quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Na análise do golpe do Chile, Folha repete “ditabranda”

Nota sobre a imprensa liberal e golpes contra a democracia

por Caio N. de Toledo*


A relação liberalismo e democracia, relevante e polêmica problemática teórica do pensamento político e social moderno, pode ser bem ilustrada por um episódio editorial recente no Brasil.

Para “não passar em branco” os 40 anos do golpe militar contra o governo democrático-popular de Salvador Allende, a Folha de S. Paulo – com alguns dias de atraso – publicou um artigo sobre este traumático episódio na história política e social da América Latina.

Na mesma direção que os ideólogos civis e militares do golpe de 1964 – que construíram a ficção segundo a qual o “totalitarismo comunista” estaria prestes a irromper no Brasil –, o articulista da FSP imaginou um tenebroso cenário social e político para a sociedade chilena, caso o golpe militar de 1973 não fosse vitorioso; ditadura implacável, fome, campos de concentração, terror etc. estariam reservados aos chilenos na hipótese do “governo comunista de Salvador Allende” estar no poder nestes últimos 40 anos!

Tal como um roteiro de filme trash, a “guerra fria”, pois, ainda não teria terminado! Mas, como observou um colega, o afresco dantesco que o texto engendrou “foi precisamente o que ocorreu no Chile com a ditadura de Pinochet”.

Para o autor do panfleto, os chilenos, hoje na vigência do capitalismo neoliberal, podem dormir sossegados; afinal, a ameaça do “terror vermelho” foi derrotada.

Moral da estória com final feliz: viva o golpe contra o governo democrático-popular de Allende!
Salve a ditadura redentora do General Augusto Pinochet que concretizou no ocidente os ideais da doutrina neoliberal!

Ao publicar o texto, a FSP – que afirma ser um jornal democrático e pluralista – teria rompido ou se afastado de sua linha editorial? Algumas observações preliminares talvez ajudem a responder a questão.

A fim de examinar os 40 anos do golpe de 1973 no Chile, na seção dedicada a temas da conjuntura (econômica, política e cultural), o jornal não promoveu um confronto de ideias e posições divergentes; convidou, sim, um único autor para examinar o controvertido assunto.

Deixando de lado, conhecidos pesquisadores da história da América Latina, foi privilegiado um colaborador sobejamente conhecido por seu reacionarismo político.

Além disso, vale sublinhar que – após ter recebido o artigo encomendado – o jornal o editou não obstante o texto transgredir normas e valores do pensamento democrático.

Ora, todos sabem que publicações que aspirem ter alguma credibilidade no debate das ideias não se obrigam editar toda e qualquer colaboração recebida ou encomendada.

Por sua vez, mesmo conhecendo a indignação que o editorial de 17/2/2009 havia provocado entre seus leitores – quando denominou de “ditabranda” o regime militar brasileiro de 1964 –, a FSP não hesitou publicar, um texto que falsifica a história na medida em que omite o verdadeiro terror instaurado pela ditadura militar de 1973 (nunca pela vitória de Allende!): prisões em massa, execuções, tortura, desaparecimentos, campos de concentração e de extermínio, censura etc.

Tudo indica, pois, que para a intelectualidade que orienta a FSP, o anti-democratismo do texto não deixaria de ser uma “tendência do pensamento contemporâneo” (um dos critérios que a seção Tendências e Debates afirma exigir a fim de justificar sua publicação no jornal).

Mas sem isentar o jornal neste episódio que ofende o pensamento democrático, devemos lembrar que a Folha de S. Paulo é, a rigor, um aparelho ideológico-cultural de orientação liberal. Como estudos críticos sobre o pensamento político moderno têm mostrado – entre eles, os trabalhos dos italianos Norberto Bobbio, Giovanni Sartori e Domenico Losurdo – inexiste um vínculo conceitual entre liberalismo e democracia.

Para estes autores, democracia e liberalismo não são categorias e realidades políticas complementares ou que se implicam mutuamente. Ou seja, autores e entidades liberais, ao longo de sua história, nem sempre defendem posições estritamente democráticas.

Se aceitarmos esta formulação, nada haveria, pois, de surpreendente no recente episódio editorial. Como comprova a história das ideias e das práticas políticas, órgãos da imprensa liberal (no Brasil e no mundo) – dependendo das circunstâncias sociais e da luta ideológica de classes – poderão divulgar textos antidemocráticos como também apoiar golpes contra governos que foram eleitos pelo voto popular.

Como se viu, a editoria da Folha de S. Paulo não hesitou publicar um texto caricatural, desinformativo e ofensivo aos valores e ideais democráticos; porém, mais significativo não foi o apoio ao golpe civil-militar de 1964 bem como o fato da FSP, durante alguns anos de governos discricionários, ter se comportado com um aparelho ideológico-cultural da ditadura militar?

Mas justiça seja feita; como recente editorial de O Globo (31/8/2013) reconhece, nesses episódios a FSP também teve a companhia de outros órgãos liberais da imprensa brasileira – entre eles, O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e o Correio da Manhã.

Decorridos quase 50 anos, o silêncio da Editoria do jornal sobre estes relevantes episódios da história da política no Brasil não deixa, pois, de reforçar a tese segundo a qual as entidades liberais nem sempre atuam no sentido de fortalecer a democracia política.

PS: Após as reações de alguns seus leitores, a FSP poderá publicar um artigo favorável ao governo democrático de Salvador Allende. Ou seja, o pluralismo de jornais liberais comporta matérias de orientação democrática como também textos ofensivos aos valores e ideais democráticos.

*Professor aposentado da Unicamp; do comitê editorial de marxismo21

FONTE: VIOMUNDO

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