e como brasileira, não posso conformar-me de modo algum com a sentença do Tribunal de Segurança Nacional que condenou meu filho, Luiz Carlos Prestes, à pena máxima pedida pelo Sr. Procurador: 16 anos e 8 meses de prisão.
Não posso conformar-me porque meu filho não pôde explicar a verdade, porque sua palavra não foi ouvida, porque não houve um debate público, porque não houve a mínima formalidade jurídica, a mais vaga sombra de defesa, porque o acusado nem mesmo compareceu ao tribunal!
MEU FILHO NÃO FOI JULGADO, FOI SIMPLESMENTE CONDENADO!
As duas cartas que dirigi ao Tribunal de Segurança Nacional, a 24 e 30 de abril, não foram juntas aos autos nem lidas na sessão do julgamento. As medidas estabelecidas pelo Sr. Presidente do mesmo tribunal, impediram que o advogado do meu filho comparecesse à sessão do julgamento. Além disso, esta sessão se prolongou durante a noite, como se se tramasse algo que não pode ser feito à luz do dia, e a sentença foi lavrada depois da meia noite, às ocultas do povo.
Srs. juízes, tudo isto é profundamente estranho e produz no estrangeiro a mais penosa impressão. As atitudes do Tribunal de Segurança Nacional não podem elevar a nossa Pátria perante o mundo civilizado como a pátria da Justiça e da Liberdade!
[Ilegível]... como mãe e como brasileira, venho à presença de V.V. Excias. para reivindiar a V.V. Excias.:
1)      UM TRATAMENTO HUMANO PARA MEU FILHO: a liberdade de corresponder-se livremente com sua família, sobretudo com sua mãe e sua mulher, presa na Alemanha, com a filhinha de poucos meses, sem culpa nem processo de espécie alguma; a liberdade de receber a visita de seus parentes e amigos; a liberdade de receber livros e jornais, roupa e alimentos; a liberdade de dar um pequeno passeio durante uma ou duas horas por dia, a fim de tomar um pouco de sol e respirar um ar menos impuro; a liberdade de dispor livremente da quantia que lhe pertence, quantia depositada na Tesouraria da Polícia; a sua transferência para uma casa de saúde dado o seu estado de predisposição para a tuberculose.
2)      UMA DEFESA TOTALMENTE LIVRE.
3)      DEBATES PÚBLICOS.
4)      UM JULGAMENTO VERDADEIRAMENTE JUSTO E O MAIS BREVE POSSÍVEL PELO TRIBUNAL MILITAR
Peço a V.V. Excias. que se interessem junto ao governo do Brasil e ao governo da Alemanha para que minha nora, Olga Prestes (deportada do Brasil nos últimos meses de gestação) e minha neta, Anita Leocadia (brasileira, com 6 meses de idade, nascida numa prisão), presas sem crime algum na Alemanha, SEJAM LIBERTAS E VENHAM PARA A MINHA COMPANHIA.
Peço finalmente, a V.V. Excias. que esta carta, bem como as duas que enviei ao Tribunal de Segurança Nacional a 24 e a 30 de abril, sejam lidas na primeira sessão do Supremo Tribunal Militar.
Com o mais alto respeito e consideração
a)      LEOCADIA PRESTES
Paris, 14 de maio de 1937.