Por Romulo Mattos
Certo dia, estava na sala dos
professores do curso de Comunicação Social da PUC-Rio, papeando com
colegas de trabalho, quando entrou Silvio Tendler. A sua chegada fez com
que todos ali interrompessem suas conversas, para saudá-lo. Notei um
respeito e um carinho generalizados, o que é ainda mais significativo
diante do fato de que nem todos ali compartilham de seus ideais
políticos. Com o tempo, vi que a sua entrada naquele recinto é sempre um
evento que suspende a rotina. Quando a poeira baixou, apresentei-me a
Tendler, que ficou interessado quando lhe revelei que recomendava seus
filmes Os anos JK – uma trajetória política (1980) e Jango (1984) para
os alunos dos meus cursos de História do Brasil. Ele ficou agradecido, e
logo lhe falei sobre o projeto do blog Junho. Não me decepcionei com a
sua disposição para discutir a atuação da esquerda no tempo presente, e
fiquei mesmo entusiasmado quando Tendler perguntou se o blog aceitava a
contribuição de um marxista não ortodoxo. “É claro que sim”,
respondi-lhe, “e acho que você pode começar concedendo uma entrevista
para o Junho”, completei, tendo sido a minha proposta contemplada com o
seu aceno de cabeça positivo. Marcamos a nossa conversa para a semana
seguinte, e o resultado desse encontro é visto a seguir. A sua rica
trajetória, assim com a sua formação política, nos permitiu abordar
assuntos diversos, como: o seu envolvimento inicial com o movimento
cineclubista nos anos 1960 e as lembranças de uma época em que a
presença da esquerda no campo cultural era forte; os duros e nem sempre
leais embates com os militares, no passado e no presente; a sua formação
em História na França, nos anos 1970, e os movimentos intelectuais
compromissados com a transformação social com os quais se envolveu, no
mesmo país; os bastidores e o espírito de época relacionados com os seus
filmes mais lembrados pelo público; o seu contundente posicionamento em
relação à democratização do acesso a produtos culturais na internet; a
reivindicação no sentido de que a esquerda continue a sua participação
no processo aberto pelas Jornadas de Junho; e a sua concepção de artista
engajado e de professor universitário formador de opinião. É sempre bom
ler o que Tendler pensa sobre a política, a cultura e a sociedade
brasileiras, em uma perspectiva histórica. Afinal, trata-se de um dos
mais importantes documentaristas brasileiros, que há décadas dialoga
intensamente com temas caros ao campo da esquerda em sua obra.
Romulo Mattos: Você pode falar sobre a sua trajetória inicial? Como você chegou ao ramo do cinema e quais foram as suas influências?
Sílvio Tendler: Eu
nasci em 1950, na Tijuca, então eu tinha 14 anos em 1964. É fácil fazer
as contas, porque eu nasci em 1950, logo, são anos redondos. Eu era de
uma família de classe média liberal de Copacabana. Meu pai era advogado,
minha mãe era médica, mas sempre votavam de forma progressista, votavam
para presidente no Juscelino Kubitscheck, no Henrique Teixeira Lott.
