Por Ricardo Musse
Neste ano de 2013, comemoram-se os 200 anos de nascimento de Søren Kierkegaard. No Brasil, o ponto alto dessa efeméride foi o lançamento do primeiro volume dos Pós-escritos às Migalhas Filosóficas, numa versão de seu mais competente tradutor brasileiro, Álvaro Valls.
A leitura e a interpretação recente de Kierkegaard no país, desenvolvida no âmbito acadêmico, esforça-se em superar a visão do pensador dinamarquês como precursor do existencialismo, procurando inseri-lo nos debates de sua época, a década que antecedeu à Revolução de 1848.
Nessa direção, apresento abaixo uma breve reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre Kierkegaard e Marx, num comentário concentrado no livro Migalhas Filosóficas.
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Num artigo de 1844, nos Anais Franco-Alemães, intitulado Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução – visando e distinguindo-se de seus companheiros de geração conhecidos como “jovens hegelianos” –, Karl Marx anuncia que, doravante, a crítica do céu deveria se converter “em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.” (Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 146)
Essa necessidade do presente histórico, exigência imperativa do “espírito do tempo”, não passou desapercebida a Søren Kierkegaard. Num texto publicado postumamente como apêndice ao Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor, significativamente intitulado “O indivíduo”, Kierkegaard reconhece, entre as características de sua época, que “nestes tempos, tudo é política”.
Ali, nas adjacências da Alemanha, na pequena e provinciana Dinamarca, alguém também compreendeu, à maneira de Marx, que o fato de serem “contemporâneos filosóficos do presente, sem serem seus contemporâneos históricos” não impedia, mas antes os impulsionava a buscar, por meio da dissolução da sociedade existente, a “emancipação total do homem”. Porém, enquanto Marx colocava as suas expectativas nas mãos de uma classe social que então se constituía historicamente (o proletariado), Kierkegaard, ao interpretar a sua época como carente de eternidade – “a infelicidade do nosso tempo consiste justamente em se ter tornado exclusivamente ‘o tempo’, a temporalidade que, na sua impaciência, nada quer ouvir da eternidade” –, desespera de qualquer outra solução que não um retorno à fé e ao cristianismo originário.
Essa convergência na negação do existente e na aposta numa transformação do mundo e do homem, assim como as subsequentes divergências, explicam-se, sobretudo, pelo referencial comum a ambos: o sistema especulativo construído por Hegel que, cada qual à sua maneira, tomavam como expressão acabada do mundo burguês, adjetivado (enfaticamente) capitalista por Marx e cristão por Kierkegaard.
A crítica da cristandade ocidental, mundanizada pela associação entre Igreja e Estado, tem como meta principal dissociar humanidade, compreendida como espécie, e cristianismo. Trata-se de inverter o legado das pequenas concessões e aproximações que instauraram entre a religião e a filosofia, o divino e o humano, o sagrado e o profano, a fé e a razão uma (estranha) continuidade. Com isso, Kierkegaard procura, ao mesmo tempo, devolver ao deus o direito de propriedade sobre o cristianismo, usurpado pela espécie, e ensinar aos homens, enquanto indivíduos, o caminho “para se tornar cristão”.
Toda a parte de sua obra publicada sob pseudônimos foi definida posteriormente pelo próprio Kierkegaard como “produção estética”, isto é, como uma apresentação indireta – configurando uma duplicidade e uma dialética peculiares – das questões propriamente religiosas, às quais corresponde a outra parte da obra. A única exceção cabe ao heterônimo Johannes Climacus, que apesar de não ser cristão, teria descrito, emMigalhas filosóficas e no Pós-escrito final não-científico, a via pela qual se regressa do sistema, da especulação, em suma, da filosofia, para a posição de cristão.
O alvo central de Climacus (e das Migalhas filosóficas) é a reconciliação hegeliana do cristianismo na história universal do espírito. Em lugar da ênfase na sua expansão histórica, na progressiva “naturalização” determinada por sua incorporação pelo mundo secular, importa ressaltar o estranhamento, o paradoxo inassimilável pela especulação, o “absurdo” que os gregos (e a razão) chamaram de “loucura” e no qual os judeus (e o coração) viram um “escândalo”: o fato de que o deus tenha estado no mundo e tomado a forma humana.
Numa digressão poética, cujo tom literário destoa da paixão especulativa e da paciência conceptual do restante do livro, Kierkegaard imagina o deus movido não pela necessidade, mas sim pelo amor. Só esse sentimento, e o seu movimento no sentido de tornar iguais os desiguais, explicaria a descida do deus e o fato de ter se mostrado sob a figura humilde do “servo”. Assim, ao manter uma distinção essencial entre o absoluto e o finito, descarta-se – em nome de um verdadeiro amor, devotado não ao onipotente que faz milagres, mas sobretudo àquele que se rebaixou igualando-se aos homens – toda uma série de concepções do amor cristão que reduziam a diferença essencial elevando, de alguma maneira, seja pelo engano do júbilo ou da adoração, o homem ao patamar inatingível do deus.
O deus, assim entendido, é um desconhecido contra o qual a inteligência, em sua paixão paradoxal, se choca, desviando o homem de seu processo, inaugurado pelos gregos, de autoconhecimento. A distinção entre ser de fato (existência) e ser ideal (essência) não permite qualquer passagem do conceito ao existente. Rejeitando tanto a prova ontológica de Santo Anselmo (atualizada por Hegel) – “não se prova que uma pedra existe, mas que algo, que de fato existe, é uma pedra” –, como a demonstração da existência pelos feitos, ou ainda a tentativa, à maneira de Spinoza, de deduzi-la de um esclarecimento conceptual, Kierkegaard situa o deus, enquanto absolutamente diferente (e, portanto, não redutível à antropologização concebida pelos jovens hegelianos), como um limite para a razão. A única via de acesso humano ao deus é a fé, considerada enquanto forma distinta do conhecimento e da vontade (logo, da razão), isto é, como um ato de liberdade.
