sábado, 30 de setembro de 2017

Para download: "Os Métodos da História", de Ciro Flamarion Cardoso e Hector Pérez Brignoli

Introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social

A situação atual da metodologia da ciência histórica (em seus ramos econômicos, demográfico e social) é apresentada em linguagem clara e direta, neste guia indispensável aos estudantes de História e demais ciências sociais, bem como aos pesquisadores e a todos os professores formados em história tradicional e desejosos de renovar sua perspectiva metodológica. Pela primeira vez, um manual que atende às necessidades específicas da pesquisa histórica nos países da América Latina: os novos métodos e técnicas são didaticamente exemplificados por meio de aplicações ao contexto latino-americano.

Link para download:

Filme "O Jovem Marx" disponível na web







Filme, "O Jovem Karl Marx".
Direção: Raoul Peck.
Ano: 2017.

O Filme "O Jovem Karl Marx" apresenta parte da juventude de Karl Marx, de 1842 até 1848, sua vida pessoal, dilemas, bem como as polêmicas e lutas políticas em anos conturbados politicamente e sua passagem e expulsão de diversos países (foi expulso da Alemanha, França e Bélgica). Dirigido por Raoul Peck, diretor haitiano e que ficou conhecido com seu documentário "Eu não sou seu negro", que tematiza a questão racial, é um filme extremamente importante por destacar uma das figuras mais famosas da história do pensamento ocidental e das lutas políticas da modernidade. O destaque do filme é a luta de Marx para fazer avançar o movimento operário, numa época dominada pelo "socialismo sentimental", o que o faz, ao lado de Engels, entrar num embate político e intelectual, cujo resultado foi o enfraquecimento do utopismo e constituição de uma expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, o marxismo. O filme ajuda a compreender melhor Karl Marx, o seu contexto histórico e evolução política e intelectual.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Proibição não reduziu abortos, constata a OMS (Organização Mundial da Saúde)


Jamil Chade, correspondente Estadão 
Genebra 
27/09/2017


Proibir abortos não gerou sua queda e, hoje, 25 milhões de abortos inseguros são realizados a cada ano, com grande parte deles ocorrendo em países em desenvolvimento


Um novo levantamento publicado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta que 45% de todos os abortos no mundo são considerados como inseguros e que banir a prática não funciona. O estudo também constata: a taxa geral de abortos é menor nos países onde eles são legalizados.

Publicado na revista "The Lancet", o estudo indica que 97% dos abortos inseguros hoje no mundo são registrados na América Latina, Ásia e África.

"Mais esforços são necessários, especialmente em regiões em desenvolvimento, para garantir acesso a métodos de contracepção e abortos seguros", declarou Bela Ganatra, autora do estudo e cientista da OMS. "Quando meninas e mulheres não tem acesso a isso, existem consequências sérias para suas saúdes e suas famílias", disse. "Isso não deveria ocorrer. Apesar dos avanços tecnológicos, abortos inseguros ainda ocorrem e mulheres continuam a morrer", alertou.

Segundo ela, se os padrões da OMS forem seguidos, o risco de complicações severas em um aborto é pequeno. Entre 2010 e 2014, as estimativas apontam que 55% dos abortos foram realizados de uma maneira segura, o que significa que foram realizados por pessoas treinadas, usando métodos recomendados pela agência de saúde da ONU.

Mas 31% dos abortos foram realizados de forma "menos segura", seja com pessoas não treinadas ou métodos ultrapassados. Em 14% dos casos, os abortos são realizados ainda com métodos perigosos e pessoas não-treinadas.

Proibição

Um dos fatores denunciados pela OMS, porém, é a questão dos direitos de mulheres a ter acesso legal dos abortos. De acordo com o levantamento, leis restritivas estão associadas com altas taxas de abortos inseguros. "Em países onde o aborto é completamente proibido ou autorizado apenas para salvar a vida da mãe, apenas um a cada quatro abortos eram seguros", disse. "Enquanto isso, em países onde o aborto era legal em uma dimensão maior, quase nove de cada dez abortos são feitos de forma segura", explicou.

"Acesso restritivo a abortos não reduzem o número de abortos", alertou o estudo. No norte da Europa e na América do Norte, a maioria dos abortos é seguro. "Essas regiões também são as que tem as menores taxas de abortos e tem regras mais abertas", indicou a OMS.

No caso dessas regiões, o desenvolvimento econômico, igualdade de gênero, uso amplo de contraceptivos, assim como serviços de saúde de alta qualidade, são fatores que fazem abortos serem seguros. "Nesses países, onde o aborto é amplamente legal e sistemas de saúde são fortes, a incidência de abortos inseguros é o menor do mundo", disse.

Na América do Sul, a realidade é radicalmente diferente. Na região, apenas um a cada quatro abortos é seguro. No total, 4,5 milhões de abortos foram realizados por ano no continente. Desses, 3,6 milhões foram considerados como inseguros. Na Europa, o número foi de apenas 480 mil.

Mesmo o número geral de abortos é hoje menor na Europa que na América do Sul, somando todas as práticas, legais e ilegais.

Na Europa, por exemplo, foram 4,2 milhões de abortos realizados por ano, entre uma população total de 700 milhões. Nos dez países da América do Sul onde as leis em grande parte restringem os abortos, foram 4,5 milhões de casos, numa população menor que a da Europa, de 450 milhões.

De acordo com a OMS, é cada vez mais comum mulheres sul-americanas obter e usar remédios como misoprostol, fora do sistema formal de saúde. A entidade admite que tal uso reduziu o número de mortes entre as mulheres. "Entretanto, esse tipo de uso informal e secreto de remédios não atende aos padrões da OMS do que se considera como abortos seguros", alertou.

Na avaliação da entidade, para evitar gravidezes indesejadas e abortos inseguros, países precisam apoiar políticas e dar apoio financeiro para fortalecer uma melhor educação sexual, dar acesso a métodos de contracepção, aconselhamento sobre planejamento familiar e acesso a aborto legal e seguro.


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Para download: Apostila do Curso "A História da Revolução Russa"

Com introdução de Gilberto Maringoni e artigos dos quatro professores do curso -- Michael Löwy, José Paulo Netto, Marly Viana e Angelo Segrilo --, a apostila vem ainda acrescida de textos complementares de Lênin, Zizek, Badiou, Losurdo e Astrojildo Pereira, além de uma cronologia da Revolução.

O curso faz parte das atividades do "Seminário Internacional 1917: o ano que abalou o mundo", promovido pela Boitempo Editorial e o Sesc Pinheiros, em São Paulo, entre os dias 26 e 29 de setembro de 2017.

BAIXE A APOSTILA COMPLETA AQUI!

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.

Obra de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de "Casa-Grande e Senzala" e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.

