Muito se criticou a teoria de classes do Manifesto, o substrato da famosa afirmação que abre o livro, “a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”, principalmente a simplificação dos antagonismos em dois grandes campos inimigos: burguesia e proletariado. Quando se atém, porém, ao núcleo da determinação do conceito de proletário, à condição de homens que são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, sujeitos às vicissitudes da concorrência e às flutuações do mercado, como negar, ainda hoje, a veracidade e a pertinência dessa teoria?
Por Ricardo Musse.
No Manifesto do partido comunista, Marx e Engels apresentam, pela primeira vez, o mundo burguês como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica, apenas ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incontrolável destruição de toda estrutura de produção existente em um determinado momento, subverte de forma incessante inclusive o cenário histórico e político.
Por razões conjunturais, Marx e Engels privilegiaram, nesse entrelaçamento, o aspecto dinâmico, a constância da transitoriedade, materializado na frase-emblema: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Muito do interesse e parte da recepção do Manifesto explicam-se por essa ênfase. Em períodos de estabilização e consolidação do capital, seja entre 1850 e 1870 ou no quase meio século que se estende de 1950 a 1989, o marxismo volta-se para a compreensão da estática imanente à dinâmica social, concebendo a sociedade como uma segunda natureza e debruçando-se sobre o sempre-igual de fenômenos como o fetichismo da mercadoria. Hoje, no entanto, quando o engessamento do capitalismo (provocado por uma conjunção especial de fatores: conflito entre blocos e guerra fria, estabelecimento nos países centrais de um Estado do bem-estar social, predomínio incontestável da hegemonia norte-americana) parece ter chegado ao fim, muito do que se diz no Manifesto volta a ter uma inesperada atualidade.
Isso não significa que a análise e a crítica do fetichismo da mercadoria e da “naturalização” da vida social deva ceder lugar a um retorno puro e simples às formas antiquadas de “luta de classe”. Muito pelo contrário, a ausência dessa crítica é que impede a superação de um padrão de contestação que se apresenta como movimentos internos do mundo moderno, isto é, como determinações inerentes à sociedade burguesa.[1] Mas, por outro lado, se é verdade – à luz da história dos últimos 150 anos – que as tentativas de emancipação do proletariado, seja na vertente dita “revolucionária”, seja nos quadros do “reformismo” ou ainda do anti-imperialismo terceiro-mundista, consagradas em conquistas efetivas do poder estatal, não foram além de variações do “socialismo de Estado” deixando intocada a premissa principal do capitalismo, a generalização da forma-mercadoria, nada assegura que a classe trabalhadora esteja condenada ontologicamente, de antemão, a repetir novamente essa trajetória. Se as formas históricas próprias desses ultrapassados movimentos de contestação ainda sobrevivem em meio à sua agonia e ao caos presente, salientado pela falta de perspectivas práticas, disso tampouco se pode inferir que o proletariado, em seu sentido amplo, tal como definido no Manifesto, seja uma carta fora do baralho na luta pela emancipação.
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O texto do Manifesto constitui-se pela combinação, quase sempre inextricável, de uma exposição concisa que se propõe a apresentar abertamente, “opondo-se à lenda do espectro”, a teoria do comunismo com o detalhamento de uma plataforma política do proletariado para uma revolução que Marx e Engels julgavam iminente e que de fato se desencadeou pouco menos de um mês após sua redação.
Essa conjunção de doutrina e programa, a simbiose entre conceito e história, a unidade de teoria e prática realiza, novamente pela primeira vez (impossível não destacar repetidamente o caráter inaugurador do texto), o projeto mais ambicioso da filosofia do idealismo alemão, enunciado por Fichte como a junção entre o a priori, o desdobramento lógico, e o a posteriori, a experiência do mundo real e que Hegel, na Fenomenologia do espírito – conforme a voz corrente na filosofia da época, dos jovens-hegelianos a Schopenhauer – apenas conseguira alcançar, retrospectivamente, para as formas do passado.