Quando veio o golpe de 1964, foi uma grande porrada na gente. Nós éramos
dos poucos na rua que tínhamos essa visão liberal de mundo; a maior
parte era lacerdista, udenista. Então, para nós, conviver com aquele
golpe de Estado foi complicado, porque tínhamos que protestar discreta e
silenciosamente, ou viria a repressão em cima. Sempre fui muito
politizado, desde pequeno, desde dez, doze anos eu lia jornais
políticos, acompanhava, andava com a espadinha do marechal Lott. Em
1965, com quinze anos, eu fiz a campanha do Negrão de Lima [para o
governo da Guanabara]. Então eu fui me politizando, e era um momento em
que a arte e a política se cruzavam, tinham uma interseção. Com a
repressão de 64, a cassação dos deputados, a expulsão dos militares das
Forças Armadas e o fechamento dos sindicatos e da UNE [União Nacional
dos Estudantes], o que restou de reação ao golpe de 1964 foram os
jornalistas, os intelectuais, os articulistas, os escritores, o teatro, a
música e, um pouco menos, o cinema. E então eu comecei a entrar nesse
movimento cultural e político, que era uma reação possível ao golpe de
Estado, e a fazer coisas culturais e, ao mesmo tempo, políticas. Entrei
no movimento cineclubista em 66, mais ou menos. Em 1965 teve um festival
de cinema do Jornal do Brasil, feito por amadores, e comecei a
ver que podia fazer cinema também (eu tinha 15 anos). Eu comecei a me
mobilizar, política e culturalmente. Fazendo cineclube e começando a
participar das manifestações estudantis fui dando essa guinada à
esquerda na minha vida, mais radical que a dos meus pais, que eram
liberais. E comecei a estudar, ler muito História e, através do
cineclubismo, a gente tinha também uma militância política. Eu tinha um
amigo que me colocou na mão os livros de Nelson Werneck Sodré. Comecei a
ler aqueles livros e falei: “Isso aqui dá verdadeiros filmes”. Comecei a
pensar no cinemão, com aquelas histórias que o Werneck Sodré contava na
História Militar do Brasil e tal… Eram filmes épicos. Então eu comecei nessa coisa de querer fazer filmes. Um dia eu li o livro do Edmar Morel, A Revolta da Chibata,
e descobri que o João Cândido Felisberto, que foi o comandante da
Revolta da Chibata, estava vivo, morava em São João de Meriti e tinha
dado uma entrevista para o Museu da Imagem e do Som. Eu fui lá, falei
com o Ricardo Cravo Albin, que era o diretor, e ele falou: “O filho do
João Cândido, o Candinho, trabalha comigo na SUNAB [Superintendência
Nacional do Abastecimento]”. Eu logo falei: “Então você me apresenta a
ele?” “Apresento.” “Queria conhecer seu pai.” Ele me levou, eu fui à
casa do João Cândido, o filmei, e foi meu primeiro filme, inacabado,
porque veio uma repressão em cima da gente. O pessoal que estava
guardando a cópia ficou com medo, queimou, perdeu-se o material, mas
ficou aquela semente que não me tirou do cinema nunca mais.
Romulo Mattos: O interessante é que você citou jornalistas e historiadores. Você não citaria cineastas como influência?
SílvioTendler: Sim,
sim, nessa época eu vi muito filme… Eu frequentava bastante a Cinemateca
do MAM [Museu de Arte Moderna], era um movimento forte… Primeiro, o
Cinema Novo estava na crista da onda. Publicava-se sobre cinema nas
páginas culturais como se publica hoje sobre rock. Então o cinema era
uma coisa que era importante. Eu era vizinho do Zelito Viana, que era o
produtor do Glauber Rocha, do Terra em Transe, e a casa dele
era frequentada pelo Eduardo Coutinho, Leon Hirszman, e eu vi essa gente
toda. Pude trabalhar num filme de Paulo Alberto Monteiro de Barros, que
depois virou Artur da Távola. Comecei a frequentar essa gente, a ver
essa gente de perto, frequentar os bares de Ipanema que eles
frequentavam. O bar do MAM era um ponto de encontro de artistas,
intelectuais. Eu, com 18 anos, tomando cafezinho do lado de Caetano
Veloso, Jards Macalé, Gilberto Gil, Rubem Gerchman, Leon Hirszman. Então
foi acontecendo, os caras davam os filmes deles para a gente através da
Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, que os distribuía, a gente
distribuía os filmes, então eu fui entrando nesse mundo de cinema. No
MAM, eu vi os filmes proibidos, com Cosme Alves Netto, que passava
escondido para gente os filmes do MAM, os filmes clássicos. Eu vi
escondido no MAM O encouraçado Potemkin, os filmes do Chris
Marker, independentes, uns desenhos animados que vinham do leste da
Europa. Fui conhecendo esse mundo através da arte e do cinema e também
conhecendo o mundo do socialismo.
Romulo Mattos: Você falou sobre como chegou ao cinema. A sua obra política tem um auge em termos de reconhecimento de público, que é o Jango,
de 1984. Mais de um milhão de pessoas foram assistir ao documentário e
essa é uma marca fenomenal. Queria que você falasse sobre esse contexto.
Sílvio Tendler: Na verdade, aquele era um momento de fim de ditadura. Eu acho que Os anos JK fez um pouco menos de público do que Jango,
porém, muito mais por uma questão de falta de estratégia comercial
minha do que pelo valor cinematográfico. Esse foi o primeiro filme que
eu fiz contra a ditadura, em 1980, e ele fez 800 mil espectadores. Mas
eu ainda não tinha, na verdade, a noção dessa coisa comercial do cinema,
de que eu tinha direito de ficar quantas semanas o filme fosse dobrando
a renda da semana anterior, então eu deixei tirar de alguns cinemas.