A "esquerda", entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, "A Elite do Atraso - Da Escravidão à Lava Jato" [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A "ralé de novos escravos", mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o "quero o meu agora", mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de "fábricas de opiniões": a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para "convencer" seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da "liberdade de imprensa" e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco "think tank" do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres ("coitadinhos!") não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua "respeitabilidade científica" e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de "A Tolice da Inteligência Brasileira" e "A Radiografia do Golpe" (Leya), além de professor de sociologia da UFABC. 


domingo, 24 de setembro de 2017

Anita Prestes no Seminário Internacional 1917: O Ano Que Abalou o Mundo

Seminário discute os cem anos da Revolução Russa
Mais de trinta conferencistas, nacionais e estrangeiros, incluindo alguns nomes de grande representatividade das ciências humanas, discutirão o tema durante curso, debates, conferências e lançamento de livros. 




A Revolução Russa trouxe para a realidade a ação inerente ao pensamento de Marx: “Até agora os filósofos ficam preocupados na interpretação do mundo de várias maneiras. O que importa é transforma-lo”. Quer seja concordando ou discordando dos métodos, das ações e das decisões destes revolucionários, não se pode negar que sua ação, acima de qualquer outra, moldou o mundo que viria a seguir daquele agitado outubro de 1917. 

Entre os dias 26 e 29 de setembro, a Boitempo e o Sesc em São Paulo realizam no Sesc Pinheiros o Seminário Internacional 1917: o ano que abalou o mundo, sobre o centenário da Revolução Russa, um dos acontecimentos históricos definidores do século XX. Mais de trinta conferencistas, nacionais e estrangeiros, incluindo alguns dos maiores nomes das ciências humanas, destrincharão o tema durante quatro dias de cursos, palestras, debates, mostra de cinema e lançamentos de livros. 


ANITA LEOCADIA PRESTES - Nasceu em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres de Barnimstrasse, na Alemanha nazista, filha dos revolucionários comunistas Luiz Carlos Prestes e Olga Benario Prestes. Doutora em Economia e Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou e em História Social pela UFF. Autora de vasta obra sobre a atuação política de Prestes e a história do comunismo no Brasil, é professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Pela Boitempo, publicou a biografia Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (2015, finalista do Prêmio Jabuti) e o recente Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (2017).

sábado, 23 de setembro de 2017

Anita Leocádia Prestes na UFSC: ‘Resistir sempre é possível’


Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
A possibilidade de resistência e a importância da organização e mobilização popular foram alguns dos temas abordados na palestra de Anita Leocádia Prestes, filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário Prestes, na última na terça-feira, 19 de setembro. A historiadora esteve na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para o lançamento de seu novo livro, “Olga Benário: Uma Comunista nas Mãos da Gestapo”, publicado pela Editora Boitempo. Em um auditório cheio, Anita explicou os motivos e contexto de produção da obra, relembrou as atrocidades cometidas durante o nazismo na Alemanha, e discorreu também sobre o momento político atual.

Para Anita, um dos principais ensinamentos que a vida de Olga deixou para as gerações que a sucederam foi sua capacidade de resistência. “Resistir sempre é possível. Até em campo de concentração ela resistia. Era tudo proibido, mas ela e as outras prisioneiras se reuniam clandestinamente, organizavam círculos de estudos, discutiam o panorama da guerra, estudavam línguas, faziam ginástica. Elas tinham uma disciplina interna muito rígida, que incluía uma série de medidas para que conseguissem sobreviver e resistir. Isso foi muito importante.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
A personalidade firme, combativa e organizadora de Olga, em um dos piores momentos políticos da história, foram ressaltados por Anita, que fez uma relação com os dias de hoje: “As experiências fascistas surgiram na Europa em uma época de grande crise do capitalismo. E isso está se repetindo. O perigo fascista não está excluído. É importante que as novas gerações, os jovens, estejam atentos para essas questões. O exemplo da resistência de Olga – e não só dela, mas também dos comunistas, anti-fascistas, democratas e todos os outros que resistiram naquela época – mostra que é possível se organizar mesmo nas condições mais adversas. Um regime como o nazista não se detinha diante de nada para realizar as maiores barbaridades.”  

A convicção na causa é, segundo Anita, fundamental para essa resistência. “Meu pai, Luis Carlos Prestes, sempre dizia que tanto ele como Olga conseguiram resistir porque tinham convicção da justeza da causa pela qual lutavam, que era a causa do socialismo e do comunismo. Se não tivessem essa convicção, não conseguiriam passar por tudo que passaram. Isso também é um exemplo para nós: a importância de se ter convicção na luta que se trava. A luta pela transformação social é muito difícil. Só com muita convicção é que realmente conseguimos seguir adiante.”

Organização popular

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
Anita criticou a falta de organização e mobilização popular nas lutas contemporâneas. “Lamentavelmente nós, povo brasileiro, estamos muito desorganizados. Vivemos um momento de retrocesso político muito grande. E esse não é um fenômeno só brasileiro, mas sim um fenômeno mundial. Passamos por um período de avanço das forças reacionárias, retrógadas e fascistas. A crise do capitalismo é grave e não se trata apenas de uma crise cíclica, é uma crise do sistema. E isso leva a burguesia a recorrer a medidas autoritárias e à repressão de setores populares, que evidentemente lutam e se revoltam contra a situação. Mas falta organização popular.”

A historiadora afirmou que as lideranças de esquerda no Brasil hoje não dão a devida importância à necessidade dessa organização, mobilização e conscientização popular: “Eu não vejo essa preocupação por parte das chamadas esquerdas existentes hoje. Esse é um trabalho difícil, penoso, feito a longo prazo. Mas se a gente não começa, nunca vai ter resultado. É preciso organizar os diferentes setores populares em torno das suas reivindicações. Ninguém se organiza para lutar pelo socialismo ou pela revolução, as pessoas se mobilizam para lutar por suas reivindicações. E o que não falta hoje é reivindicação. Os problemas estão aí. Quem está realmente interessado em fazer as lutas populares avançarem no Brasil deve trabalhar nessa direção: tentar organizar os setores populares. Nesse processo, as pessoas vão ganhar experiência, vão sentir a necessidade de estarem mobilizadas e serão conscientizadas de que os problemas colocados pelo capitalismo não têm solução definitiva dentro do capitalismo. A única solução é o socialismo.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
As manifestações de 2013 mostram, segundo ela, que sem organização não há conquistas. “Massa desorganizada na rua não dá resultado. Acho que um dos motivos para a desmobilização existente hoje foi a forma como se deram aquelas grandes manifestações de 2013. A maioria dos brasileiros estavam extremamente insatisfeitos e foram para a rua protestar. Mas estavam desorganizados. Voltaram todos para casa e qual foi o resultado daquilo? De lá pra cá a gente só viu a situação piorar, se agravar. Por isso eu digo: povo desorganizado não resolve. Infelizmente a mobilização popular no Brasil hoje é muito débil.”

