O Blog JUNHO conversou com o professor Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que falou sobre a atual conjuntura política e os desafios da universidade pública.
Blog Junho – As eleições municipais, neste primeiro turno realizado em 02 de outubro, podem ser lidas de diversas formas. Alguns elementos a destacar: o retrocesso eleitoral do PT; a expressiva votação de candidatos de direita que flertam com o fascismo, como os filhos de Bolsonaro para prefeito e vereador; a vitória no primeiro turno dos representantes da coalizão dirigente no país nos anos 1990, em São Paulo e Salvador, com um crescimento da votação do PSDB pelo país; um percentual muito elevado de votos nulos e brancos pelo país, revelando uma crescente descrença da população no jogo político-institucional; em suma, apesar das diferentes leituras possíveis sobre esses indicadores, não parece ser um quadro muito animador. Como você o avalia?
Roberto Leher – É importante considerar o contexto da eleição, realizada apenas um mês após o impeachment de Dilma Rousseff, por meio de um processo claramente desvinculado do crime de responsabilidade, justificado, por muitos parlamentares, como uma manifestação em virtude do “conjunto da obra” do governo Dilma, algo não previsto na Constituição. É possível afirmar que, grosso modo, o bloco de poder em rearranjo foi exitoso. A coalizão que apoiou o afastamento conquistou a grande maioria dos votos e prefeituras. Isso não significa vitória pessoal ou apoio popular ao novo presidente (perto de 70% da população afirma que não confia). O PMDB foi derrotado flagrantemente em cidades que se manifestaram vivamente em prol do fim do governo Dilma, como o Rio de Janeiro e São Paulo, embora tenha mantido aproximadamente o mesmo – e expressivo – número de prefeituras de 2012.
O PSDB saiu fortalecido em São Paulo ao vencer a eleição no primeiro turno com um candidato empresário que se notabilizou por um programa de TV que submetia os perdedores ao bordão: “você está despedido!”, tendo ampliado significativamente as prefeituras. O DEM, com o neocarlismo, mostrou força em Salvador, embora tenha seguido em processo de desidratação, perdendo uma quantidade relevante de prefeituras no país. Novas agremiações que gravitam em torno da direita igualmente saíram fortalecidas, como o PSD. Do ponto de vista quantitativo, o maior derrotado foi o PT. Em relação a 2012 perdeu 10 milhões de votos e 242 prefeituras, tendo menos cidades do que o PSB, uma agremiação que atualmente virou força auxiliar de partidos de centro-direita e é parte da nova coalizão conservadora.
As eleições de 2016 serão conhecidas como as de maior absenteísmo. Não basta contabilizar somente o exame do número de prefeituras por partido para examinar com rigor o quadro político advindo das urnas. O movimento da direita contra tudo o que é público e, fazendo sua política contra a política (conforme a fórmula de Gramsci de que a pequena política pode ser uma forma da grande política), ganhou ressonância nos meios de comunicação populares, a exemplo do programa de rádio Band News com Ricardo Boechat. As manifestações de ódio no facebook, baseadas em mentiras toscas, têm como objetivo alimentar valores dessa direita profunda. Ademais, o desmonte da imagem do PT que, nos anos 1980 e 1990, recebeu crescente apoio de setores organizados da classe trabalhadora e, após as denúncias de corrupção e prisões de seus principais dirigentes, foi apresentado pela mídia como uma quadrilha (Petralhas) foi utilizado como o principal combustível dessa ofensiva contra a cultura e o envolvimento político organizado.
Toda essa operação provocou importante absenteísmo eleitoral. Cerca de 17% dos eleitores deixaram de comparecer às urnas no primeiro turno. Somando o não comparecimento com os votos brancos e nulos, o total de pessoas que recusou indicar o seu voto em algum dos candidatos supera o voto do primeiro e do segundo colocados em 22 grandes cidades, inclusive São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda é preciso uma análise mais fina desse fenômeno, mas os primeiros indícios confirmam que foram os setores mais explorados e expropriados que deixaram de escolher candidatos, beneficiando, desse modo, o novo bloco de poder em sua ofensiva contra os direitos sociais.
É importante observar a votação para vereador. Em diversas cidades, extrema direita e esquerda socialista lideraram a lista dos mais votados, confirmando que as forças organizadas foram relevantes.
A extrema direita demonstra que ocorrem mudanças na sociedade civil muito preocupantes, associando fundamentalismo religioso e doutrinas que aprofundam politicamente o neoliberalismo exacerbado, o individualismo possessivo, a homofobia, o racismo e o irracionalismo, iniciativas que contaram com o apoio financeiro e ideológico de fundações nacionais e estrangeiras de direita. Isso com fortes imbricações na sociedade política, com ramificações no Executivo, no Legislativo (vide a composição da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados) e, de modo especialmente perigoso, no Judiciário, visto que setores deste poder atuam claramente como partido. E os setores dominantes tradicionais, representados pelos partidos da ordem, PSDB, PMDB, DEM etc., tiveram que se compor com essa nova direita, como foi possível constatar na votação do impeachment e nas votações de medidas que desmontam os direitos sociais no país, a exemplo da PEC 241/16, a mais destrutiva delas, junto com as contrarreformas trabalhista e da previdência.
Retomando a questão das maiores votações para vereadores. É certo que um dos Bolsonaros foi eleito o vereador mais votado do Rio de Janeiro, mas seguido de perto por Tarcísio de Carvalho e Marielle Franco do PSOL. Em Porto Alegre, Fernanda Melchionna do PSOL foi a mais votada e, em Belo Horizonte, Aurea Carolina, também do PSOL, foi igualmente a mais votada. Em São Paulo, a bancada feminina cresceu de 5 para 11 mulheres, sendo que duas são militantes feministas: Juliana Cardoso (PT) e Sâmia Bomfim (PSOL). O exame mais detido das votações nas capitais confirma que a esquerda social demonstrou vigor em frentes específicas, localizadas, agregando movimentos de hip-hop, a primavera feminista, movimentos sociais como o MST e o MTST, entre outros.
