Por Mauro Luis Iasi.
Não há nenhuma dúvida que o resultado das eleições municipais apontam para uma grande derrota das forças progressistas e de esquerda, portanto, uma vitória para as posições conservadoras. No entanto, o que podemos extrair pela análise, ainda preliminar, dos resultados deve ir além desta constatação.
Quando olhamos de perto dois casos significativos, o de São Paulo e do Rio de Janeiro, ao lado de alguns indicativos nacionais, podemos arriscar algumas hipóteses para entender o tempo presente e as perspectivas que se abrem.
A derrota vista mais de perto
Os dados parecem demonstrar que o PT é o maior derrotado nestas eleições, sem dúvida pela intensa campanha de ataques jurídicos, midiáticos e políticos que culminaram no afastamento da presidente e continuaram depois disso. Não apenas caiu em número de cidades na qual elegeu prefeitos, caindo de 630 em 2012 para 265 em 2016 (uma queda de 59,4%), mas perdeu em locais significativos, como é o caso da capital paulista e na região metropolitana de São Paulo (Guarulhos, ABCD, Santos, etc.), teve desempenho abaixo do esperado no nordeste, foi derrotado em Porto Alegre e no interior gaúcho. Elegeu no primeiro turno apenas em uma capital (Rio Branco, no Acre) e foi para o segundo turno no Recife. Se considerarmos seu principal escudeiro, o PCdoB, apenas agregamos o segundo turno em Aracajú e, no conjunto, o crescimento de 51 para 80 cidades que governará, sabe-se lá com que alianças e com qual personagem.
Com estes resultados, num quadro geral que parece não será alterado significativamente com as disputas ainda em aberto no segundo turno, o PT caí do terceiro para o décimo lugar quanto ao número de prefeituras. Considerando o número de votos recebidos pelo PT constatamos uma queda de 60%, passando de 17,2 milhões para 6,8 milhões.
Mas, quem ganhou? É bom lembrar que o PT já em 2012 estava apenas em terceiro lugar em número de cidades governadas. O PMDB que era o primeiro neste quesito, manteve a posição, no entanto, com um crescimento relativamente pequeno, passando de 1015 para 1027 cidades, amargando derrotas importantes em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.
A mídia monopolista isola este critério para transformar o PSDB no grande vencedor. Ainda que tenha crescido de 686 para 791 (crescimento de 15,3%), vencido em capitais importantes e estar disputando o segundo turno no maior número de cidades, permanece em segundo lugar atrás do PMDB, posição em que já estava em 2012.
O que marcou este primeiro turno foi a pulverização, tanto à esquerda como à direita – por motivos opostos. Se na esquerda ela marca a defensiva da derrota, à direita a fragmentação é resultado da confiança que permite disputar entre si os despojos da derrota do petismo. Estas eleições têm grande importância no posicionamento das forças políticas para as eleições presidenciais. A pulverização de siglas neste multipartidarismo carente de conteúdo divide o botim entre coisas como o PSD de Kassab, PRB do Bispo Crivella e uma miríade de legendas como PSC, PHS, PTN e outras, preparando o mercado político dos apoios aos projetos e ambições visando as eleições nacionais que virão.
Disso resulta uma primeira constatação: considerando as duas principais legendas golpistas (PMDB e PSDB), podemos considerar que seu crescimento foi menor que a queda do PT. Em números absolutos, os dois levaram 117 prefeituras a mais do que em 2012 e o PT perdeu 374. Ainda que tenham migrado na maior parte para forças comprometidas com a interrupção do mandato da presidente eleita, podemos afirmar que a aventura oportunista rendeu menos do que esperavam as grandes legendas do conservadorismo. O desempenho pífio da REDE de Marina Silva e a queda do PSB comprovam nossa hipótese. Os balões de ensaio não decolaram. A tradicional expressão da direita não dá conta da tarefa, mas é ela que ocupa o espaço. Esta não é uma boa notícia para a direita.