Anita também apontou as recentes perdas de conquistas históricas dos trabalhadores. “O povo brasileiro está enfrentando um momento muito difícil, fruto desse golpe jurídico-parlamentar ocorrido ano passado. O Temer, que podemos considerar um usurpador do poder, se instalou lá e não quer sair de jeito nenhum. Isso foi um golpe e cada vez está mais claro que o objetivo é o de liquidar com todas as conquistas de direitos dos trabalhadores do Brasil, como a CLT e a previdência. Todas as conquistas, que foram fruto de anos de lutas do povo brasileiro, estão sendo liquidadas. A Petrobras, que também foi uma grande conquista, está sendo retalhada. O país está sendo vendido aos pedaços para o capital estrangeiro. É uma política profundamente anti-nacional, anti-popular”, afirmou, reiterando a necessidade de se organizar para combater todos esses problemas.

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Stálin e Hitler: irmãos gêmeos ou inimigos mortais?

Em contraste com a recorrente interpretação que, à luz da categoria de “totalitarismo”, equipara o nazismo e o bolchevismo – e especificamente Hitler e Stálin –, este artigo pretende demonstrar que os líderes do nazismo alemão e da União Soviética tinham posições políticas antagônicas. Hitler parece estar muito mais próximo da política de Winston Churchill. Acima de tudo, este ensaio se concentra no conceito de colonialismo: em seu interior, as diferenças entre Hitler e Stálin tornam-se óbvias. A guerra de Hitler foi uma guerra colonial, de base racial, bastante semelhante à política de conquistas dos Estados Unidos. A União Soviética de Stálin se opôs de forma vigorosa e bem-sucedida a essa guerra. Ou seja: Stálin e Hitler não são irmãos gêmeos, e sim inimigos mortais

Por Domenico Losurdo

Crédito da Imagem: Cartazes russos para a Segunda Guerra Mundial


1. Acontecimentos históricos e categorias teóricas

Na atualidade, com base na categoria de “totalitarismo” (a ditadura terrorista do partido único e o culto ao líder), Stálin e Hitler são considerados as máximas encarnações desse flagelo, dois monstros com características tão semelhantes a ponto de parecer gêmeos. Não por acaso – argumenta-se –, ambos se uniram por quase dois anos em um pacto perverso. Se é verdade que a esse pacto se seguiu uma guerra impiedosa entre eles, não importa – essa guerra foi conduzida por irmãos gêmeos, a despeito da violência do conflito.

Seria essa uma conclusão necessária? Afastemo-nos da Europa. Gandhi também estava convencido de que Hitler tinha um irmão gêmeo. Mas ele não era Stálin, a quem, já em setembro de 1946 e com a Guerra Fria em vigência, o líder indiano definia como “um grande homem” à frente de um “grande povo”[1]. Não, o irmão gêmeo de Hitler, em última instância, era Churchill, o que se verifica em pelo menos duas entrevistas de Gandhi, uma de abril de 1941, outra de abril de 1945: “Na Índia, temos um governo hitlerista, ainda que camuflado em termos mais brandos”. E por fim: “Hitler foi ‘o pecado da Grã-Bretanha’. Hitler é tão somente a resposta ao imperialismo britânico”[2].

Das duas declarações, talvez a primeira seja a que mais faça pensar. Ela foi dada num momento em que ainda vigia o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética: o líder independentista indiano não parecia escandalizado por isso. No âmbito dos movimentos anticolonialistas, a política das frentes populares era a que encontrava maior resistência. Quem explica esse fato é um grande historiador afro-americano de Trinidad, admirador ardoroso de Trótski, Cyril L. R. James, que em 1962 descreve da seguinte maneira a evolução de outro grande intérprete, também proveniente de Trinidad, da causa da emancipação negra:

Ao chegar nos Estados Unidos, ele [George Padmore] se tornou um comunista atuante. Foi transferido para Moscou para assumir a direção do escritório de propaganda e organização do povo negro, período em que se tornou o mais conhecido e confiável dos agitadores da independência africana. Em 1935, o Kremlin, na busca por alianças, separou a Grã-Bretanha e a França, enquanto “imperialismos democráticos”, da Alemanha e do Japão, considerados “imperialistas fascistas” e que se tornaram os principais alvos da propaganda russa e comunista. Essa distinção reduziu a luta pela emancipação africana a uma farsa, pois a Alemanha e o Japão, de fato, não possuíam colônias na África. Padmore rompeu imediatamente suas relações com o Kremlin.[3]

Stálin era criticado e condenado não enquanto irmão gêmeo de Hitler, mas por se recusar a ver este último como o irmão gêmeo do líder do imperialismo britânico e francês. Para importantes figuras do movimento anticolonialista, não era fácil entender que quem comandava a contrarrevolução colonialista (e escravista) era o Terceiro Reich: o recorrente debate sobre o pacto de não agressão claramente padece de eurocentrismo.

Por mais discutível que seja, a aproximação Hitler-Churchill feita por Gandhi (e, indiretamente, por outros expoentes do movimento anticolonialista) é fácil de compreender: Hitler não declarou diversas vezes o desejo de construir na Europa oriental as “Índias germânicas”? E Churchill não prometeu defender com todas as forças as Índias britânicas? De fato, a fim de sufocar o movimento independentista, em 1942 o primeiro-ministro inglês “recorreu a meios extremos, como o uso de aeronaves para metralhar multidões de manifestantes”[4]. A ideologia que encabeçava a repressão dá muito o que pensar. Leiamos Churchill: “Eu odeio os indianos. É um povo bestial, com uma religião bestial”; por sorte, a ordem foi mantida e a civilização, defendida, por um número sem precedentes de “soldados brancos”. Tratava-se de enfrentar uma raça “que só está protegida do destino que merece porque se prolifera muito rápido”; teria agido bem, portanto, o marechal Arthur Harris, artífice dos bombardeios sobre a Alemanha, quando resolveu a questão dos indianos enviando “para destruí-los alguns de seus bombardeiros excedentes”[5].

Retornemos da Ásia para a Europa. Em 23 de julho de 1944, Alcide De Gasperi, que se preparava para ser o presidente do Conselho na Itália livre do fascismo, pronunciou um discurso em que afirmava enfaticamente:

Quando vejo que Hitler e Mussolini perseguiam homens por causa de suas raças, e inventavam aquela pavorosa legislação antijudaica que conhecemos, e ao mesmo tempo vejo o povo russo, composto por 160 raças, buscar sua fusão, superando a diversidade existente entre a Ásia e a Europa, essa tentativa, esse esforço pela unificação do consórcio humano, permitam-me dizer: isso é cristão, isso é eminentemente universalista, no sentido do catolicismo.[6]

Neste caso, o ponto de partida foi constituído pela categoria do racismo, um flagelo que encontrava sua expressão mais crua na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. Pois bem, qual era a antítese a esse respeito? Esta não podia ser representada pela Grã-Bretanha de Churchill, pelas razões já observadas, mas tampouco pelos Estados Unidos, onde, ao menos no que se refere ao Sul, continuava incandescente a ideologia da white supremacy. Acerca desse regime, um notável historiador estadunidense (George M. Fredrickson) escreveu recentemente: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos Estados Unidos anteciparam alguns aspectos da perseguição deflagrada pelo regime nazista contra os judeus nos anos trinta do século XX”[7]. Não impressiona então que De Gasperi identificasse a União Soviética como a verdadeira, a grande antagonista da Alemanha de Hitler. Os irmãos gêmeos de que fala a categoria do totalitarismo se configuram como inimigos mortais à luz das categorias do racismo e do colonialismo.