Mas não é só no terreno da filosofia, ao efetivar a exigência, reiterada no debate intelectual da década de 1840, de dar conta do presente histórico, que oManifesto apresenta inovações. Além de contribuições no campo da sociologia (a teoria das classes sociais) e da economia (embora aqui ainda esteja ausente um ponto central do arcabouço – a teoria marxista do valor), o Manifesto inaugura ainda, de acordo com a opinião insuspeita de Schumpeter, a interpretação econômica da história e a teoria moderna da política.
O gesto inaugural ou a introdução de avanços em disciplinas aparentemente tão díspares – que dificilmente poderá, por conta da superespecialização hoje vigente no trabalho intelectual, ser repetido por um outro livro – explica-se facilmente por um círculo virtuoso. Marx renovou a história porque conhecia bem economia, revolucionou a política porque conhecia a história como poucos, reinterpretou criticamente a economia graças aos seus conhecimentos de política e de história etc.
Não se pode dizer o mesmo, porém, do processo de disseminação que tornou o marxismo um fenômeno mundial a partir da última década do século XIX. Como a divulgação se fez prioritariamente pela via da esquematização, a difusão acarretou o empobrecimento tanto do conteúdo quanto do método. Não foi só o retalhamento do legado de Marx e Engels em partes e disciplinas estanques por obra do anseio enciclopédico da época e pela posterior incorporação, em separado, de algumas descobertas do marxismo pelo mundo acadêmico burguês. O próprio Engels, apenas cinco anos depois da morte de Marx, acrescentou aoManifesto, na edição inglesa de 1888 e, depois na edição alemã, uma série de notas explicativas, presentes em todas as edições e traduções posteriores, que dissociam conceito e história. A primeira nota, por exemplo, adendo ao título da primeira parte – “Burgueses e proletários” – define logicamente estas duas classes por sua posição em relação à propriedade dos meios de produção. Já o texto do Manifesto expõe esses conceitos por meio de uma síntese da história moderna que destaca o processo de formação de cada classe e a conexão entre elas, o antagonismo que as envolve numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta.
A súmula do mundo moderno, pequeno esboço de história universal, que oManifesto apresenta em poucas páginas, dotada de um impressionante poder de compreensão e síntese, constitui a primeira aplicação e exposição pública da concepção materialista que Marx e Engels haviam desenvolvido num manuscrito, A ideologia alemã, até 1932 abandonado a “crítica roedora dos ratos”. O Manifesto além de retomar, sob a forma de drásticos resumos, passagens inteiras desse manuscrito, concretiza a ideia, ali apenas enunciada, de uma história que não separa nem distingue os aspectos econômicos, sociais ou políticos.
Essa teoria da história se propõe a combater o ponto de vista de um “assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano” pela observação das relações materiais. Seu fio condutor foi posteriormente condensado por Marx nos seguintes termos: “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes…” (Prefácio aContribuição à crítica da economia política).
O travamento no desenvolvimento das forças produtivas (a ausência de crescimento), a contradição entre relações sociais existentes manifestam-se sob a forma de crises. As relações burguesas tornaram-se estreitas demais para conter a riqueza colossal que a própria burguesia despertou no seio do trabalho social por meio da exploração do mercado mundial. As medidas protelatórias, segundo Marx e Engels, apenas preparam crises mais gerais e violentas.
A partir desse cenário o Manifesto fez uma dupla aposta. Primeiro, sustentou a hipótese, que se revelou verdadeira, de que a crise levaria a uma revolução social que varreria do mapa europeu os velhos regimes. Equivocou-se, porém, na previsão de que o desenvolvimento do capitalismo avançara a ponto de tornar possível uma vitória definitiva do proletariado. Em 1850, Marx e Engels reconhecem, no último artigo de As lutas de classes na França, que a perspectiva de uma continuação do processo revolucionário estava inviabilizada pela retomada, após a crise de 1847, da prosperidade industrial.
O desfecho das revoluções de 1848 – na França marcado pelo golpe de Estado de Luís Bonaparte em dezembro de 1851 –, que levou Marx a se exilar na Inglaterra e a se dedicar, por longos anos, apenas à redação de O capital, modificou profundamente a visão de Marx e Engels acerca do papel da burguesia. Sua capacidade em se acomodar, quando preciso, com setores da aristocracia fundiária e com a burocracia monárquica, desfizeram a impressão, amplificada pelo Manifesto, de que se tratava de uma classe eminentemente revolucionária, apta a “criar o mundo à sua imagem e semelhança”. Desde então, a burguesia passa a ser vista como uma classe contrarrevolucionária, trazendo para o primeiro plano seu conflito com o proletariado.
