O fiel é Deus
Notas sobre o mercado religioso
Por ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
RESUMO Morto de infarto no dia 8, aos 67, Flávio Pierucci registra a
dinâmica mercadológica da concorrência entre igrejas no Brasil e convoca os
soció-logos a fazer uma crítica da cultura e da economia capitalista para
entender o fim do monopólio católico no país e as disputas de evangélicos por
participação no mercado.
O sociólogo da religião não pode continuar pensando que se pode fazer
sociologia propriamente dita sem a crítica da "cultura capitalista", que passa
pela crítica da economia capitalista.
Quando uma igreja visa à maximização dos lucros e ensina seus quadros a
fazerem o mesmo por ela e também para si mesmos, e exorta os conversos e
seguidores a fazerem o mesmo, é sinal de que a lógica da esfera econômica
colonizou a lógica da esfera religiosa.
Com isso, a religião enfraquece sua principal conquista alcançada com a
modernidade, que foi a autonomização das esferas da cultura, como ensinou Max
Weber [1881-1961]. Volta atrás na história.
Muitos sociólogos de hoje veem acertadamente a religião como mercado -mercado
de bens de salvação-, mas já é mais que isso: há outras metas a alcançar,
inclusive as de conteúdo material. No mundo ocidental contemporâneo, isto é, na
sociedade secularizada, há grande competição entre diferentes religiões, e o
crescimento de umas e outras depende do declínio de pelo menos alguma outra, em
número de seguidores, num jogo de soma zero, evidentemente.
DESREGULAÇÃO A dinamização recente da concorrência entre os diferentes
produtores e vendedores religiosos -diferentes religiões, igrejas e outros
grupos de culto institucionalizados- pode ser entendida como consequência
histórica e em linha direta da desregulação republicana da esfera religiosa.
Sobretudo na América Latina, tal processo significa a perda pelo catolicismo de
sua reserva de mercado. Acabou-se o monopólio católico.
Com a possibilidade assim aberta de ativação acrescida de seus agentes num
mercado religioso desmonopolizado, foram sendo alcançados pouco a pouco níveis
mais exigentes de pluralismo religioso, de demarcação mais nítida da diferença
religiosa e, por que não, de conflitividade multidirecional, por conta dos
níveis mais altos de envolvimento reflexivo dos próprios agentes religiosos com
a ideia mesma de competição religiosa legítima, "natural".
Segue-se a crescente dinamização racionalizada da oferta dos bens de salvação
que os profissionais da religião criam ou, cada vez mais, copiam uns dos outros,
cuja distribuição reciclada administram sempre de olho na resposta dos muitos
adversários.
Cresce mais quem faz melhores ofertas; criar novas necessidades religiosas é
imperativo, regra do mercado. Nesse "métier", vale apontar desde já, têm se
esmerado os pentecostais e neopentecostais, mas não só. A febre é altamente
contagiosa. É toda uma positividade de imagem proativa que termina por granjear
mais prestígio e legitimidade social para as religiões ou religiosidades que
melhor souberem vender seu peixe.
E, já que liberdade religiosa hoje em dia se pratica em chave de
livre-concorrência, todos os profissionais religiosos responsáveis por esse
burburinho são os primeiros a dizerem-se interessados (interessados por
enquanto, é só o que por enquanto faz sentido) em mais e mais liberdade de
crença, culto, expressão, propaganda e marketing. Assim como em mais isenção
(quando não evasão) fiscal, "que ninguém é de ferro!".
Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes econômicos, e as
igrejas, de empresas. São, agora, também políticos, uma vez que tudo isso
acarreta uma crescente necessidade, por parte das igrejas competitivas, de se
fazerem representar no Parlamento, às vezes com partido próprio, de onde podem
defender seus interesses com a segurança jurídica e econômica costurada na lei,
que ajudam a criar ou a rejeitar.
Como resultado da desregulação, o que se tem é essa abundância de
profissionais religiosos, que vemos, em inaudito ativismo, a suprir o mercado de
novidades religiosas, serviços espirituais, bens simbólicos e os mais variados
artigos de consumo, gerando, em decorrência, teores mais altos de participação
religiosa na população, que produzem um aquecimento de todo um campo religioso,
que se estrutura em moldes análogos aos de um mercado concorrencial.
Resulta que esses empreendedores religiosos aparecem -assim eles se
apresentam na vida cotidiana- como se mergulhados até o pescoço numa inadiável
disputa por recursos e oportunidades, por mais eficácia e sucesso na atração de
novos consumidores e na fidelização dos já atraídos. Precisam, pois, de mais
fundos econômicos, mais dinheiro e mais lucro para investir no negócio da
religião.
SOCIOLOGIA Do lado dos soció-logos, para falar agora das coisas do
sagrado, é necessário passar pela economia da coisa, mergulhada com certeza na
cultura capitalista de uma sociedade irremediavelmente secularizada.
Uma sociedade que não precisa mais de Deus para se legitimar, se manter
coesa, se governar e dar sentido à vida social, mas que, no âmbito dos
indivíduos, consome e paga bem pelos serviços prestados em nome dele.
De modo tão descarado que o princípio de fidelidade dos homens, isto é, dos
fiéis para com Deus, que sustentou a civilização judaico-cristã, e também a islâmica, desde as origens, agora tem sua direção invertida por essa nova
cristandade que proclama que Deus é fiel, o fiel é Deus. Investimento seguro,
vale dizer.
Nota
Texto inédito, cedido pelo sociólogo Reginaldo Prandi, coautor,
com Pierucci, em livros e projetos de pesquisa.
Os religiosos são os primeiros a dizerem-se interessados em mais liberdade
de crença, culto, propaganda e marketing. E mais isenção (quando não evasão)
fiscal
FONTE: Folha de São Paulo, 17 de junho de 2012.
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