Vídeo: Debate 100 anos da Revolução Russa com Anita Leocadia Prestes

I Seminário de Formação Política do SEPE Rio das Ostras/Casimiro de Abreu 
Realizado em 23 de agosto de 2017
Estrondoso SUCESSO com mais de 400 participantes inscritos (Veja as fotos no final da postagem

Debate 100 anos da Revolução Russa com Anita Leocadia Prestes

Cine debate filme OLGA - com Anita Leocadia Prestes








segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Peça teatral: Marx baixou em mim - uma comédia indignada


Data e hora: Segunda, 25 de setembro às 18:00
Local: IFCS - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Largo de São Francisco Paula, 1, Centro, Rio de Janeiro, RJ
ENTRADA GRATUITA
Organização: AMORJ - Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro 

Página do evento no Facebook:

IFCS - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


sábado, 16 de setembro de 2017

Lima Barreto: Da minha cela // Especial Revolução Russa

O Blog da Boitempo recupera, no contexto do dossiê especial sobre o centenário da Revolução Russa, uma série de artigos de Lima Barreto – todos escritos no calor da hora em 1918. A enérgica e afiada defesa pública da Revolução Russa que emerge nesses textos se mostra tanto mais audaciosa por parte de Lima Barreto se considerarmos que a tônica geral das referências da elite intelectual da época aos acontecimentos de Outubro e ao recém estabelecido governo soviético era bastante depreciativa, para dizer o mínimo.

Este terceiro artigo, intitulado “Da minha cela” e publicado originalmente no dia 30 de novembro de 1918 no A.B.C, periódico carioca de orientação marxista e revolucionária, rebate as diversas críticas feitas nos jornais da época aos bolcheviques, referidos como “maximalistas”, e dispara: “Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo […] não se deve aninhar no coração dos que têm meditado sobre a marcha das sociedades humanas. A teimosia dos burgueses só fará adiar a convulsão que será então pior; e eles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos iníquos aos seus inimigos, pelos jornais irresponsáveis; lembrem-se que, se dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da guilhotina, em 93, na Praça da Grève, em Paris. Atirem a primeira pedra…”

Confira o primeiro artigo da série, o chamado “manifesto maximalista”, clicando aqui, e o segundo artigo, “Vera Zasulich”, clicando aqui.

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Da minha cela

Por Lima Barreto.
30.11.1918, A.B.C.

Não é bem um convento, onde estou há quase um mês; mas tem alguma coisa de monástico, com o seu longo corredor silencioso, para onde dão as portas dos quartos dos enfermos.

É um pavilhão de hospital, o Central do Exército; mas a minha enfermaria não tem o clássico e esperado ar das enfermarias: um vasto salão com filas paralelas de leitos.

Ela é, como já fiz supor, dividida em quartos e ocupo um deles, claro, com uma janela sem um lindo horizonte como é tão comum no Rio de Janeiro.

O que ela me dá é pobre e feio; e, além deste contratempo, suporto desde o clarear do dia até à boca da noite o chilreio desses infames pardais. No mais, tudo é bom e excelente nesta ala de convento que não é todo leigo, como poderia parecer a muitos, pois na extremidade do corredor há quadros de santos que eu, pouco versado na iconografia católica, não sei quais sejam.

Além desses registos devotos, no pavimento térreo, onde está o refeitório, há uma imagem de Nossa Senhora que preside as nossas refeições; e, afinal, para de todo quebrar-lhe a feição leiga, há a presença das irmãs de São Vicente de Paula. Admiro muito a translucidez da pele das irmãs moças; é um branco pouco humano.

A minha educação céptica, voltairiana, nunca me permitiu um contato mais contínuo com religiosos de qualquer espécie. Em menino, logo após a morte de minha mãe, houve uma senhora idosa, Dona Clemência, que assessorava a mim e a meus irmãos, e ensinou-me um pouco de catecismo, o “Padre-Nosso”, a “Ave-Maria” e a “Salve-Rainha”, mas bem depressa nos deixou e eu não sabia mais nada dessas obrigações piedosas, ao fim de alguns meses.

Tenho sido padrinho de batismo umas poucas de vezes e, quando o sacerdote, na celebração do ato, quer que eu reze, ele tem que me ditar a oração.

A presença das irmãs aqui, se ainda não me fez católico praticante e fervoroso, até levar-me a provedor de irmandade como o Senhor Miguel de Carvalho, convenceu-me, entretanto, de que são úteis, senão indispensáveis aos hospitais.

Nunca recebi (até hoje), como muitos dos meus companheiros de enfermaria, convite para as suas cerimônias religiosas. Elas, certamente, mas sem que eu desse motivo para tal, me supõem um tanto herege, por ter por aí rabiscado uns desvaliosos livros.

Por certo, no seu pouco conhecimento da vida, julgam que todo escritor é acatólico. São, irmãs, até encontrarem um casamento rico que os faz carolas e torquemadescos. Eu ainda espero o meu…

Testemunha do fervor e da dedicação das irmãs no hospital em que estou, desejaria que fossem todas elas assim; e deixassem de ser, por bem ou por mal, pedagogas das ricas moças da sinistra burguesia, cuja cupidez sem freio faz da nossa vida atual um martírio, e nela estiola a verdadeira caridade.

Não sei como vim a lembrar-me das causas nefandas daí de fora, pois vou passando sem cuidado, excelentemente, neste coenobium semileigo em que me meti. Os meus médicos são moços dedicados e interessados, como se amigos velhos fossem, pela minha saúde e restabelecimento.

O doutor Alencastro Guimarães, o médico da minha enfermaria, colocou-me no braço quebrado o aparelho a que, parece, chamam de Hennequin!

Sempre a literatura e os literatos…

Antes, eu me submeti à operação diabólica do exame radioscópico.

A sala tinha uma pintura negra, de um negro quase absoluto, lustroso, e uma profusão de vidros e outros aparelhos desconhecidos ou mal conhecidos por mim, de modo que, naquele conjunto, eu vi alguma coisa de Satanás, a remoçar-me para dar-me Margarida, em troca da minha alma.

Deitaram-me em uma mesa, puseram-me uma chapa debaixo do braço fraturado e o demônio de um carrinho com complicações de ampolas e não sei que mais correu-me, guiado por um operador, dos pés até à ponta do nariz. Com uma bulha especial, fui sentindo cair sobre o ombro e o braço uma tênue chuva extraordinariamente fluídica que, com exagero e muita tolice, classifico de imponderável.