Muito se criticou a teoria de classes do Manifesto, o substrato da famosa afirmação que abre o livro, “a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”, principalmente a simplificação dos antagonismos em dois grandes campos inimigos: burguesia e proletariado. Quando se atém, porém, ao núcleo da determinação do conceito de proletário, à condição de homens que são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, sujeitos às vicissitudes da concorrência e às flutuações do mercado, como negar, ainda hoje, a veracidade e a pertinência dessa teoria?
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Os problemas do Manifesto e, por extensão, do próprio marxismo surgem na determinação da consciência de classe, e portanto, no delineamento da atuação política do proletariado. O processo de formação da classe proletária que oManifesto descreve, das lutas isoladas a organização em associações permanentes e em coalizões anti-burguesas, a conversão das lutas locais em uma luta política nacional, é impecável. Porém, a expectativa de Marx e Engels de que o incremento de dois fatores dissonantes – o empobrecimento do proletariado por causa da concorrência entre os proletários por trabalho e o aumento do seu poder social por conta da concentração industrial – conduzisse à revolução proletária não se mostrou factível.
Poderes e capacidades estatais diferenciadas conduziram, por meio de um complexo processo de inovação e restruturação permanentes, a substanciais diferenças espaciais.[2] Nos países centrais do capitalismo, ao longo destes 150 anos, o poder social do proletariado foi significativamente ampliado, como se pode constatar pelo estado de bem estar social ali construído. Já na periferia e na semiperiferia, a crescente penúria das massas proletarizadas possibilitou que organizações que reivindicavam a herança marxista conquistassem o poder estatal como plataforma para programas de industrialização.
Após 1968-1973, no entanto, esses dois fatores dissonantes, que sempre correram paralelos – criando o contrassenso de um forte poder social proletário avesso ao marxismo e de estados e organizações alheios aos interesses do proletariado formalmente marxistas – aproximam-se cumprindo, talvez pela primeira vez, o prognóstico do Manifesto. Enquanto surgem no núcleo orgânico amplas camadas proletárias sujeitas ao empobrecimento (principalmente entre a força de trabalho feminina ou imigrante), intensificam-se nas regiões periféricas e semiperiféricas do Leste Asiático, do Leste Europeu, da América Latina e mesmo da África Austral o poder social da classe trabalhadora.
Na medida em que a retomada do mercado mundial tende cada vez mais a conjugar as premissas que o Manifesto colocou como indispensáveis para a revolução socialista, acarretando uma crescente perda de legitimidade da burguesia, as organizações marxistas tradicionais, paradoxalmente, passam a constituir hoje o último entrave para um revivescimento mundial da luta proletária.
Quem examina o Manifesto procurando um caminho para essa retomada, certamente não vai encontrar lá respostas prontas ou um repertório doutrinário de programas. Mas se pode aprender muito com o seu caráter aberto. Ele, em lugar de esmiuçar uma teoria sistemática do partido, com regras e critérios de estruturação e funcionamento, toma o conceito de partido, que agrega no nomeManifesto do partido comunista, como uma extensão da classe determinando, na fórmula de Claudín não “o partido do proletariado, mas o proletariado como partido”. Em vez de uma definição peremptória do modelo de uma sociedade socialista, oferece poucas, breves e vagas indicações (destacando, porém, que a revolução social também significa, nos termos de 1968, “mudar a vida”) à espera de que o desaparecimento do antagonismo entre as classes, do fetichismo da mercadoria e do predomínio do interesse monetário, por si sós, ajude a delinear os contornos de uma forma social mais justa.
Notas:
[1]Cf., por exemplo, Immanuel Wallerstein. O capitalismo histórico (São Paulo, Brasiliense, 1985) ou Robert Kurz. Os últimos combates (Petrópolis, Vozes, 1997).
[2] Para o que segue cf. Giovanni Arrighi “Século Marxista, Século Americano”. Em: A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Vozes, 1997.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.
FONTE: Blog da Boitempo
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