Por Anita Leocadia Prestes
historiadora
Ao
considerarmos que vivemos numa sociedade dividida em classes antagônicas, na
qual a burguesia detém o poder de Estado e controla os principais meios de
comunicação, somos obrigados a reconhecer que a história oficial – aquela que é ensinada nas escolas e difundida
pelos principais veículos de divulgação – expressa os interesses dos setores
dominantes nesse Estado burguês.
Dessa forma, os “intelectuais
orgânicos” (expressão cunhada por Antônio Gramsci) da burguesia, ou seja, os
intelectuais que consciente ou inconscientemente servem aos interesses dessa
classe são sempre levados a elaborar a história
oficial. Abdicam, portanto, de qualquer compromisso com a “supremacia da evidência”,
que, para o historiador, segundo Eric Hobsbawm, deve ser o “fundamento de sua
disciplina”.[1]
A história oficial da Coluna Prestes – a epopeia brasileira da Marcha
que percorreu 25 mil quilômetros pelo Brasil, durante mais de dois anos na
década de vinte do século passado, sem sofrer nenhuma derrota, vencedora de
dezoito generais do Exército brasileiro, lutando objetivamente contra o domínio
do poder de Estado pelas oligarquias agrárias – é mais um exemplo dessa falta
de compromisso com a “supremacia da evidência”.
Na minha tese de doutoramento,
publicada posteriormente em livro, reeditado em quatro edições[2], pude demonstrar, através
de pesquisa realizada em numerosas fontes documentais, que a formação da Coluna
Prestes teve lugar no Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, no final de
1924. Em manobra que inaugurou a original estratégia da chamada guerra de movimento, os 1.500
combatentes sob o comando de Luiz Carlos Prestes, então jovem capitão do
Exército, romperam o cerco da cidade de São Luiz Gonzaga, constituído por 14 mil
homens das tropas governistas, considerado então intransponível. Tinha início a
Marcha da Coluna Invicta, à qual, por escolha dos seus participantes, Prestes
emprestaria seu nome.[3]
À frente da Coluna Prestes, chega ao encontro dos rebeldes paulistas. Benjamin Constant, oeste do Paraná, 11 de abril de 1925. |
Vencendo toda sorte de dificuldades e
sob o fogo constante das forças militares mobilizadas pelo governo de Artur
Bernardes, a Coluna Prestes atravessou os estados do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, chegando vitoriosa, em abril de 1925, à região de Foz do Iguaçu no
estado do Paraná. Enquanto isso, acossados pelas tropas federais comandadas
pelo general Cândido Mariano Rondon, os rebeldes paulistas que haviam se levantado
na capital de São Paulo em julho de 1924, sob o comando do general Isidoro Dias
Lopes e do major da Força Pública desse estado Miguel Costa, encontravam-se nessa
região desde agosto daquele ano. Em contraste com a estratégia que fora
inaugurada pela Coluna Prestes, era adotada por eles a chamada guerra de posição, tradicionalmente
empregada pelo Exército brasileiro, o
que resultara em repetidas derrotas frente ao poderoso inimigo, a mais grave na
cidade de Catanduvas.[4]
Durante reunião realizada com a
participação de Prestes e dos chefes militares paulistas, ficaria evidente que
estes se consideravam derrotados e, na sua maioria, pretendiam optar pelo
exílio. Era uma solução inaceitável pelos combatentes da Coluna Prestes que,
vitoriosa, pretendia dar continuidade ao périplo pelo Brasil. O major Miguel
Costa e alguns poucos chefes paulistas aceitaram os argumentos de Prestes e decidiram
incorporar as tropas rebeldes paulistas à Coluna Prestes, então reorganizada
com a participação de gaúchos e paulistas. Foi criada a 1ª Divisão Revolucionária,
constituída pelas brigadas “São Paulo” e “Rio Grande”. Por ser o oficial mais
velho entre os que permaneceram na Marcha, Miguel Costa foi nomeado seu
comandante. Prestes seria o chefe do Estado Maior. Devido à liderança por ele exercida,
Miguel Costa na prática lhe viria a entregar o comando da Coluna. No Paraná, na
realidade, houve a incorporação das tropas paulistas à Coluna Prestes.[5]
Embora as conclusões apresentadas em
minha tese de doutoramento sejam de conhecimento público há quase trinta anos,
a história oficial insiste em ignorar
os acontecimentos relacionados com o rompimento do cerco de São Luiz Gonzaga, a
formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul, sua marcha vitoriosa até o
Paraná, as derrotas sofridas pelos rebeldes de São Paulo e a incorporação das
tropas paulistas à coluna comandada por Luiz Carlos Prestes.