Além do doutor Alencastro, nos primeiros dias, a minha exaltação nervosa levou-me à enfermaria do doutor Murilo de Campos. Esta tinha o aspecto antipático de uma vasta casa-forte. Valentemente, as suas janelas eram gradeadas de varões de ferro e a porta pesada, inteiramente de vergalhões de ferro, com uma fechadura complicada, resistia muito, para girar nos gonzos, e parecia não querer ser aberta nunca. Lasciate ogni speranza…

Tinha duas partes: a dos malucos e a dos criminosos. O crime e a loucura de Maudsley, que eu lera há tantos anos, veio-me à lembrança; e também a Recordação da casa dos mortos, do inesquecível Dotoievski.

Pensei amargamente (não sei se foi só isso) que, se tivesse seguido os conselhos do primeiro e não tivesse lido o segundo, talvez não chegasse até ali; e, por aquela hora, estaria a indagar, na Rua do Ouvidor, quem seria o novo ministro da Guerra, a fim de ser promovido na primeira vaga. Ganharia seiscentos mil-réis – o que queria eu mais? Mas… Deus escreve direito por linhas tortas; e estava eu ali muito indiferente à administração da República, preocupado só em obter cigarros.

Os loucos ou semiloucos que lá vi pareceram-me pertencer à última classe dos malucos. Tenho, desde os nove anos, vivido no meio de loucos. Já mesmo passei três meses mergulhado no meio deles; mas nunca vi tão vulgares como aqueles. Eram completamente destituídos de interesse, átonos, e bem podiam, pela sua falta de relevo próprio, voltar à sociedade, ir formar ministérios, câmaras, senados e mesmo um deles ocupar a suprema magistratura. Deixemos a política… A irmã dessa enfermaria maudsliana é francesa; mas a daquela em que fiquei definitivamente é brasileira, tendo até na fisionomia um não-sei-quê de andradino. Ambas muito boas.

O médico da enfermaria, como já disse, é o doutor Murilo de Campos, que parece gostar de sondar essas duas manifestações misteriosas da nossa natureza e da atividade das sociedades humanas.

Como todo o médico que se compraz com tais estudos, o doutor Murilo tem muito interesse pela literatura e pelos literatos. Julgo que os médicos dados a tais pesquisas têm esse interesse no intuito de obter nos literatos e na literatura subsídios aos estudos que estão acumulando, a fim de que um dia se chegue a decifrar, explicar, evitar e exterminar esses dois inimigos da nossa felicidade, contra os quais, até hoje, a bem dizer, só se achou a arma horripilante da prisão, do sequestro e da detenção.

Creio que lhe pareci um bom caso, reunindo muitos elementos que quase sempre andam esparsos em vários indivíduos; e o doutor Murilo me interrogou, de modo a fazer que me introspeccionasse um tanto. Lembrei-me então de Gaston Rougeot que, na Revue des Deux Mondes, há tantos anos, tratando desse interrogatório feito aos doentes pelos médicos, muito usado e preconizado pelo famoso psicólogo Janet, concluía daí que a psicologia moderna, tendo aparecido com aparelhos registradores e outros instrumentos de precisão, que lhe davam as fumaças de experimental, acabava na psicologia clássica da introspecção, do exame e análise das faculdades psíquicas do indivíduo por ele próprio com as suas próprias faculdades, pois a tanto correspondia o inquérito do clínico a seu cliente.

Não entendo dessas coisas; mas posso garantir que dei ao doutor Murilo, sobre os meus antecedentes as informações que sabia; sobre as minhas perturbações mentais, informei-lhe do que me lembrava, sem falseamento nem relutância, esperando que o meu depoimento possa concorrer algum dia para que, com mais outros sinceros e leais, venha ele servir à ciência e ela tire conclusões seguras, de modo a aliviar de alguns males a nossa triste e pobre humanidade. Sofri também mensurações antropométricas e tive com o resultado delas um pequeno desgosto. Sou braquicéfalo; e, agora, quando qualquer articulista da A Época quiser defender uma ilegalidade de um ilustre ministro, contra a qual eu me haja insurgido, entre os meus inúmeros defeitos e incapacidades, há de apontar mais este: é um sujeito braquicéfalo; é um tipo inferior!

Fico à espera da objurgatória com toda a paciência, para lhe dar a resposta merecida pelo seu saber antropológico e pela sua veneração aos caciques republicanos quando estão armados com o tacape do poder.

Pois, meus senhores, como estão vendo, nestes vinte e poucos dias, durante os quais tenho passado neste remansoso retiro, semirreligioso, semimilitar – espécie de quartel-convento de uma ordem guerreira dos velhos tempos de antanho, têm-me sido uns doces dias de uma confortadora delícia de sossego, só perturbado por esses ignóbeis pardais que eu detesto pela sua avidez de homem de negócios e pela sua crueldade com os outros passarinhos.

Passo-os a ler, entre as refeições, sem descanso, a não ser aquele originado pela passagem da leitura de um livro para um jornal ou da deste para uma revista. A leitura assim feita, sem pensar em outro que fazer, sem poder sair, quase prisioneiro, é saboreada e gozada. Ri-me muito gostosamente do pavor que levaram a todo o Olimpo governamental os acontecimentos de 18.

Não sei como não chamaram para socorrê-lo os marinheiros do “Pittsburg”… Não era bem do programa; mas não sairia da sua orientação.

O que os jornais disseram, uns de boa-fé e outros cavilosamente inspirados, sobre o maximalismo e o anarquismo, fez-me lembrar como os romanos resumiam, nos primeiros séculos da nossa era, o cristianismo nascente. Os cristãos, afirmavam eles categoricamente, devoram crianças e adoram um jumento. Mais ou menos isto julgaram os senhores do mundo uma religião que tinha de dominar todo aquele mundo por eles conhecido e mais uma parte muito maior cuja existência nem suspeitavam…

O ofício que o Senhor Aurelino dirigiu ao Senhor Amaro Cavalcânti, pedindo a dissolução da União Geral dos Trabalhadores, é deveras interessante e guardei-o para a minha coleção de coisas raras.

Gostava muito do Senhor Aurelino Leal, pois me pareceu sempre que tinha horror às violências e arbitrariedades da tradição do nosso Santo Ofício policial.

Quando a Gazeta de Notícias andou dizendo que Sua Senhoria cultivava amoricos pelas bandas da Tijuca, ainda mais gostei do doutor Aurelino.

Lembrei-me até de uma fantasia de Daudet que vem nas Lettres de mon Moulin. Recordo-a.

