Em cartaz no Brasil, o filme “Violeta se fue a los cielos” debruça-se sobre a trajetória da artista chilena Violeta Parra
Deni Ireneu Alfaro Rubbo
Representar avatares de personagens históricos, ainda mais aqueles de
vida e obra carregadas de explosão e tortuosidade, na tela do cinema sempre
trará incontornáveis riscos. Aplausos, vaias. Ainda mais quando o campo social
contemporâneo está completamente dominado pela cultura da imagem e do visual.
Por exemplo, em Bird (1987), de Clint Eastwood, que procura dar luz e imagem ao
percurso rebelde do músico Charlie Parker, a preocupação parece ter se centrado
mais na reconstituição e recuperação estética dos lugares e objetos da época,
expressando, no fim das contas, uma repetição do que é meramente representado,
contemplação resignada, ou melhor – para ficarmos na expressão do crítico
marxista Fredric Jameson –, um “pastiche nostálgico”, típico de uma época
sedenta pelo espetáculo da estética.
Mas talvez seja exatamente o conteúdo do perigo dessa empreitada, da
possibilidade da experiência vivida do contrassenso, que instigue ainda alguns
(poucos) autores à sua realização. Porque apresentar e trazer à tona qualquer
trajetória herética de um aventureiro(a), no sentido amplo e positivo da
palavra, é também rememorar e sacudir o pensamento e a sociedade de determinada
época. Assim, abrem-se fendas, bifurcações que buscam (re)colocar utopias e
projetos da memória social coletiva e atualizá-la, transformando cinzas em fogo.
Trata-se de uma preocupação, a um só tempo, que envolve a dimensão estética e
política, forma e conteúdo.
“Violeta se fue a los cielos”, de Andre Wood (diretor do filme Machuca), em
cartaz no Brasil, vem estimular esse terreno debruçando-se sobre a trajetória de
Violeta Parra, uma querida personagem ainda pouco difundida no Brasil. Mulher.
Chilena. Latino-americana. Mãe. Poetisa. Comunista. Índia. Pobre. Rebelde.
Violeta nasce em 1917, no mês da revolução de Outubro. As marcas que leva no
rosto a vida inteira são frutos deixados pela varíola contagiada durante a
infância, que nutre para sempre insegurança com sua beleza. Vestia-se com a
mesma simplicidade de uma camponesa, conservando os cabelos compridos e quase
despenteados, em qualquer lugar que estivesse. Fez arte do bordado, da pintura,
da cerâmica e, sobretudo, cantou: “a criação é um pássaro sem plano de voo que
nunca vai chegar em linha reta”. Nas décadas de 1950 e 1960, sua criação barroca
ecoou, continentalmente e universalmente, em meio a gerações vencidas que
entoaram seu grito em diversas contestações nos países em que triunfava o
partido dos vencedores provisórios, tanto em regimes de terror burocrático
quanto em regimes de acumulação capitalista fordista.
Andarilha, como Che Guevara, Violeta viajou para muitas regiões, sempre junto
de seus filhos, buscando e coletando a riqueza da música folclórica chilena e
latino-americana, parte de extrema sensibilidade do filme de Wood. Certamente,
foi pioneira em sua busca por uma música de raiz genuinamente popular,
semelhante a muitos sambistas no Brasil. Considerava pertencer à linha musical
da tradição camponesa, cantava sem artifícios, rusticamente, e quando sua doce
voz se entrecruzava com os dedilhados no violão, como as mãos que se juntam de
casais na primeira vez, parecia brotar da terra como um vulcão. Seguindo a
estirpe dos românticos, amou loucamente e, por isso mesmo, jamais seus
relacionamentos tiveram um curso sereno. Seu suicídio não foi exclusivamente
amoroso, mas também por ter visto a dificuldade da universalização de uma
cultura milenar relegada (“o mundo é maior do que eu imaginava”, diz à sua
filha) ao passado em nome da técnica e do progresso que jamais evitaram os
grandes desastres na periferia do capitalismo.
É preciso dizer, por fim, que o filme também contém suas fragilidades. As
tensões entre vida privada e contexto político e social que vivia o país
chileno, sem contar as mutações do mundo da Guerra Fria, são excessivamente
suavizadas. Como se fossem secundários os cruzamentos dos ritmos sociais e
culturais regionais e mundiais que eivavam à época, e como se isso não tivesse
significado na formação da visão de mundo da folclorista chilena. É imperativo,
no entanto, juntar os pedaços – ou os cacos, como preferem alguns – que fizeram
sua materialização. É difícil também entender como o filme conseguiu
simplesmente ignorar personagens que tiveram uma aproximação – inclusive pessoal
– tão íntima com Parra como, por exemplo, o músico e diretor de teatro Victor
Jara, assassinado pela contrarrevolução chilena, e o poeta Pablo Neruda.
Nesses casos, contudo, as músicas e os poemas sempre parecem salvar qualquer
dificuldade que o filme supostamente apresenta. Talvez seja aquele paradoxal
caso, mas não tão raro, de desencontro entre ritmo da protagonista e do filme –
evidentemente, com a primazia do primeiro em relação ao segundo. Amamos Violeta,
mas titubeamos se temos o mesmo sentimento apaixonado sobre o filme.
Em todo caso, o expectador brasileiro terá a oportunidade de conhecer essa
artista tão autêntica e multifacetada, tão perigosa quanto uma guerrilheira.
Para mais do que nunca, costurar, cantar e lutar pela radical diversidade na
radical unidade latino-americana dos subalternos, nos milhares de “notas de pé
de página”, como poderia dizer o escritor argentino Rodolfo Walsh, de ontem e
hoje, dos sem-teto, dos sem-terra, dos camponeses, dos indígenas, dos operários,
enfim, do conjunto heterogêneo da classe trabalhadora. Gracias Violeta.
Deni Ireneu Alfaro Rubbo é cientista
social.
FONTE: Brasil de Fato
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