Um dos efeitos deste fato é o crescimento da extrema direita. No Rio, a candidatura do filhote do Bolsonaro teve votação expressiva e elegeu com folga o outro filho para a câmara municipal. Ainda não é, entretanto, uma alternativa nacional para os propósitos das classes dominantes brasileiras.
Mas para onde foi o descontentamento produzido tão paciente e profissionalmente? Os índices de abstenções, votos brancos e nulos podem ser uma pista interessante. A soma dos votos brancos, nulos e abstenções ganhou as eleições em nove capitais e a oscilação que eleva para 17,58% o percentual de abstenções (em 2012 havia sido algo entorno de 12%), mascara que em algumas cidades este número ultrapassou a marca dos 30%.
Em São Paulo, por exemplo, as abstenções somaram 21,84%, os nulos 11,35% e os brancos 5,29%, ultrapassando em números absolutos os votos recebidos por João Doria. Este foi vitorioso com algo próximo de um terço dos votos considerando o universo total e não apenas os válidos, o que lhe garantiu a vitória no primeiro turno com o percentual de 53%.
No Rio, as abstenções chegaram à marca de 24,28% dos votos, os brancos foram 5,5% e os nulos 12,76%. Caso consideremos o universo dos eleitores da cidade do Rio de Janeiro, isto significa que, em conjunto, o volume de votos não dados aos candidatos chega à marca de 1.877.000, o que representa 38,32% em relação aos 4.898.045 eleitores da cidade. Desta forma, em números absolutos, os votos brancos, nulos e abstenções somados representam um volume maior que os votos de Crivella e Freixo juntos (1.377.625 votos, contra 1.877.000).
Não podemos afirmar com segurança o conteúdo destes “não votos”, que vão desde a impossibilidade de estar na cidade em que ocorre o pleito, o erro na hora da digitação, até o protesto. Mas, podemos apresentar como nossa segunda constatação que o principal efeito das manobras golpistas foi o crescimento do desencanto com as formas da democracia representativa no Brasil. Dito em outras palavras, o voto que se desloca do petismo, vai em grande parte para a desilusão.
São Paulo e Rio de Janeiro como dois casos exemplares
Mesmo com as considerações feitas, a vitória do PSDB em primeiro turno na capital paulista é um fato politicamente devastador para o PT. O fato de Haddad ter ficado em segundo lugar, ameniza mas não evita a profundidade da derrota. São Paulo já conheceu esta alternância antes, entre governantes ligados diretamente ao PSDB e ao PT, isso não seria de se estranhar nestas condições. O que chama a atenção é o volume da derrota (a diferença entre o candidato tucano e o petista foi de mais de 2,1 milhões de votos), considerando quem é João Doria e o que foi a administração petista, isso é surpreendente.
Dois mitos se dissolvem em poeira nas eleições em São Paulo. De um lado a crença que os “feitos” administrativos pesam muito na hora da definição do voto, como se a “obra” de um prefeito falasse mais do que ele próprio em uma disputa eleitoral (no Rio, também, Eduardo Paes sofreu desta síndrome). Haddad fez uma boa administração, ainda que como tudo que marcou o ciclo petista tenha sido desastrosa do ponto de vista político, mas isso pesou pouco. O candidato de proveta fabricado nos laboratórios Alckmin (ou seria ACME dos famosos personagens Looney Tunes), que gosta de dizer que começou do zero e trabalhou muito para chegar onde chegou, pode com tom farsesco fazer com que uma pilheria ganhasse das realizações em políticas públicas e na gestão “moderna” da cidade.
Alguns podem agora culpar a falta de divulgação ou a qualidade da comunicação realizada pela prefeitura (tenho certeza que o custo monetário foi bem alto pelos serviços prestados) ou a conhecida injustiça com a qual o povo trata aqueles que o amam. Ainda que tenha seu peso, não creio que seja aí que encontraremos a raiz da questão. Não basta realizações de uma gestão, ou sua correta divulgação, se não houver forças sociais que a defendam. A pergunta é, então, o que corroeu as bases sociais de sustentação política do governo petista em São Paulo.