Mas ele fez 800 mil espectadores, o que equivale a um milhão do Jango,
ou mais. Então o primeiro filme que destampou a questão da ditadura, o
primeiro filme falando de democracia no Brasil, contra o golpe de
Estado, foi Os anos JK. E depois veio o Jango, que fez um milhão.
Romulo Mattos: Jango e JK também foram sucessos de venda em VHS e DVD? Foram bem nesses formatos?
Sílvio Tendler: Muito
bem. Até hoje vende, está nas livrarias. Uma coisa que as pessoas não
entendem é que não é incompatível colocar de graça na internet e vender
na livraria. Tem gente que tem paixão por ter aquela cópia, que não quer
ter aquela cópia mimeografada. Porque o Youtube é um
mimeógrafo, né? Então você quer ter aquela cópia original, e vende tão
bem quanto. Para mim é legal. Respeito os dois públicos.
Romulo Mattos: E a opção por falar desses dois personagens naquele contexto de abertura política…
Sílvio Tendler: Vem um
pouco do lado histórico e do lado cinema. O lado histórico é que eu
queria mostrar que, no Brasil, tinha havido uma democracia e que tinha
funcionado. Os milicos diziam que não dava para ter desenvolvimento com
democracia. Eu quis provar com JK que era possível ter desenvolvimento e democracia. E Jango
era a justiça social. Esse lado história… E tem o lado cinema também,
porque eu sempre quis fazer documentário. Arranjei um produtor, o Hélio
Ferraz, e ele disse: “Olha, eu topo entrar, mas não quero perder
dinheiro com cinema”. Naquela época era um dinheiro bom, não tinha
dinheiro para cinema político. Ele pegou dinheiro da conta bancária dele
e bancou. “Não quero perder dinheiro com cinema”, frisou. Então vamos
fazer um filme cujo tema seja interessante. Em vez de fazer um filme que
seria generalidade, a luta contra a ditadura, a resistência, peguei um
personagem que era querido, o JK, depois peguei o Jango, porque eu
aprendi com o Joris Ivens que o cinema documentário tem que passar
emoção, tem que ter personagens. Então eu peguei JK e Jango como
personagens. E deu certo.
Romulo Mattos: Nesses dois filmes, Jango e JK,
você tem uma leitura da História do Brasil muito parecida com a da
Sociologia Paulista do Octavio Ianni, do Francisco Weffort. Você fazia
essas leituras? Havia outras importantes?
Sílvio Tendler: Sim,
sim… Eu sou historiador e, na verdade, eu me descobri na História.
Sempre fui um péssimo aluno em todas as disciplinas, eu tinha nota
vermelha em tudo, curiosamente, à exceção de História. Só que, para uma
família de imigrantes judeus e tal, História não era uma profissão
legal. Profissão para a gente era Direito, Medicina, Engenharia, então
nunca me passou pela cabeça a possibilidade de fazer um curso, uma
graduação em História. Eu queria ser advogado, médico, essas coisas. Eu
me matriculei em História absolutamente por acaso. E então, quando eu me
matriculei em História na Universidade Paris VII, Jussieu, em 1972, eu
descobri minha paixão pela História. Um dos movimentos mais importantes
de que eu participei, que nasceu justamente na Paris VII, foi o L’Histoire, pour quoi faire?
