sábado, 15 de agosto de 2015

Basil Davidson e «O Fardo do Homem Negro»

Por Miguel Urbano Rodrigues 

A África foi até muito recentemente um continente sem História escrita. Cabe a Basil Davidson o mérito de nos seus livros ter iluminado o passado esquecido da África que em plena Idade Media construiu estados multinacionais organizados, mais extensos do que as grandes potências da época.


Fui amigo de Basil Davidson (1914-2010) e li quase todos os seus livros. 

Desconhecia a existência de O Fardo do Homem Negro, cuja tradução em português foi publicada em Luanda no ano 2000*.

Creio ser dos mais importantes. O título é uma réplica irónica ao Fardo do Homem Branco, do escritor inglês Rudyard Kipling, epígono do imperialismo.

Davidson combateu na segunda guerra mundial como oficial do exército britânico. Bateu-se na Jugoslávia e na Itália ao lado dos guerrilheiros que enfrentavam os ocupantes alemães.

Foi uma personagem fascinante sobre a qual escrevi muitas páginas. Trocamos correspondência durante o meu exílio brasileiro, mas só o conheci em Lisboa, após o 25 de Abril. A admiração que me inspirava foi prólogo de uma grande amizade.

A sua paixão pela África nasceu tarde, mas cresceu torrencialmente. Fez dele, como assinalou a New York Review of Books, «o mais ilustre conhecedor da África Negra».

A leitura da sua obra de historiador é hoje indispensável ao conhecimento do doloroso processo de descolonização da África Subsaariana.

Não assumiu uma posição de distanciamento. Como escritor, historiador e professor (em Universidades da Inglaterra, dos EUA e da África) tomou partido pelos que lutavam no Continente pela liberdade e pela independência dos seus povos.

Que eu saiba foi o único europeu a ser guindado pelos governos de antigas colónias portuguesas a herói da Guiné Bissau, de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique.

Nas páginas de O Fardo do Homem Negro sintetiza uma parcela do saber que adquiriu no estudo de um continente humilhado e saqueado.

O Fardo do Homem Negro empurra o leitor para uma reflexão profunda sobre a tragédia de um Continente que durante séculos exportou escravos para a América. 

Não há estatísticas credíveis, mas os demógrafos admitem que 19 milhões de homens e mulheres foram arrancados das suas aldeias africanas e transportados como mercadoria para o outro lado do Atlântico. Mais de um terço pereceu durante a travessia nos porões infectos dos navios negreiros.

Terminado o tráfico infamante, a África foi partilhada em l884 na Conferência de Berlim como se fosse um gigantesco parque zoológico. Disraeli e Bismark, ao atribuírem territórios densamente povoados a países europeus, retalharam o Continente quase a régua e compasso, traçando fronteiras que separaram povos com origens, tradições e línguas comuns.

Essas fronteiras, artificiais, não refletem regiões naturais nem os limites de diferentes grupos étnicos.

Os capítulos do Fardo do Homem Negro sobre a descolonização, o nacionalismo e o tribalismo contribuem para desmentir a historiografia africana dos colonizadores europeus, iluminando uma África desconhecida, muito diferente da apresentada por aqueles que a oprimiram e devastaram.

Foi inesperado no após guerra o vendaval da descolonização, iniciado com a independência de Gana em 1957 e da Guiné Conakry em 1958.

A resistência das burocracias britânica e francesa aos movimentos independentistas foi forte. Em l959,o secretário do Colonial Office declarava em Londres: «não é ainda possível perspectivar uma época em que seja possível a um governo britânico transferir as suas responsabilidades finais pelo destino e pelo bem-estar do Quénia”. O governador da colónia, sir Philips Mitchell, escreveu então: “Como é primitivo o estado destas pessoas (…) como é deplorável o caos espiritual, moral e social em que se encontram». 

Mas os quenianos conquistaram a independência em 1963 após a insurreição armada dos Mau Mau cujo chefe, Jomo Kenniatta, foi o primeiro presidente da Republica.

Em l957,o governador do Tanganika, sir Edward Twining, definiu como agitador «um tal Julius Nyerere», sugerindo aos funcionários superiores da administração que evitassem contactos com ele e «não o recebessem». Essa a opinião que formara do homem que seria um dos maiores dirigentes africanos da segunda metade do século XX.

A Historia desmentiu esses admiradores de Rudyard Kipling.

O Tanganica proclamou a independência em 1961, Uganda em l962,o Malawi e Zâmbia em 1964.

A França, envolvida em guerras coloniais no Magreb, acreditou que poderia resistir no Sul à vaga independentista. Projetou criar duas grandes federações que agrupariam as doze colónias da África Ocidental e Equatorial no âmbito da União Francesa. Esse sonho utópico logo se desvaneceu. Todas essas colónias e Madagáscar proclamaram a independência em l960.

A independência económica não acompanhou, porem, a política. 

Ao colonialismo tradicional sucedeu nas jovens repúblicas africanas um neocolonialismo cujos mecanismos de exploração, menos transparentes, não são menos cruéis.

Atualmente a África Subsaariana continua a ser exportadora da riqueza produzida. O volume de capitais saído é muito superior ao total da ajuda recebida, como Davidson lembra no seu livro, apoiado em documentação oficial.

Os governantes africanos que sucederam aos procônsules do colonialismo foram inicialmente, com raras exceções, dirigentes formados em universidades europeias. Essa elite tudo fez para implantar nos seus países os modelos da «democracia representativa» britânica e francesa. Ora nas sociedades africanas inexistiam as classes sociais que na Europa são teoricamente a fonte dos partidos políticos. 

Essa opção pelos dirigentes «instruídos e civilizados» ignorou as chefias tradicionais e a riqueza das culturas étnicas africanas, definidas pelos políticos educados em Londres e Paris como tribalistas e retrógradas, incompatíveis com o progresso.
Tremendo erro esse.

A África foi até muito recentemente um continente sem História escrita. Cabe a Basil Davidson o mérito de nos seus livros ter iluminado o passado esquecido da África**que em plena Idade Media construiu estados multinacionais organizados, mais extensos do que as grandes potências da época. Entre outros, Gana, Mali, Songhay e Kanem.

É conhecido o desfecho das fracassadas caricaturas de democracias de modelo ocidental: guerras civis como as da Libéria e Serra Leoa e a de Biafra na Nigéria, e ditaduras sanguinárias lideradas por tiranos como Mobutu, Bokassa e Idi Amin.

A tentativa de implantar em África o socialismo, esboçada pelos movimentos revolucionários do MPLA, da FRELIMO e do PAIGCV, também fracassou. Quando os guerrilheiros que haviam combatido com heroísmo o colonialismo português e o imperialismo saíram do mato para as cidades ficou transparente que o projeto programático de partidos que pretendiam aplicar o marxismo na transformação de sociedades arcaicas era utópico. Hoje, a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique estão plenamente integrados no sistema capitalista. Com uma peculiaridade: nos três o capitalismo implantado justifica o qualificativo de «selvagem», diferenciado das fontes que o inspiraram.

Faço minha a opinião do historiador britânico Eric Hobsbawm: O Fardo do Homem Negro «é um livro de importância maior (…) não é só da África que fala, mas também de etnicidade, de nações e de problemas da vida em sociedade em qualquer parte do mundo.»

*Basil Davidson, O Fardo do Homem Negro, Editora Caxinde, Luanda, 2000.
* *Basil Davidson, A Descoberta do Passado da África, Sá da Costa, Lisboa,1981.


 
Basil Davidson: Bristol, 9 de Novembro de 1914 – Londres, 9 de Julho de 2010

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