Na medida em que Prestes aderiu ao
comunismo e, a partir dos anos trinta, tornou-se a liderança comunista mais
destacada no Brasil, as classes dominantes do país e seus intelectuais orgânicos desenvolveram – e continuam a desenvolver –
esforços para apagar seu protagonismo na história do século XX e produzir uma história oficial em que tanto a Coluna
Invicta quanto outros episódios desse período são deliberadamente distorcidos e
falsificados.
Em
texto recentemente publicado pelo Instituto Moreira Salles[6], mais uma vez se afirma
que “as colunas, unidas, resolveram iniciar uma nova marcha, que se torna o
ponto de partida da chamada Coluna Miguel Costa-Prestes”[7], reiterando a versão
consagrada pela história oficial,
segundo a qual não são reconhecidos os sucessos da Coluna Prestes formada no
Rio Grande do Sul, as derrotas dos paulistas no Paraná e a incorporação destes
às tropas chegadas do Sul. É a forma encontrada de minimizar o protagonismo de
Luiz Carlos Prestes não só à frente da Marcha da Coluna, mas também sua atuação
destacada durante os anos que se seguiram, privando as novas gerações do
conhecimento de suas propostas e do seu legado revolucionário voltado para a
solução dos graves problemas enfrentados pelo povo brasileiro.
Outro
exemplo retirado do mesmo texto diz respeito ao episódio protagonizado por
Lampião e pelo Padre Cícero, quando o sacerdote atraiu o chefe cangaceiro a
Juazeiro do Norte para oferecer-lhe, em nome do presidente Artur Bernardes, a
patente de capitão do Exército, assim como dinheiro, armamento, munição e
fardamento ao seu bando, com o objetivo de que participasse da perseguição à
Coluna Prestes. Segundo o relato de Prestes[8], Lampião optou por não
combater os rebeldes da Marcha, afirmação que, contudo, é posta em dúvida no
referido texto. Mais um exemplo do empenho da história oficial em promover o descrédito do comandante da Coluna.[9]
Numerosos
exemplos de falsificação pela história
oficial de acontecimentos históricos que contaram com a participação de
Luiz Carlos Prestes e dos comunistas poderiam ser citados. No texto publicado
pelo Instituto Moreira Salles, volta-se a repetir o chavão de que Prestes teria
apoiado o movimento “queremista”[10], que durante o ano de
1945 demandava uma “Constituinte com Getúlio”, quando pesquisas realizadas em
documentos desse período revelam que isso não corresponde à realidade, pois a
posição dos comunistas e de Prestes à época era de luta por uma Constituinte
livremente eleita e democrática.[11]
Diante
do exposto, cabe aos historiadores e aos cientistas sociais, alinhados com a
perspectiva de que a produção historiográfica deva contribuir para o avanço dos
setores sociais que se batem por um futuro de justiça social e liberdade para
toda a humanidade, não poupar esforços no combate às manifestações resultantes
de narrativas marcadas pela falsificação da história de acordo com os
interesses antipopulares e espúrios dos donos do poder.
Defendamos
uma história comprometida com a “supremacia da evidência”, conforme postulava
Eric Hobsbawm.
Em janeiro de 2018.
[1]
Eric Hobsbawm, Sobre a história (São Paulo, Companhia
das Letras, 1998), p.286.
[2]
Anita Leocadia Prestes, A Coluna Prestes (São Paulo, Paz e
Terra, 1997), 4ª edição.
[4] Ibidem, capítulo IV.
[5] Idem.
[6]
Angela de Castro Gomes, “A
República dos bombardeios”, em Angela Alonso e Heloisa Espada (org.), Conflitos: fotografia e violência política
no Brasil, 1889-1964 (São Paulo, IMS, 2017), p.149 a175.
[9]
Angela de Castro Gomes, “A
República dos bombardeiros”, cit., p.159-160.
[11]
Ver Anita Leocadia Prestes, Os comunistas brasileiros (1945-1956/58):
Luiz Carlos Prestes e a política do PCB (São Paulo, Brasiliense, 2010), p.
73-74.
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