(“A História, para quê?”), em que grandes professores de História
resolveram discutir, naqueles anos pós-1968, o sentido da História. E
tinha o Jean Chesneaux, o Georges Boudarel, o meu grande mestre, que
depois se meteu numa enrascada lá na França… Mas eu acho que esse
movimento foi o que me impulsionou muito a pensar as formas possíveis de
utilização da História, o cinema sendo uma delas. Por isso, a minha
influência de História, por ter morado na França de 1972 a 1976, ter me
graduado lá, é muito mais francesa do que brasileira. Eu li muito mais
os historiadores da Escola dos Annales – Marc Ferro, Jacques Le Goff,
Pierre Nora –, do que os paulistas. Havia uma influência subjetiva dos
paulistas na medida em que era o que circulava. Eu estudei aqui na PUC
em 1969, fiz ciclo básico, na época era ciclo básico, todo mundo junto,
depois, no segundo ano, definia. Mas eu estudava para Direito. Na época,
o que estava na moda mesmo era O colapso do populismo no Brasil,
do Ianni, era um livro que você lia, e um pouco Florestan Fernandes e
tal. Mas eu os achava muito rebuscados, muito intelectuais demais, muito
abstratos demais para discutir a questão política concreta. Então meu
caminho era mais cinema, biografia de cineastas, cineastas políticos,
filmes políticos, como o neorrealismo italiano, por aí, do que
propriamente essa Sociologia paulista. Mas talvez eu tenha uma
influência sutil dos meus colegas de faculdade. E eu tive aqui bons
professores de Sociologia, eu fiz a época áurea da Sociologia na PUC,
tinha a Helena Levy, da direção, tinha o Werneck Vianna, que dava aula, a
Maria Lúcia, que dava aula, filha do Chico Teixeira, José Nilo Tavares.
Eu tinha grandes professores em História também, o Ilmar Mattos, o
Edmundo Fernandes Dias, o Manuel Maurício de Albuquerque. Enquanto isso,
as outras faculdades do Rio eram muito reprimidas pela ditatura… Eu
comecei a frequentar o IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro], mas os professores foram
demitidos, alguns vieram até dar aula aqui. Eu tive cursos aqui com o
Américo Peçanha, que é um craque de Filosofia. Eu tive grandes
professores, mas a minha influência não era tão paulista assim. Talvez
essa tenha sido a visão que o filme passou.
Romulo Mattos: Estamos falando sobre o Jango e o JK. Você teve problemas com a ditadura por conta desses dois filmes?
Sílvio Tendler: O JK,
quando estava começando a fazer, o Hélio Ferraz foi muito ameaçado.
Ameaçaram-no para parar o filme, parar de produzir. Ele teve um gesto
corajosíssimo, continuou. E quando o filme estava pronto, coincidiu com a
abertura política. Quer dizer, o filme que era para dar xabu,
virou exemplo de reconstrução democrática. Fez muito sucesso por conta
disso. Abriu a porteira. Quando ele começou a passar em cinema, ia ser
um fracasso total. Mas na semana em que ele estava no ar, e já ia sair,
mataram a secretária do presidente da OAB [Ordem dos Advogados do
Brasil], dona Lyda Monteiro da Silva. Então o JB deu uma chamada na
primeira página: “Veja ‘Os anos JK’, uma lição de democracia”. O filme,
que estava condenado ao fracasso, virou naquele momento um exemplo de
luta política necessária para não perdermos o que havíamos adquirido,
evitar o retrocesso, e então ele estourou. Jango tem uma
história parecida, porque fiz uma sessão dele para a censura, para
passar no Festival de Gramado, em 1984, e essa sessão é meramente
formal. Você passa o filme, eles aprovam para o festival, depois é que
vai passar para censura de verdade. Quando ele passou para a censura,
visando o Festival de Gramado, no meio do filme a censora parou e falou:
“Não tenho condições de aprovar esse filme. Esse filme aí não dá. Vocês
têm que se virar”. Então ela deu a dica. Voltou para casa pegando
carona com o meu assistente e falou para ele: “Bota a boca no trombone
porque vocês nunca vão aprovar esse filme”. Ele fez uma sessão a portas
fechadas para toda a imprensa, que se manifestou em bloco, aí o filme
foi liberado, com censura livre, e atingiu a marca de um milhão de
pessoas, como você falou. E virou o filme das Diretas Já.
Romulo Mattos: Na verdade, seu primeiro projeto foi um projeto inacabado por conta da presença da ditadura, né?
Sílvio Tendler: Foi o João Cândido.
Romulo Mattos: Houve outros episódios de problemas com a ditadura?