A religiosidade humana não se desenrola ao longo de um processo social, coletivo, mas sim – já que o deus, o salvador, o libertador, aqui esteve – decorre, pelo lado humano, de uma decisão individual, de uma relação pessoal com o deus (“cada homem, na medida em que é crente, não deve nada a outro homem, mas sim tudo ao deus”). Através dessa conversão passa-se da não-verdade à verdade, do não-ser ao ser, ou melhor, renasce-se (não para o júbilo, mas sobretudo para a consciência do pecado).
O cristianismo perde, assim, a estabilidade de uma “realidade histórica-universal”, para se transformar em uma possibilidade, num paradoxo que pode ser objeto de escândalo ou de crença. Mas, nem por isso a perspectiva histórica é descartada. Primeiro, ao orientar o seu projeto de acordo com as necessidades de sua época, ao se situar como um “corretor do tempo”, o próprio Kierkegaard compreendeu a si mesmo e à sua obra historicamente. Além disso, ao assentar o cristianismo no paradoxo da “implantação do deus na vida humana”, tomou o fato absoluto (o eterno) como um fato histórico. Entretanto, se esse primeiro momento, a autocompreensão histórica de sua existência individual, não destoa da visão tradicional da história (do hegeliano “espírito do tempo”), o passo seguinte aponta para uma nova concepção de história.
O fato de que o deus aqui esteve é algo de sui generis. Trata-se antes de uma contradição, do que de um fato sujeito a uma comprovação empírica. Logicamente falando, a perfeição da eternidade consiste em não ter história, porém, por outro lado, tudo o que veio a ser é histórico, pois lhe pode ser atribuído pelo menos o predicado decisivo do histórico: que ele veio a ser. Tal fato, a passagem do deus, por sua vez, tampouco pode ser provado pela percepção ou pelo conhecer imediatos (qualquer relato, por mais circunstanciado que seja, dos episódios da sua estada aqui não demonstraria jamais o decisivo: que se tratava de um deus). Tem-se assim um fato histórico que só é tal para a fé.
Desse modo, Kierkegaard procura responder à questão: “o que significa ser cristão hoje, isto é, 1844 anos após a morte de Jesus Cristo?” por meio de uma solução que se afasta tanto da posição histórica de Hegel, quanto da postura doutrinal dos teólogos e ainda da perspectiva antropológica de Feuerbach. Trata-se de uma adesão pessoal, intransferível ao deus, através da fé, isto é, da capacidade de crer naquilo que não se vê. Se a fé, em sentido eminente, é essencial para a apreensão desse fato histórico singular, a crença, entendida num sentido mais amplo, torna-se, na generalização dessa posição para a história como um todo, o órgão por excelência da compreensão histórica. Só ela pode captar a ambiguidade, a contradição entre certeza e incerteza, própria a um passado que não se rege pelas leis da necessidade (histórica), mas pela liberdade.
O “filosófo-histórico”, esse “profeta do retrospecto”, não percebe que o necessário, exatamente por ser tal, isto é, por relacionar-se sempre consigo mesmo da mesma maneira e também por concernir somente à essência, tem como determinação justamente a exclusão do devir. Essa ilusão retrospectiva – “a distância no tempo faz com que o sentido espiritual se iluda, assim como a distância no espaço provoca a ilusão sensorial. O contemporâneo não vê a necessidade do que devém, mas quando transcorreram séculos entre o devir e o observador então este vê a necessidade, do mesmo modo como aquele que, à distância, vê o quadrado como se fosse redondo” – não apenas substitui a liberdade, a decisão inerente aos atos humanos, pela necessidade, mas também, ao transplantar tal necessidade em teoria da realidade, concebe o sistema como uma totalidade na qual a existência, a singularidade da decisão, da opção individual não tem lugar. Identificada com a lógica, a realidade, para Hegel, não abarca o mais ínfimo, a contingência, aquilo que Kierkegaard considera supremo.
Não se trata apenas de ressaltar os equívocos da cristandade (e de seus filósofos). Como a presença do deus entre nós não deixa de ser um fato histórico, cabe ainda mostrar que ela instaurou uma descontinuidade essencial na autocompreensão humana.
Trata-se, portanto, de redefinir a diferença do cristianismo frente aos gregos. Para tanto, Kierkegaard retoma a concepção socrática de verdade. Procurando escapar à dificuldade inerente à questão: “em que medida pode-se apreender a verdade?”, Sócrates desenvolve a teoria da reminiscência, segundo a qual o indivíduo interrogado, deve apenas, adquirir consciência, por si mesmo, daquilo que sabe. Essa imanência socrática e a concepção de temporalidade daí decorrente compõem os momentos históricos indiferentemente. Não há lugar aí para o “instante”, para um momento dotado de importância decisiva, ou melhor, para o eterno. Uma vez que o deus aqui esteve, que a disjunção socrática não rege mais, o homem está fora da verdade. Para voltar à verdade, ao ser, é preciso romper com a temporalidade, com a imanência, é preciso saltar…
Referências bibliográficas
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. Tradução: Ernani Reichmann e Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1995.
KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor.Tradução: João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.
KIERKEGAARD, Søren. Pós-escritos às Migalhas Filosóficas, vol. 1. Tradução: Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2013.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.
FONTE: Blog da Boitempo
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