Elogio ao ditador Franco causa indignação na Espanha
Armando G. Tejeda
La Jornada
Para a Real Academia de História (RAH) espanhola, a Guerra Civil foi uma “cruzada” e uma “guerra de libertação”; Francisco Franco foi um “líder inteligente e moderado”, além de “valoroso e católico”, que “montou um regime autoritário, mas não totalitário”; o governo republicano de Juan Negrín foi “praticamente ditatorial” e o comunista Santiago Carrillo aplicou uma política “de terror revolucionário”.
São as supostas “verdades históricas” que estão incluídas no Dicionário biográfico espanhol, uma obra pensada para ser de consulta, com mais de 43 mil biografias e que custou aos cofres públicos cerca de 5,8 milhões de euros Seu conteúdo provocou a indignação de historiadores, políticos, descendentes do exílio e das vítimas da repressão franquista.
A publicação do Dicionário deixou em evidência o funcionamento de uma instituição que até agora passava desapercebida para a maioria dos cidadãos, só conhecida pelos próprios historiadores, investigadores e, obviamente, pelos dirigentes políticos. A maioria de seus 350 membros são, segundo o resultado de suas pesquisas, nostálgicos do antigo regime, que continuam “suplicando a Deus” antes de iniciar suas sessões, que têm entre seus membros um encarregado de ser o “censor” dos discursos, que praticamente não contam com mulheres em suas cadeiras e sim, por outro lado, com representantes da Igreja católica, neste caso o ultraconservador arcebispo de Toledo, Antonio Cañizares.
O projeto de uma obra monumental e de consulta, que foi elaborada a partir do gênero da biografia e que inclui as personalidades mais importantes da história espanhola, remonta ao século XVIII. Mas foi em 1999, quando governava o direitista José María Aznar, quando se firmou um convênio com o qual os acadêmicos – muitos deles com títulos de nobres – conseguiram um proveitoso subsídio de quase cinco milhões de euros para desenvolver o trabalho nos oito anos seguintes.
Em 2006, já com o socialista José Luis Rodrígues Zapatero no poder, conseguiram uma ampliação dos recursos para terminar a obra, cerca de 200 mil euros anuais a mais até o ano de 2010. Segundo suas próprias informações, a RAH elegeu aos autores “mais qualificados” para desenvolver as biografias, que enviavam seus textos para revisão às “comissões acadêmicas” com o objetivo de chegar ao “êxito de um projeto que significarpa um notabilíssimo avanço para a sociedade do conhecimento”, segundo anunciavam eles mesmos.
Com a obra finalizada se revelou uma visão enviesada, tendenciosa e sempre favorável à doutrina imposta pelo franquismo em sua longa ditadura (1939-1976). Por exemplo, a biografia de Franco foi escrita pelo historiador Luis Suárez, que é, por sua vez, o presidente da Irmandade do Vale dos Caídos – monumento que o próprio ditador mandou erguer na serra de Madri, no qual empregou trabalho forçado de milicianos republicanos presos e onde também está sepultado o fundador da Falange, José Antonio Primo de Rivera.
Suárez elogiou sem censuras a figura de Franco, uma das personagens históricas mais odiada por uma parte da sociedade espanhola, mas cujo biógrafo o define como um “líder inteligente e moderado” que “montou um regime autoritário, mas não totalitário, já que as forças políticas que o apoiavam – Flanage, Tradicionalismo e Direita – ficaram unificadas em um movimento e submetidas ao Estado”. Longe de intimidar-se pelas críticas, o historiador se defendeu assegurando que “não chamou Franco de ditador porque não o foi”.
Mas no Dicionário há numerosos exemplos do “viés franquista”, segundo o qualificam seus críticos, como quando ao falar do fundador do Opus Dei, José María Escrivá de Balaguer, se assegura que “quando estourou a Guerra Civil, que foi acompanhada de uma das mais sangrentas perseguições religiosas da história, em meio aos rancores despertados pela guerra, ele semeou perdão e reconciliação”.
Ou quando se fala do religioso Joaquín Alonso Hernández, onde o historiador José Martín Brocos mescla dados da personagem resumindo com suas próprias convicções sobre o ocorrido naqueles anos. “Em 7 de novembro de 1938 começa a nova missão, nesse momento difícil pela guerra da libertação que se vivia na Espanha...” Ou esta outra: “Depois do levante nacional, consciente do sentido da verdadeira cruzada que adquiria nossa guerra...”.
No dicionário também se misturam personagens mais contemporâneas, entre os quais destacam biografias com elogios a representantes da direita espanhola como Francisco Álvarez Cascos, vice-presidente do governo durante a época de Aznar, a quem definem como “um militante político com uma brilhante trajetória, que reformou profundamente o sistema de transporte espanhol”.
Por outro lado, quando se referem a políticos de esquerda ou nacionalistas ocorre o contrário. Ao histórico líder do nacionalismo basco moderado, Xabier Arzalluz, o definem como um político “influenciado pelas doutrinas separatistas e etnicistas de Sabino Arana. Suas relações com o grupo terrorista ETA, com o qual de certa maneira compartilha objetivos, têm sido muito ambíguas e do mais frio oportunismo”.
Em referência ao fundador do Partido Comunista Espanhol (PCE) e uma das figuras centrais da transição à democracia, Santiago Carrillo, o dicionário afirma que “no início de sua vida política, em 1934, quando promoveu a greve geral revolucionária de outubro, a sua passagem por Moscou lhe fez um fervoroso stalinista... Uma vez iniciada a guerra, aplicou uma política de terror revolucionário e nunca assumiu sua responsabilidade nas matanças”.
O grêmio de historiadores independentes qualificou a obra como uma “canção à visão da história da Espanha da direita”, de “pseudo história”, de “apologia do franquismo” e, o mais grave para um historiador, “de falta de rigor e metodologia”.
Sebastiá Serra, catedrático de história contemporânea, criticou a eleição de Suárez para escrever sobre Franco, e o caracterizou como “medievalista e uma pessoa que pertence a uma escola historiográfica muito concreta e que está vinculada à Fundação Francisco Franco”.
O historiador Josep Massot acrescentou que na obra se faz “apologia a Franco. Isto não é uma biografia, mas um panegírico. Fizeram um livro de propaganda franquista”.
A Associação para a Recuperação da Memória Histórica considerou que estão “ocultando a verdade de um regime que foi um sistema assassino”.
A Associação de Descendentes do Exílio Espanhol anunciou a apresentação de uma denúncia ante o ministério da Educação, que se somará a outra demanda apresentada em Granada contra a RAH por “apologia ao franquismo”.
Ante a onda de críticas, o diretor da RAH, Gonzalo Anes, se limitou a anunciar que “enriqueceram” algumas passagens na versão da Internet da obra de consulta, mas em nenhum caso se mostrou disposto a retirá-las – como exigem os múltiplos setores ofendidos – ou a sua “eliminação”, como exige Carmen Negrín, neta do presidente da República no exílio, Juan Negrín.
Nenhum comentário:
Postar um comentário