Sílvio Tendler: Outros problemas assim de censura, ditadura, houve não diretamente comigo, mas havia a censura dos filmes, do Jevous salue, Marie,do
Godard, que nos atingiu. Eu não estava presente, não fui naquele dia,
mas o Fernando Gabeira foi preso, o Roberto Amaral foi preso, porque
resolveram passar na marra o Je vous salue, Marie. Os artistas
sofreram muito com a ditadura. Mas os problemas mais sérios que eu tive
com a repressão não estavam diretamente ligados aos cinema, embora
tivesse alguma relação. Eu era cineclubista, como falei, e, em 1969, um
companheiro cineclubista sequestrou um avião para Cuba. Como o Brasil é o
país do afeto, ele resolveu se despedir de mim. Quando a ditadura soube
que ele tinha se despedido de mim, veio atrás. Eu ia tomar porrada, ia
resistir bravamente, não ia falar nada. Não que eu fosse valente, mas
porque eu não sabia, eu não sabia de nada, então eu ia ser trucidado
pela ditadura. Fiquei dois meses clandestino. Minha mãe conseguiu ajudar
a me salvar. Foi um episódio muito difícil. Em 1971, eu morava no Chile
do Allende… Mandei uma carta para minha mãe pela mesma pessoa que
trouxe a carta do Rubens Paiva. Minha mãe foi presa, humilhada, foi um
negócio terrível. Nesse sentido, sim, eu tive problema com os militares…
Ditadura brava, metralhadora na minha casa, meu irmão com metralhadora
na cabeça, minha mãe conduzida de capuz até o DOI-CODI [Destacamento de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna]. Foi
barra pesada.
Romulo Mattos: Podemos
fazer um nexo com o tempo presente porque, em 2012, você entrou em
conflito com o Clube Militar. Você está à vontade para falar sobre isso?
Sílvio Tendler: Sim. Em
2012 eu estava tetraplégico. Os militares, desrespeitando a presidente
da República, que tinha determinado que os militares não comemorassem o
golpe de 64, marcaram uma cerimônia de comemoração no Clube Militar.
Ninguém sabe, mas o Clube Militar é um prédio federal, público, e eles
têm aquela boca livre lá. Enfim, os militares afrontaram a presidente da
República. O pessoal jovem me pediu para fazer uma convocação, e eu a
fiz por internet, chamando as pessoas parar participar de uma
manifestação contra a manifestação do Clube Militar. E aquilo ali foi
distribuído na internet como um rastilho de pólvora. Só que um
importante líder político botou: “Sílvio Tendler convoca para
manifestação”. Eu não sou líder de massas, eu sou artista. Mas eu virei
líder de massas, virei o convocador, e os militares ficaram com ódio de
mim. Teve aquela multidão na porta, de gente indignada com aquilo que
estava acontecendo lá dentro, e houve alguns enfrentamentos. E os
milicos foram dar queixa como se eu tivesse organizado a manifestação e
tivesse participado, estivesse lá, e eu não podia sair de casa, porque
eu estava tetraplégico. Então é uma história muito louca, mas só melhora
o meu currículo.
Romulo Mattos: Foi o
Renato César Tibau da Costa, então presidente do Clube Militar, quem
abriu a queixa-crime por “constrangimento ilegal qualificado”. Você
chegou a depor?
Sílvio Tendler: Sim,
fui à delegacia, fui depor, fiz questão de ir. Também publiquei uma
carta-aberta que está na internet. Alguns advogados me sugeriram que eu
mandasse advogado no lugar, mas falei: “Não, eu quero depor, porque eu
quero desmascarar essa farsa”. Fui lá e tinha uma multidão na porta.
Então eles viram que o buraco era mais embaixo, que não dava para mentir
assim. Militar é mentiroso por princípio, né? Eles até acham que são
bons de guerra, mas eles gostam de bater na população civil. Ou são
covardes como foram na Guerra do Paraguai.
Romulo Mattos: Ou gostam de fazer golpe por telefone também. A gente está falando muito sobre JK, Jango… Houve outros filmes que você considera especialmente importantes na sua carreira, com boa acolhida pelos movimentos sociais?