A falta de autocrítica do petismo governista é um assombro. Diante de uma gestão, diríamos nós, decente, como explicar que as próprias bases sociais tenham preferido o Richie Rich (Riquinho)?
O fato é que segmentos sociais e indivíduos “compraram” a imagem de um “empresário de sucesso”, um “gestor privado da coisa pública”, um “não político”, enquanto os supostamente beneficiados pela gestão decente, não se dispuseram a defende-la, fora, evidentemente, do circulo da “militância” que o fez por dever de ofício ou vínculo empregatício. A nosso ver, isso está diretamente relacionado ao esvaziamento político da gestão. A gestão é do Haddad, as conquistas são de sua personalidade ou mérito do modo petista de governar. Lutas sociais e lutadores são eclipsados, quando não combatidos por atrapalhar a genialidade dos operadores políticos. Reduzida a uma questão de personalidade e capacidade política ou de gestão da cidade, a população expropriada de sua dimensão política, responde despolitizadamente.
Isso remete ao segundo mito que agora desmorona: a crença do petismo que no momento decisivo as bases sociais correm em seu apoio e a esquerda, na falta de outra alternativa para fazer frente à direita, salva o petismo de suas derrotas. Os dois fatos se interligam. Nem as “bases sociais” compareceram, nem a esquerda se moveu nesta direção. Não falo apenas da decisão das direções que poderiam estar certas ou erradas de acordo com o juízo que se faça, mas do movimento objetivo daqueles que não votaram em Haddad. E o motivo dos dois movimentos é o mesmo.
O petismo no governo, da mesma forma que nacionalmente, optou por uma governabilidade pelo alto e muitas vezes contra sua base social e sua identidade de esquerda. Paciente e cotidianamente destruiu as bases identitárias com que agora precisava contar. Haddad empenhava-se em conseguir acordos com os empresários do transporte, afirmando a necessidade de aumentar as tarifas, no momento em que a juventude explodia as ruas naquilo que levaria a junho de 2013. Abraçou Alckmin e recorreu ao governo federal contra as mobilizações, enfiando a cabeça na areia e torcendo para que tudo passasse rápido. Muito daquilo que agora se apresenta como “gestão moderna da cidade”, ocorreu como tentativa tardia e, talvez, insuficiente, em dar uma resposta ao que explodiu em 2013. É louvável que pelo menos tenha tentado, coisa que o governo federal não fez.
Empenhado em cobrar que todos “naturalmente” o apoiassem para derrotar a direita em São Paulo, não se apercebeu que o PT não é mais o ponto em que a esquerda e amplos segmentos dos movimentos sociais vêem como forma de derrotar a direita, mas como uma força que se aliou a esta direita para impor uma série de derrotas profundas aos trabalhadores. O fato do PT estar aliado em quase dois mil municípios aos “golpistas” que diz combater, não ajuda muito. Haddad não procurou a esquerda porque arrogantemente acreditava que ela viria como sempre, mas empenhou-se em atrair para sua governabilidade o PMDB e seus satélites, o Chalita e outras figuras de natureza e caráter deploráveis. Como sempre. Mas, desta vez… não deu certo.
O caso do Rio de Janeiro
Neste ponto o Rio de Janeiro é um contra-exemplo que nos ajuda a compreender este complexo cenário. Enquanto em São Paulo se conclamava a união de todos em torno de Haddad, no Rio dividia-se a esquerda lançando a candidatura do PCdoB que quase consegue levar ao pesadelo de um segundo turno entre Crivella e Pedro Paulo. Este não é um aspecto menor, revela esta arrogância que descrevíamos. Jandira Feghali tentou desesperadamente construir o discurso daqueles que estando contra o governo Temer deveriam unir forças para derrotar o PMDB no Rio, como se tivessem um DNA ou o registro fundiário registrado em cartório de “vitimas do golpe”, de forma que todos estariam obrigados a cerrar fileiras com ela, porque ela poderia derrotar o PMDB no Rio.