Um subprefeito francês, em carruagem oficial, todo agaloado, ia, num dia de forte calor, inaugurar um comício agrícola. Até ali não tinha conseguido compor o discurso e não havia meio de fazê-lo. Ao ver, na margem da estrada, um bosque de pinheiros, imaginou que à sombra deles a inspiração lhe viesse mais prontamente e para lá foi. As aves e as flores, logo que ele começou – “minhas senhoras, meus senhores” – acharam a coisa hedionda, protestaram; e, quando os seus serviçais vieram a encontrá-lo, deram com o sublime subprefeito, sem casaca agaloada, sem chapéu armado, deitado na relva, a fazer versos. Deviam ser bons…

Mas o Senhor Aurelino, que ia fazer versos ou coisa parecida no Lago das Fadas, no Excelsior, na gruta Paulo e Virgínia, lá na maravilhosa floresta da Tijuca, deu agora para Fouché caviloso, para Pina Manique ultramontano do Estado, para Trepoff, para inquisidor do candomblé republicano, não hesitando em cercear a liberdade de pensamento e o direito de reunião, etc. Tudo isto me fez cair a alma aos pés e fiquei triste com essa transformação do atual chefe de polícia, tanto mais que o seu ofício não está com a verdade, ao afirmar que o maximalismo não tem “uma organização de governo”.

Não é exato. O que é Lênin? O que são os soviets? Quem é Trótski? Não é este alguma coisa ministro como aqui foi Rio Branco, com menos poder do que o barão, que fazia o que queria?

Responda, agora, se há ou não organização de governo, na Rússia de Lênin. Se é por isso só que implica com o bolchevismo…

Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo; essa burguesia cruel e sem coragem, que se embosca atrás de leis, feitas sob a sua inspiração e como capitulação diante do poder do seu dinheiro; essa burguesia vulpina que apela para a violência pelos seus órgãos mais conspícuos, detestando o maximalismo moscovita, deseja implantar o “trepoffismo” [referência a Dmitri Feodorovich Trepov], também moscovita, como razão de Estado; esse ódio – dizia – não se deve aninhar no coração dos que têm meditado sobre a marcha das sociedades humanas. A teimosia dos burgueses só fará adiar a convulsão que será então pior; e eles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos iníquos aos seus inimigos, pelos jornais irresponsáveis; lembrem-se que, se dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da guilhotina, em 93, na Praça da Grève, em Paris. Atirem a primeira pedra…

Lembro-lhes ainda que, se o maximalismo é russo, se o “trepoffismo” é russo – Vera Zasulitch também é russa…

Agora, vou ler um outro jornal… É o O País, de 22, que vai me dar grande prazer com o seu substancioso leading-article, bem recheado de uma saborosa sociologia de “revistas”.

Não há nada como a leitura de revues ou de reviews. Vou mostrar por quê. Lê-se, por exemplo, o nº 23 da Revue Philosophique, é-se logo pragmatista; mas dentro de poucos dias, pega-se no fascículo 14 da Fortnightly Review, muda-se num instante para o spencerismo.

De modo que uma tal leitura, quer se trate de sociologia, de filosofia, de política, de finanças, dá uma sabedoria muito própria a quem quer sincera e sabiamente ter todas as opiniões oportunas.

O artigo de fundo do O País, que citei, fez-me demorar a atenção sobre vários pontos seus que me sugeriram algumas observações.

O articulista diz que a plebe russa estava deteriorada pela vodka e as altas classes debilitadas por uma cultura intelectual refinada, por isso o maximalismo obteve vantagens no ex-império dos czares. Nós, porém, brasileiros, continua o jornalista, somos mais sadios, mais equilibrados e as nossas (isto ele não disse) altas classes não têm nenhum refinamento intelectual.

O sábio plumitivo, ao afirmar essas coisas de vodka, de “sadio”, de “equilibrado”, a nosso respeito, esqueceu-se que a nossa gente humilde, e mesmo a que não o é totalmente, usa e abusa da “cachaça”, aguardente de cana (explico isto porque talvez ele não saiba), a que é arrastada, já por vício, já pelo desespero da miséria em que vive graças à ganância, à falta de cavalheirismo e sentimento de solidariedade humana do nosso fazendeiro, do usineiro e, sobretudo, do poder oculto desse esotérico Centro Industrial e da demostênica Associação Comercial, tigres acocorados nos juncais, à espera das vítimas para sangrá-las e beber-lhes o sangue quente. Esqueceu-se ainda mais das epidemias de loucura, ou melhor, das manifestações de loucura coletiva (Canudos, na Bahia; Mukers, no Rio Grande do Sul, etc.); esqueceu-se também do Senhor doutor Miguel Pereira (“O Brasil é um vasto hospital”).

Esquecendo-se dessas coisas comezinhas que são do conhecimento de todos, não é de espantar que afirme ser o anarquismo os últimos vestígios da filosofia (não ponho a chapa que lá está) do Contrato social de Rousseau.

Pobre Jean-Jacques! Anarquista! Mais esta, hein, meu velho?

Mais adiante, topei com esta frase que fulmina o maximalismo, o anarquismo, o socialismo, como um raio de Zeus Olímpico: “Na placidez estéril do ‘nirvana’ da preguiça universal.”.

Creio que foi Taine quem, num estudo sobre o budismo, disse ser difícil à nossa inteligência ocidental bem apreender o que seja “nirvana”.

Está-se vendo que o incomparável crítico francês tinha bastante razão… O profundo articulista acoima de velharias as teorias maximalistas e anarquistas às quais opõe, como novidade, a surgir do término da guerra, um nietzschismo, para uso dos açambarcadores de tecidos, de açúcar, de carne-seca, de feijão, etc. Não trepida, animado pelo seu recente super-humanismo, de chamar de efeminadas as doutrinas dos seus adversários, que vêm para a rua jogar a vida e, se presos, sofrer sabe Deus o quê. Os cautelosos sujeitos que, nestes quatro anos de guerra, graças a manobras indecorosas e inumanas, ganharam mais do que esperavam em vinte, estes é que devem ser viris como os tigres, como as hienas e como os chacais. Eu me lembrei de escrever-lhes as vidas, de compará-las, de fazer com tudo isso uma espécie de Plutarco, já que não posso organizar um jardim zoológico especial com tais feras, bem encarceradas em jaulas bem fortes.

Vou acabar, porque pretendo iniciar o meu Plutarco; mas, ao despedir-me, não posso deixar de ainda lamentar a falta de memória do articulista do O País quando se refere à idade de suas teorias. Devia estar lembrado que Nietzsche deixou de escrever em 1881 ou 82; portanto, há quase quarenta anos; enlouqueceu totalmente, tristemente, em 1889; e veio a morrer, se não me falha a memória, em 1897 – por aí assim.

As suas obras, as últimas, têm pelo menos quarenta anos ou foram pensadas há quarenta anos. Não são, para que digamos, lá muito vient de paraître. Serão muito pouco mais moças do que as que inspiram os revolucionários russos… Demais, o que prova a idade de uma obra quanto à verdade ou à mentira que ela pode encerrar? Nada.