Sílvio Tendler: Graças a
deus, do ponto de vista da resposta do público e do impacto que o filme
provoca na criação do debate popular, eu acho que eu sou um cineasta
bem sucedido. Eu tenho muitos trabalhos que são debatidos e, muitos
deles, inclusive, não são feitos nem com intenção comercial. Por
exemplo, A distopia do capital. Só na internet teve 140 mil espectadores. Se você pegar O veneno está na mesa 1, foram mais de 300 mil espectadores só na internet. Tem também O veneno está na mesa 2… Recentemente eu terminei Os militares que disseram não,
os que resistiram ao golpe de Estado, que a gente não sabe isso. A
gente não discute essa História do Brasil, que houve muitos militares
cassados, expulsos, presos, torturados, assassinados pela ditadura. Fiz Os advogados contra a ditadura também, que eram aquelas pessoas que, numa época em que não havia habeas corpus,
impetravam pedidos de esclarecimento nos tribunais, para que se
reconhecesse a prisão de uma pessoa e se evitasse a morte dela. Em A distopia do capital, eu falei do processo da privatização brasileira; em O veneno está na mesa 1 e 2, sobre a indústria do agrotóxico no Brasil. E tem o Utopia e barbárie, sobre as lutas políticas dos anos 1960. Tem Memória e História em Utopia e Barbárie, que é sobre a construção de Utopia e barbárie. Tem a série A era das utopias, que eu fiz para a televisão – a utopia socialista e as utopias futuras –, e agora eu estou fazendo Os sonhos interrompidos.
Romulo Mattos: Você pode falar mais sobre esse projeto atual?
Primeiramente, eu vou lá em 1790 no
Haiti, na luta do Toussaint L’Overture pelo fim da escravidão. É o
primeiro país das Américas a decretar o fim da escravidão, fazendo uma
república, e foi quase massacrado pela França liberal da Revolução
Francesa. Mas esses caras fizeram a primeira luta e vão influenciar, nos
anos 1960, a independência africana. Eu estou trabalhando, nesse
momento, com a Conferência de Bandung, quando se cria o conceito de
terceiro mundo, e estou pegando a independência da África, dos países
árabes, as lutas das frentes terceiro-mundistas, a formação do bloco dos
não-alinhados, estou trabalhando a história de uma maneira diferente,
que vai resultar numa América Latina que vai lutar contra o
imperialismo. Você tem uma América Latina que, no Brasil, é representada
muito pelo período do João Goulart, mas você tem as lutas autônomas na
Argentina, no Uruguai, na Bolívia, no Chile, que são lutas radicais
pelas transformações nas Américas. O primeiro grande herói das Américas
antes do Che Guevara é o Gabino Torres, na Colômbia, e essas coisas a
gente não está falando mais. Então estou fuxicando essa história para
trabalhar, reconstituir a história do Brasil através do cinema, e do
mundo, nesse momento.
Romulo Mattos: Você
citou a internet em diversos momentos neste entrevista. Inclusive, já
declarou que quer ser visto e que, portanto, podem copiar seus filmes e
divulga-los. Você tem uma visão progressista sobre o acesso e a
circulação de produtos culturais na internet. Gostaria de marcar o seu
posicionamento em relação a isso?
Sílvio Tendler: Sim, eu
acho que é importante dizer que 99% dos filmes brasileiros são feitos
com recursos do Estado. O mínimo que a gente pode fazer é devolver ao
povo o investimento que eles fazem no cinema. Acho que essa questão da
rentabilidade de um filme não me interessa muito, me interessa muito
mais a visibilidade. E se os filmes estão como estão, os cinemas
brasileiros estão como estão, todos eles localizados em shopping e
vendendo e induzindo a um tipo de espetáculo determinado, para mim é um
prazer que eles sejam compartilhados na internet, que as pessoas
assistam, copiem, vejam. Que você veja um filme meu, copie e passe para
seus alunos em sala de aula. É isso que eu quero, que o cinema seja
visto.
Romulo Mattos: Como você vê a questão do engajamento e o compromisso social do artista?
Sílvio Tendler: Total.
Acho que o artista, mesmo se dizendo apolítico, não engajado, ele é um
ser político, um ser engajado. O meu modelo de artista são sempre os
grandes artistas que tiveram uma ação política paralela à da criação da
arte. Pablo Neruda era mestre em sonetos de amor e era membro do Partido
Comunista. O Picasso inventou o cubismo, fazendo aquela revolução
formal na arte – inventou, brincou com coisas, fez cabra com guidom de
bicicleta –, mas ele era do Partido Comunista, e fez a Pomba da Paz, fez
Guernica. Então eu acho que os grandes artistas que são referências
para mim têm uma ação política também.
Romulo Mattos: O nome do blog para o qual você está contribuindo com essa entrevista é Junho
– logicamente, uma referência às manifestações de 2013. Gostaria que
você deixasse seu parecer sobre as transformações no Brasil nesses
últimos anos e, principalmente, sobre as Jornadas de Junho.