Blog Junho – Nas capitais, a esquerda passou ao segundo turno em Belém e no Rio de Janeiro, com as candidaturas do PSOL. O governo federal busca alterar a legislação para implantar a mais dura política de austeridade, sob o pseudônimo de “ajuste fiscal”. Se aprovadas, as medidas propostas significariam para os entes da federação: cortes nos orçamentos de educação e saúde, congelamento dos quadros de pessoal com a suspensão dos concursos públicos, transferência da gestão de serviços públicos para Organizações Sociais e outros entes privados e retirada de direitos dos servidores. Diante desse quadro, quais os principais desafios que prefeitos da esquerda socialista eventualmente eleitos teriam que enfrentar para, no seu âmbito (fundamentalmente o da escola fundamental), garantir políticas comprometidas com uma educação pública, gratuita, de qualidade, laica e referenciada nos interesses da maioria trabalhadora da população?
Roberto Leher – Excelente questão. A eleição de Freixo, no Rio, e de Edmilson, em Belém, conformam uma situação de evidente positividade para o país, visto que expressam perspectivas laicas, democráticas, solidárias que poderiam contribuir para reverter um quadro difícil para os trabalhadores e, podemos dizer, para uma civiltà democrática e comprometida com os valores socialistas da igualdade, da justiça social e do reconhecimento da plena humanidade de todas/os as/os que possuem um rosto humano. Significaria, também, a luminosidade de cidades que recusaram o conservadorismo arcaico, o sufocamento objetivo da laicidade, em virtude de alianças de candidatos com correntes religiosas cujos líderes se esmeram em difundir manifestações de ódio, como está ocorrendo no Rio de Janeiro.
O exercício da autonomia municipal, assegurada pela Constituição, terá de ser ousado e protagônico. O contexto geral do país será de desmonte dos pilares sociais assegurados pela Constituição, como a vinculação de verbas para educação e a saúde. Ou seja, os municípios serão atingidos por esse ajuste fiscal feroz pois as transferências constitucionais e do Fundeb serão fortemente golpeadas.
A despeito dessas adversidades, as políticas educacionais poderão manter viva a concepção de escola pública como espaço de liberdade, de cultura, de ciência e tecnologia livres de particularismos antirrepublicanos. Projetos como Escola Sem Partido serão recusados e as escolas municipais poderão seguir contando com a capacidade criativa de seus estudantes, técnicos e administrativos e professores. E a interlocução dialógica com os movimentos culturais, científicos poderá ser vibrante. Seria maravilhoso aprofundar a relação da universidade pública com o ensino fundamental. Seria, de fato, um processo muito apaixonante para todos aqueles dedicados à causa da educação pública, laica, democrática e capaz de desenvolver a imaginação criadora das/ dos estudantes. O mesmo poderia ser dito sobre a saúde pública.
Blog Junho – Que papel as Universidades Públicas podem cumprir para, na contramão da “onda conservadora”, resistir a esse quadro de ataques aos serviços públicos e colaborar com governos municipais comprometidos com a defesa da educação pública que eventualmente venham a ser eleitos?
Roberto Leher – As universidades públicas podem desempenhar um papel crucial em diversos domínios. A UFRJ, por exemplo, está constituindo um “Complexo de Formação de Professores” muito promissor, em que a pesquisa desenvolvida na instituição pode oxigenar os currículos em diálogo verdadeiro com as escolas, não como rua de mão única, mas como um lugar compartilhado de produção de conhecimento. Será decisivo para conceber a escola pública como um lugar de ciência, de arte, de tecnologia e de cultura. Não é possível formar professores como intelectuais produtores de cultura sem o ‘fazimento’ do ensino nas escolas.
Igualmente, seria possível redimensionar o Sistema Único de Saúde, tanto na formação de profissionais, como na organização de um verdadeiro sistema de saúde. Os hospitais universitários estão muito subdimensionados nas cidades. Não apenas seria possível integrar a alta complexidade com as redes municipais, ampliando transplantes etc., como poderíamos avançar na atualização dos preceitos da reforma sanitária, enfrentando as doenças negligenciadas. Isso fortaleceria sumamente as universidades e, também, o aparato de saúde municipal. As prefeituras poderiam ser suportes importantes para o desenvolvimento de insumos para o SUS, como o que pretendemos fazer com a Fiocruz, por meio de uma parceria já efetivada, articulando universidades e centros públicos de saúde. Recentemente, constituímos na UFRJ a rede Zika de pesquisa em arboviroses. Com boa ciência podemos ter boas políticas públicas de saúde. Podemos integrar pesquisa clínica e pesquisa básica, em benefício da população.
O mesmo pode ser dito sobre políticas urbanas, mobilidade, habitação, saneamento, agricultura, direitos humanos, meio ambiente, inclusive as consequências das mudanças climáticas globais, e cultura, abrindo espaços para iniciativas fora da indústria cultural. Nunca tivemos uma interação intensa da cidade com a universidade. Seria muito estimulante e promissora essa oportunidade. As universidades públicas desejam interagir com os problemas das cidades, pois isso contribuiria para a realização da função social das universidades: é preciso antecipar problemas futuros, pensar em soluções em diálogo com a sociedade, processos que resultariam no fortalecimento das próprias instituições. Que esse futuro seja forjado!
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