O mito que desmorona no Rio é outro, mas tem parentesco como os dois que apontamos em São Paulo. Cai a crença de que a única maneira de enfrentar a direita é uma aliança ampla na qual os setores populares têm que se submeter a alianças com segmentos da política conservadora, inclusive com segmentos da própria direita.
O que as eleições municipais parecem demonstrar é que o PT e seus aliados receberam um voto de desconfiança além das eleições em si, mas como protagonistas da luta contra o governo Temer e o PMDB. No caso do Rio isso se explica facilmente. Ainda que considerarmos o movimento de “voto útil” que desidrata a candidatura do PCdoB e seus aliados petistas em benefício de Freixo, somente isso não pode explicar a razão pela qual não ocorreu o contrário, isto é, porque desta vez o voto útil não beneficiou os ex-governistas.
A nosso ver, a resposta é relativamente simples. Se por um lado o golpismo de certa forma incensou o PT e seus aliados, por outro lado é transparente que até pouquíssimo tempo estas forças políticas estavam aliadas na rapinagem que se presenciou no governo do Estado e na cidade do Rio de Janeiro. O PT e o PCdoB, mesmo diante do terremoto de 2013, demoraram a largar o osso das administrações estadual e municipal. O apoio à Cabral, Pezão e Paes cobraram um alto preço e destruíram qualquer possibilidade da candidata do PCdoB apresentar-se como alternativa de fato àquilo que ela participava até ontem.
Aquilo que se consolidou como caminho de resistência ao PMDB e contra a extrema direita que mostra sua força, foi uma frente de esquerda, restrita nos termos daqueles que insistem em usar este qualitativo porque gastaram o termo para fazer frentes exatamente com o PMDB e outras siglas conservadoras. No Rio vai ao segundo turno uma frente formada pelo PSOL e PCB e apoiada por muitas outras organizações de esquerda e movimentos sociais, com pouco tempo de televisão, poucos recursos, sem apoio de máquinas, sem alianças espúrias, mas que logrou mobilizar uma militância e uma energia social que o petismo desprezou, ou no mínimo relativizou, como recurso de governabilidade. Nos parece significativo.
O ensinamento que pode se tirar disso é mais importante para o futuro do que para explicar o passado. O petismo parece imune à autocrítica, com exceção de seus segmentos mais lúcidos e infelizmente minoritários. O segundo turno no Rio pode levar-nos a compreender que aquilo que pode no médio e longo prazo ser construído como alternativa real de poder não passa pela repetição dos erros da experiência que agora se encerra, mas pela redescoberta da independência de classe e capacidade de enraizamento social que possa resistir agora para depois fazer frente à ofensiva reacionária que se implantou em nosso país. A ilusão de recompor as alianças que tornaram possível o ciclo passado, por conta de qualquer deslocamento do bloco conservador, não passa disso: uma ilusão, e uma ilusão perigosa.
Isso significa que a ida ao segundo turno, a possibilidade difícil de vitória contra o fundamentalismo obscurantista, não pode levar a uma ampliação de alianças e acordos políticos que venham a diluir a identidade de esquerda de nossa alternativa. Este caminho sedutor é o caminho do pântano. O volume dos votos nulos e das abstenções é um recado que precisa ser compreendido. Os limites da democracia representativa, que já se mostravam evidente em 2013, apontam rapidamente para sua falência. Se não soubermos dirigir este descontentamento em uma direção revolucionária, pode ser o caldo de cultura necessário para alternativas reacionárias.
A resistência no Rio, neste sentido, é mais simbólica do que efetiva. Mesmo um resultado favorável no Rio, assim como a possibilidade de alguma vitória em Belém ou Recife, não serão capazes de reverter a derrota no quadro geral para as forças conservadoras. Mas não devemos menosprezar resistências simbólicas, elas podem ser o ponto entorno do qual se articulam esforços e lutas que podem, mais adiante, reverter a correlação de forças hoje tão desfavorável.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
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FONTE: Blog da Boitempo
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