Sílvio Tendler: Estou discutindo isso agora em Sonhos interrompidos.
Eu acho que as Jornadas de Junho foram muito importantes na minha vida e
na vida do país, porque elas me dizem que resistir é preciso. Quando
menos a gente espera essa resistência aparece. As Jornadas de Junho, se
eu tivesse que usar uma imagem para marcá-la, seria a cena do Chaplin
acenando com a bandeira vermelha que caiu do caminhão, em Tempos modernos.
Ele acena com a bandeira vermelha para avisar ao motorista que ele
perdeu a bandeira, e vem uma multidão atrás dele. Acho que as Jornadas
de Junho foi isso, começou com os 20 centavos da passagem, e a gente de
repente percebeu que não eram 20 centavos, era um cansaço ilimitado em
relação ao que estava, ao que está ainda acontecendo com o Brasil. E
ainda está acontecendo. Eu acho esse site de vocês muito pertinente para
o debate daqui para frente. Quando eu cheguei aqui, falei que fiquei
muito emocionado com o que vi ontem na televisão, ou anteontem, um
debate do G-7 que vai ter, e uma juventude na porta disposta a ir para
porrada com bandeiras vermelhas, com a foice e o martelo, escrito
“Partisans”. Quer dizer, eles estão resgatando não a burocracia
soviética, mas a luta revolucionária dos guerrilheiros que lutaram pelo
comunismo.
Romulo Mattos: E contra o fascismo. Mas que agora também lutam pela manutenção de conquistas sociais, né?
Sílvio Tendler:
Exatamente. E políticas. Na verdade, é necessário discutir uma nova
forma de organização política, porque nós estamos num momento em que o
país está completamente desassociado, como se estivesse sofrendo de uma
doença mental, com uma cabeça inteiramente fragmentada Acho que as
Jornadas de Junho deram só o start para essa luta, e essa luta tem que continuar.
Romulo Mattos: Você
começou a entrevista falando sobre a questão cultural nos anos 60, que
era muito rica, com a esquerda presente, certamente por meio da UNE e
tantas outras instâncias. E hoje, como você vê a esquerda no campo
cultural?
Sílvio Tendler: Eu acho
que hoje o problema, muito menos que da esquerda, é o problema da
mídia. Na verdade, você tinha grandes jornais que disputavam correntes,
qual tinha o melhor suplemento literário, o melhor suplemento cultural. O
JB dava um banho. Tinha um filme em questão em que você tinha cinco,
seis pontos de vista sobre ele. E o debate durava semanas, porque os
leitores escreviam, concordavam, não concordavam, apoiavam, criticavam, e
o filme continuava. Hoje em dia você tem o bonequinho aplaudindo, uma
notinha e acabou. Você não tem um debate sobre a obra, sobre o filme. E
tem muita coisa boa na cultura brasileira hoje que passa em brancas
nuvens. A gente critica uma determinada rede de TV, mas, se a obra não
for indicada por ela, ninguém assiste. Ninguém muda o canal, ninguém
procura outros canais. Então a gente está condenado à mesmice. Mas eu
acho que hoje você tem grandes filmes, grandes peças de teatro, grandes
artistas plásticos, grandes livros, tem uma literatura excelente
acontecendo e a gente não tem é grande espaço na mídia para levar esse
debate de uma forma pública. O que a gente acha que é democracia, na
verdade, virou fragmentação. Você tem tantas publicações sobre tanta
coisa e você não tem informação nenhuma. Você não tem duas pessoas lendo
o mesmo livro, debatendo uma questão, a menos que você pertença a um
grupo de um segmento, mas no caso são aquelas 80 pessoas filiadas àquele
grupo, que discutem, mas que vão logo, logo buscar outra novidade.
Então vai ficando aquela coisa: 80 pessoas aqui, 70 ali, 50 ali… A
oposição ao pensamento único não é a dispersão, não é a fragmentação. A
gente tem que achar um meio termo, aquele espaço onde ninguém se
encontra, exatamente pelo excesso de pluralidade que existe nos gostos.
Romulo Mattos: Além de cineasta, você é professor de cinema da PUC. Qual o curso que você está dando neste semestre?
Sílvio Tendler: Estou
dando “Cinema e História”. Na primeira vez que teve esse curso no
Brasil, eu fui o professor, nos idos de 1978, quando cheguei ao Brasil,
chancelado pelo Departamento de História da PUC. Foi por isso que eu vim
parar aqui na PUC, o Miguel Pereira me convidou para a Comunicação.