Compete-me dizer afinal ao festejado articulista que o Zaratustra, do Nietzsche, dizia que o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-humano – uma corda sobre um abismo. Perigoso era atravessála; perigoso, ficar no caminho; perigoso, olhar para trás. Cito de cor, mas creio que sem falsear o pensamento.

Tome, pois, o senhor jornalista cuidado com o seu nietzschismo de última hora, a serviço desses nossos grotescos super-homens da política, da finança e da indústria; e não lhe vá acontecer o que se passou com aquele sujeito que logo aprendeu a correr em bicicleta, mas não sabia saltar. E – note bem – ele não corria ou pedalava em cima de uma corda estendida sobre um abismo…

É o que ouso lembrar-lhe desta minha cela ou quarto de hospital, onde passaria toda minha vida, se não fossem os horrorosos pardais e se o horizonte que eu diviso fosse mais garrido ou imponente.

Filha conta como Olga Benario Prestes não se dobrou ao nazismo

“Acima de tudo ela foi uma comunista convicta e abnegada, disposta a dar a própria vida pela causa da revolução, que abraçara desde muito jovem”

ENTREVISTA | ANITA LEOCADIA PRESTES
Filha conta como Olga não se dobrou ao nazismo
por Gilson Camargo

Os Trophäen-dokumente, ou documentos-troféus, que registram em 28 mil dossiês as atividades da polícia secreta de Adolf Hitler, apreendidos por soldados soviéticos após a derrota da Alemanha nazista em 1945 e mantidos em sigilo até abril de 2015, reservam a Olga Benario Prestes a mais abrangente documentação sobre uma única vítima do fascismo. “A documentação revela que Olga se recusou peremptoriamente a fornecer qualquer informação sobre o movimento comunista à Gestapo”, afirma a professora e historiadora Anita Leocadia Prestes, filha de Olga, autora do recém-lançado Olga Benário Prestes – Uma comunista nos arquivos da Gestapo (Ed. Boitempo). “Se outros se tornaram traidores, eu jamais o serei”, sentencia Olga em uma carta escrita na prisão e que nunca foi entregue ao marido. Até agora, havia muitas lacunas na história da jovem militante alemã de origem judaica, mulher do líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, que foi entregue ao Terceiro Reich pelo governo de Getúlio Vargas, em 23 de setembro de 1936, grávida, e executada em uma câmara de gás em 1942. A obra revela detalhes da perseguição do regime nazista à mãe da autora, uma “comunista inteligente e perigosa”. O livro “é revelador da inaudita violência praticada pelas autoridades do III Reich contra milhões de homens, mulheres e crianças, a grande maioria sem nenhuma culpa formada”, resume a autora nesta entrevista ao Extra Classe.

Extra Classe – No livro Olga Benário Prestes – Uma comunista nos arquivos da Gestapo, a senhora reconstitui a trajetória política e a vida da revolucionária comunista alemã desde a juventude em Munique, a vida e a militância no Brasil, até sua execução no campo de concentração de Ravensbrück. Qual a importância dos arquivos secretos da Gestapo (os “documentos-troféus” liberados para consulta pública em 2015) na construção dessa narrativa?
Anita Leocadia Prestes – O livro se baseia nos documentos disponibilizados recentemente do arquivo da Gestapo, os quais fornecem muitas informações até agora desconhecidas do público e da minha família. Trata-se da documentação da polícia secreta do III Reich (a Gestapo), que foi apreendida pelo Exército Soviético por ocasião da tomada de Berlim, em maio de 1945, e levada para a União Soviética. Em abril de 2015, essa documentação foi disponibilizada na internet – um acervo precioso para a pesquisa histórica e, em particular, para o melhor conhecimento das entranhas do regime nazista.

EC – Dos 2,5 milhões de folhas que integram os 28 mil dossiês, há 2 mil páginas sobre Olga. Quando começou esse monitoramento e por que era tão grande o interesse da Gestapo pelas atividades dela?
Anita – Os documentos do arquivo da Gestapo referentes a Olga abrangem o período 1936 a 1942: da sua extradição do Brasil para a Alemanha até seu assassinato numa câmara de gás. Nesses documentos afirma-se que Olga era uma “comunista perigosa”, cuja atuação no Partido Comunista Alemão e na Internacional Comunista (Comintern) deveria ser por ela relatada à Gestapo, além de ser mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes. A documentação revela que Olga se recusou peremptoriamente a fornecer qualquer informação sobre o movimento comunista à Gestapo.

EC – A publicação dos “documentos-troféus” permitiram a atualização do livro-reportagem Olga (1994), de Fernando Moraes?
Anita – Fernando Moraes fez uma pesquisa abrangente da vida de Olga e escreveu uma obra séria e comprometida com a evidência dos fatos, o que era reconhecido por Prestes, meu pai. Mas, no início dos anos 1980, quando ele escreveu o livro Olga, a documentação do arquivo da Gestapo não estava disponível, o que me permitiu agora complementar sua obra.

EC – Por que Getúlio Vargas optou por deportá-la se já havia capturado Prestes?
Anita – Meu pai dizia que a extradição da minha mãe foi a forma que Vargas encontrou de torturá-lo, pois a tortura física de Luiz Carlos Prestes, à qual foram submetidos outros prisioneiros da época, teria uma repercussão muito negativa para o governo brasileiro. Prestes gozava de prestígio mundial como o “Cavaleiro da Esperança”.

EC – A deportação foi um ato desumano e uma ilegalidade, não?
Anita – Olga foi extraditada no sétimo mês de gravidez de um filho brasileiro, o que lhe dava direito a permanecer no Brasil pela legislação então vigente no país.

EC – Ao reconstruir a trajetória de Olga, a senhora fala de sua própria história. Que sentimentos o livro evoca? Para a senhora, quem é Olga Benário?
Anita – Minha mãe foi sempre a grande inspiração da minha vida. Acima de tudo ela foi uma comunista convicta e abnegada, disposta a dar a própria vida pela causa da revolução, que abraçara desde muito jovem. Embora eu não tenha nenhuma lembrança dela, pois fomos separadas quando eu estava com 14 meses de idade, fui educada pela minha avó paterna Leocadia Prestes e minha tia Lygia, conhecendo e admirando a vida da minha mãe. Da mesma forma, meu pai sempre me orientou no sentido de conhecer e seguir seu exemplo.

EC – O que a correspondência entre seus pais revela?
Anita – São cartas inéditas, que a censura da Gestapo não permitiu que fossem entregues aos seus destinatários. A correspondência entre meus pais é reveladora do grande amor que os unia e da coragem com que enfrentavam a terrível situação a que estavam submetidos: Olga na prisão e nos campos de concentração nazistas e Prestes preso e incomunicável no Brasil durante nove anos.

EC – A senhora afirmou que se considera “filha da solidariedade internacional”. Por quê?
Anita – Minha libertação pela Gestapo e entrega à minha avó paterna Leocadia só foi possível graças à campanha internacional por ela encabeçada e que comoveu profundamente a opinião pública mundial da época. A documentação da Gestapo é reveladora da pressão exercida sobre as autoridades do III Reich pela solidariedade internacional levada adiante por essa campanha.