Depois de velho, voltei a dar esse curso, que é muito legal, mas,
curiosamente, ele não tem atraído tantos alunos assim, não sei se a PUC
vai manter. Mas é um curso de que eu gosto muito. Acho que o casamento
do cinema com a História é tão antigo quanto a existência do próprio
cinema. Se você pegar os grandes clássicos do cinema, todos eles são
motivados pela História. Então eu gosto muito dessa relação, desse tema,
são minhas duas paixões, cinema e História. Dar um curso sobre isso é
legal.
Romulo Mattos: E qual o tema do curso deste semestre?
Sílvio Tendler: Estou trabalhando gêneros. Trabalhei primeiro a imagem do negro no cinema. Peguei o negro no começo do século, com o filme O Nascimento de uma Nação, do Griffith. Depois eu peguei Stanley Kramer, Acorrentados, e Spike Lee, Malcolm X. Em seguida, trabalhei a mulher: eu passei Julia, do Fred Zinnemann, Revolução em Dageham, do Nigel Cole, e Duas mulheres, do Vittorio De Sica. Agora estou passando filmes sobre a homossexualidade, como o Beginners, do Mike Mills, o Milk, do Gus Van Sant, o Filadélfia, do Jonathan Demme, e quero ver se passo uma coisa diferente nesse finalzinho. Quero ver se trabalho a violência policial.
Romulo Mattos: No ano
passado, você também participou do debate sobre as descomemorações dos
50 anos do golpe, abordando o cinema e a ditadura. Pelo que eu li na
época, você queria falar sobre os filmes que faziam a cabeça da
rapaziada nos anos 60 e 70. Que filmes foram esses?
Sílvio Tendler: O grande clássico dos anos 1960 que a gente era obrigado a assistir era Os companheiros,
do Mario Monicelli, que é sobre a primeira greve operária na Itália,
que é uma aula de luta política. Eu tive a honra de entrevistar o Mario
Monicelli, e lhe falei: “Nós passamos seu filme em plena ditadura,
escondido da ditadura, é um filme muito sério, muito importante”. Ele
falou: “Engraçado, para mim, aqui na Itália, ‘Os companheiros’ era uma
comédia”. Depois nós tínhamos todo o cinema francês que nos obrigava a
repensar a vida, não eram apenas filmes políticos: Godard, Truffaut, Nós que nos amávamos tanto, do Ettore Scola, seminal, Roberto Rossellini, Alemanha, ano zero e Roma cidade aberta, e também De Sica. Cinema italiano era muito importante. Em termos de cinema brasileiro, Glauber Rocha, com Terra em transe e o próprio A idade da Terra, que é uma revolução no cinema. Eles não usam black-tie, do Hirszman, é um filme legal. Do ponto de vista da contracultura, tem o Let it be, dos Beatles, que é muito bom. Acho que o cinema é a grande forma de expressão, junto com a literatura.
Romulo Mattos: E a experiência como professor de cinema? Qual é o papel que isso tem dentro da sua vida?
Sílvio Tendler: Todo.
Para mim, eu não sou um cineasta que dá aula, nem um professor que faz
filmes. Eu sou cineasta e professor. Eu acho que as duas coisas estão
muito juntas, muito casadas na minha vida. Para mim, fazer cinema é tão
importante quanto dar aula.
Romulo Mattos: E a militância no meio disso?
Sílvio Tendler: Total, amarra tudo.
Romulo Mattos: Como professor também?
Sílvio Tendler: Também, amarra tudo. Você discute com os alunos, provoca, faz cabeças. Eu acho que sem a militância não tem vida.
Romulo Mattos: Gostaria de deixar uma mensagem para o blog Junho?
Sílvio Tendler: Eu acho
essa ideia, esse debate que vocês estão abrindo, muito importante. Ele
tem que funcionar como um catalisador, que ele não morra na segunda ou
terceira edição. Que ele seja um catalisador de ideias, de debates, em
que a gente consiga criar alguma coisa muito mais forte do que tem
surgido até hoje.
Romulo Mattos: Obrigado. Foi uma imensa satisfação.
Sílvio Tendler: Obrigado a você, e vida longa ao blog Junho.
FONTE: blog Junho
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