EC – Qual a importância do filme Olga, de Jayme Monjardim (2004), que opta pela narrativa de novela, para a popularização da história de Olga e Prestes?
Anita – Conforme foi dito à época pelo próprio diretor do filme, seu objetivo foi narrar a história de amor entre os dois personagens principais. Embora este possa ser considerado um ponto débil da obra, o filme emocionou e continua emocionando um público numeroso e contribuiu para divulgar a história dos meus pais e denunciar o crime cometido por Getúlio Vargas com a extradição ilegal da minha mãe para morrer numa câmara de gás da Alemanha nazista.

EC – Em que medida seu livro desconstrói uma eventual narrativa heroica ou mitológica sobre Olga?
Anita – Meu livro, baseado em rica documentação, produzida pela própria Gestapo, é revelador da evidência dos fatos acontecidos com Olga. É revelador da inaudita violência praticada pelas autoridades do III Reich contra milhões de homens, mulheres e crianças, a grande maioria sem nenhuma culpa formada.

EC – No livro Luiz Carlos Prestes – Um Comunista Brasileiro (Boitempo, 2015), a senhora aborda as preocupações intelectuais de seu pai. Quem foi e qual a importância de Prestes no contexto histórico do país?
Anita – Luiz Carlos Prestes foi um revolucionário que dedicou a vida à luta por justiça social e liberdade para o povo brasileiro, um comunista convicto de o socialismo ser o único caminho para a humanidade sair da pré-história, conforme postulou Karl Marx, e chegar ao comunismo – um regime efetivamente igualitário em que cada um irá contribuir de acordo com sua capacidade, recebendo segundo suas necessidades. O compromisso de Prestes foi sempre com o socialismo revolucionário. Sua vida política ficou marcada pelo repúdio constante às tendências reformistas, ou seja, à possibilidade, que considerava ilusória, de se alcançar o socialismo apenas por meio de reformas, sem a tomada do poder. Considerado pelos liberais um político inflexível e inábil, provocou o ódio das classes dominantes e dos intelectuais a seu serviço, uma vez que jamais abdicou dos ideais aos quais dedicou sua vida. Sua ruptura em 1930 com os donos do poder foi um gesto inaceitável para as classes dominantes no Brasil, que nunca perdoariam sua opção pelos trabalhadores e, de maneira geral, pelo explorados. Eis a razão por que recorreram sempre ora às calúnias contra o líder comunista, ora ao silêncio ou à falsificação de sua trajetória como forma de apagar o legado do Cavaleiro da Esperança da memória das novas gerações de brasileiros.

EC – Sua convivência com ele foi interrompida diversas vezes por conta das perseguições e exílios de ambos. Como foram essas separações?
Anita – O maior período de afastamento do meu pai – após tê-lo conhecido aos 9 anos de idade, quando ele saiu da prisão em 1945 – deu-se durante minha adolescência, de 1948 a 1957, quando ele teve que viver na clandestinidade devido à perseguição policial então desencadeada contra os dirigentes comunistas. A partir de 1958 até seu falecimento em 1990, sempre mantivemos contato seja na legalidade, na clandestinidade ou no exílio. Tornei-me sua colaboradora na atividade política que desenvolvia à frente do Partido Comunista Brasileiro e, após termos rompido com a direção desse partido, continuei a assessorá-lo até seu falecimento. Como muitos outros brasileiros, sempre fomos perseguidos pelas forças de direita, reacionárias e anticomunistas em nosso país, principalmente nos períodos ditatoriais, o que nos obrigou a passar anos na clandestinidade ou no exílio.

EC – Como vê o contexto do Brasil pós-golpe de 2016?
Anita – Vivemos um momento extremamente penoso para nosso povo, resultado, em grande medida, do golpe parlamentar jurídico perpetrado há um ano, quando assumiu a presidência do Brasil Michel Temer, um usurpador, que não foi eleito pelos brasileiros. O objetivo do golpe está cada vez mais evidente: liquidar as conquistas dos trabalhadores alcançadas através de muita luta durante décadas, entregar a Petrobras ao grande capital internacionalizado, privatizar os setores da economia nacional que ainda não o foram.

EC – A senhora está escrevendo um livro sobre suas próprias memórias. Pode falar sobre esse projeto?
Anita – Dada a insistência de muitos companheiros e amigos, estou tentando produzir um livro com as minhas memórias, o que, em certa medida, se justifica pelo fato de durante a minha já longa trajetória de vida ter enfrentado as vicissitudes das perseguições movidas contra meu pai e nossa família, assim como ter eu mesma participado ativamente da vida de Prestes e do movimento comunista. Atravessei momentos históricos conturbados no Brasil e fui forçada a passar longos períodos no exílio. Fui processada e condenada pelos tribunais militares da ditadura brasileira instalada em 1964, tive os direitos políticos cassados, fui anistiada e acompanhei meu pai nos embates internos do PCB, partido do qual cheguei a ser dirigente e do qual me afastei junto com Prestes. Minha memória guarda o registro de múltiplos acontecimentos inéditos e fatos pouco conhecidos ou falsificados pelos meios de comunicação a serviço dos interesses dos donos do poder. Imagino que a escrita de minhas memórias poderá constituir um complemento válido à biografia política de Luiz Carlos Prestes, que publiquei sob o título Luiz Carlos Prestes – um comunista brasileiro. Por enquanto, não sei quanto tempo vai levar a elaboração desse trabalho.

A AUTORA

Anita Leocadia Prestes nasceu em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, na Alemanha nazista. Filha dos revolucionários comunistas Luiz Carlos Prestes, brasileiro, e Olga Benario Prestes, alemã, foi afastada da mãe aos 14 meses de idade. Antes de vir para o Brasil, em outubro de 1945, viveu exilada na França e no México, com a avó paterna, Leocadia Prestes, e a tia, Lygia. Em 1964, graduou-se em Química Industrial pela Escola Nacional de Química da antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1966, obteve o título de mestre em Química Orgânica. Devido à atuação clandestina nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi perseguida pelo regime militar instalado no país a partir de 1964, sendo obrigada a exilar-se, no início de 1973, na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Julgada à revelia em julho de 1973, foi condenada à pena de quatro anos e seis meses pelo Conselho Permanente de Justiça para o Exército brasileiro. Em dezembro de 1975, Anita Prestes recebeu o título de doutora em Economia e Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou. Em setembro de 1979, com base na primeira Lei de Anistia no Brasil, a Justiça brasileira extinguiu a sentença que a condenou à prisão. Em seguida, Anita voltou ao Brasil. Desde 1958, até o falecimento de Prestes, em 1990, atuou politicamente ao lado do pai tornando-se sua assessora. Autora de vasta obra sobre a atuação política de Prestes e a história do comunismo no Brasil, é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.

FONTEJornal ExtraClasse